domingo, 12 de novembro de 2023

MARCÍLIO FRANCA, MARCELO FRANCA E TALITA SÁ -O papel da memória e a memória de papel, FSP

 Marcílio Franca

Árbitro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), é professor de Direito do Patrimônio Cultural e do Mercado de Arte da Universidade Federal da Paraíba

Marcelo Franca

Delegado da Polícia Federal

Talita Sá

Arquiteta e urbanista pela Universidade de Brasília

Com espantosa frequência, leilões online oferecem ao mercado preciosos documentos públicos. Ao ocupar funções estatais, personagens como Epitácio Pessoa, José de Alencar, Machado de Assis ou Pedro 2º produziram documentos públicos que, hoje, são disputados como investimento, como raridade colecionável e até como instrumento de crimes financeiros. A depender do conteúdo, do autógrafo, do estado de conservação e da procedência, um documento pode alcançar milhares de reais.

Papéis tramitados entre duas esferas públicas, contudo, estão sujeitos, caso autênticos, ao art. 10 da lei 8.159/1991, que proíbe a comercialização de documentos de valor histórico egressos de arquivos públicos.

A instrução normativa 01/2007 do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) exige que leilões contendo documentos produzidos até o ano de 2000 sejam previamente informados ao órgão para análise de restrições de circulação ou identificação de eventual interesse de alguma instituição de acautelamento de patrimônio cultural.

A partir dessa informação, a autoridade pode exigir a retirada do documento do leilão definitivamente ou, caso necessário, para a realização de perícia, a fim de identificar, por exemplo, numerações, carimbos, vestígios de amarração, marcas de que o papel foi destacado de alguma encadernação, além do próprio conteúdo oficial do documento. Tudo isso para definir autenticidade e procedência do documento, mas nem sempre a comunicação prévia é feita.

Um documento público original assinado por Epitácio Pessoa, por exemplo, antes de chegar a uma grande plataforma de leilão online como eBay, Catawiki, Mercado Livre ou LeilõesBR, ou a grupos de WhatsApp, Facebook e Telegram, provavelmente saiu de modo ilícito de algum arquivo federal ou estadual. O aperfeiçoamento da legislação esparsa e a adoção de medidas interinstitucionais são um caminho urgente e necessário para salvaguardar o patrimônio documental.

Neste momento, a Câmara dos Deputados discute o projeto de lei 2.789/2021, que atualiza a Lei de Arquivos (lei 8.159/1991) e torna improbidade administrativa o ato de "agir ou concorrer para a perda, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens materiais e imateriais do patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro, inclusive mediante desestruturação e corte de verbas para custeio dos órgãos incumbidos de proteger tal acervo".

A proposta é bem-vinda. Não é razoável que a Lei de Improbidade (lei 8.429/1992) ainda não contenha uma única referência a bens culturais. Mas essa medida ainda demoraria algum tempo até produzir efeitos concretos em uma realidade que, neste momento, já exige providências urgentes.

Uma ação complementar, de efeitos mais rápidos, poderia mobilizar os ministérios da Cultura e da Justiça e o Ministério Público para obrigar os marketplaces a se comprometer com "effective moderation policies" e impedir a venda de bens culturais sem prova de origem e comercialização lícitas. Medidas auxiliares incluiriam a adoção de códigos de conduta para essas plataformas digitais e o desenvolvimento de "bots" para detectar automaticamente, a partir da análise de imagens ou palavras-chaves via inteligência artificial, bens procurados.

A Constituição Federal definiu os documentos como parte do patrimônio cultural do Brasil (art. 216, inc. IV) e fixou que é competência comum de todos os entes da Federação protegê-los (art. 23, inc. III). A Unesco, por sua vez, ao aprovar a "Declaração Universal sobre Arquivos", em 2011, destacou o "papel essencial dos arquivos para (...) assegurar a memória individual e coletiva, e para compreender o passado, documentar o presente com vista a orientar o futuro".

Documentos —textuais, cartográficos, iconográficos, fonográficos etc.— são preciosas fontes de informação, e subtraí-los, extraviá-los, danificá-los ou destruí-los é pôr em risco a nossa memória. Sem memória, é impossível haver cultura e, sem cultura, nada resta da sociedade. Descuidar do patrimônio arquivístico, portanto, é o mesmo que abandonar uma parte de nós mesmos, de nossa humanidade.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Muniz Sodré - Sequela insuspeitada, FSP

 No rol dos efeitos da Covid longa, fala-se pouco de sequelas psicossociais. É que os discursos competentes se centram na biologia, passando ao largo dos componentes sociais e políticos da pandemia, de modo especial no caso brasileiro, em que o vírus foi secundado por outro tipo de morbidade, com sequela: a censura. Síndrome relevante, numa violação flagrante da letra constitucional de 1988, é a sua inoculação em organizações que patrocinam eventos culturais.

Fenômeno da repressão de manifestações, a censura pode ser conjuntural ou estrutural. No primeiro caso, o Estado é sujeito das ações constrangedoras, seja em períodos liberticidas como na ditadura militar, seja em cerceamentos que invocam uma legislação específica. Já a censura estrutural varia dos atos de controle dos discursos sociais até as inibições institucionais da liberdade artística. Está em vigência essa prática socialmente morbosa.

Repercutiu, assim, o cancelamento em Brasília de "O Grito", exposição de Marília Scarabello, que encenou visualmente numa lata de lixo o presidente da Câmara, o ex-ministro da Economia e uma senadora. Idêntica foi a censura em Porto Alegre da exposição "Desmonumentos", de André Parente, que já havia sido apresentada no Brasil e no exterior. O artista cria pluriexpressões (bandeiras, moedas, vídeos) em técnicas múltiplas. Numa das moedas, figuram como cara e coroa os rostos do ex-presidente da República e do seu herói torturador.

Detalhe de obra da artista Marília Scarabello na mostra 'O Grito!', que foi suspensa na Caixa Cultural, em Brasília
Detalhe de obra da artista Marília Scarabello na mostra 'O Grito!', que foi suspensa na Caixa Cultural, em Brasília - Reprodução

Não à toa esse expoente da flagelação provinha da terra gaúcha, assim como a maioria dos generais da ditadura e de outros influentes na hierarquia militar. O Blut und Boden (sangue e terra), que antecede o nazismo e por ele foi apropriado, é familiar ao colonato alemão. É uma fórmula identitária latente de branquitude e radicalismo. Pode ser a componente sulista no imaginário da extrema direita, associada ao tradicionalismo "gaudério", isto é, aos valores ruralistas de serranos catarinenses e gaúchos.

Valores de manada: lance-se ao mar o chefe de um bando de carneiros, e todos o seguirão. Mas não precisa seguir ao pé da letra a sugestão para comprovar a parábola do instinto levado ao cúmulo. Basta ponderar que instintos extremados em enraizamentos tradicionalistas contaminam a esfera pública e alienam a cidadania.

A repressão à ironia criativa de artistas tem gravidade política, porque é censura estrutural, ou seja, produto de um cínico radicalismo oficial que perpassa as organizações e incrementa mentiras. De outro lado, as criações expostas são figuras poéticas de uma verdade. A lata de lixo, as moedas são vibrações irônicas, suscetíveis de fazer reverberar na consciência a esclerose do discurso público que a estrutura doente, sequelada tenta manter.