terça-feira, 6 de junho de 2023

Alvaro Costa e Silva A república cristã vem aí, FSP

 Em "A Língua Submersa", romance recém-lançado de Manoel Herzog, estamos em meados do século 21. O Brasil não mais existe, faz parte da enorme região denominada Boliviana-Zumbi, uma república fundamentalista cristã. Quem manda no governo é a Igreja Bola de Fogo. A sociedade está dividida entre mandatários, oportunistas, empreendedores e marginalizados. A moeda se chama bênção. Ao artista resta a opção de emigrar para a China, caso não se dedique ao gospel, à literatura edificante, aos quadros decorativos e às encenações bíblicas.

A realidade caminha para superar a ficção. Reportagem do Intercept Brasil mostrou a relação que desde 2018 vem se estabelecendo entre a Igreja Universal e as forças de segurança. Foram mais de 70 encontros, orações, bênçãos e pregações com policiais militares, bombeiros, agentes da PF e militares do Exército e da Aeronáutica em 24 estados do país.

A BBC Brasil revelou como traficantes, que se declaram evangélicos, dominam favelas do Rio usando armas e símbolos bíblicos —a estrela de Davi está em muros, bandeiras e até em neons do chamado Complexo de Israel. A facção criminosa se autodenomina Tropa de Arão, referência ao irmão de Moisés. Pesquisadores classificam o fenômeno de narcopentecostalismo.

Um avião, da Igreja do Evangelho Quadrangular —liderada pelo ex-deputado Josué Bengtson, tio da senadora Damares Alves—, foi apreendido em Belém com 290 quilos de supermaconha. Damares integra a bancada evangélica, que, além de pressionar o governo para ampliar a isenção tributária, quer aumentar os benefícios de templos religiosos —imunidade para gastos na compra de aviões, por exemplo.

Em entrevista, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol justificou a subjugação da mulher diante do homem com um argumento infalível no Brasil de hoje. Segundo ele, tal interpretação está no Velho Testamento —e ponto final.

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Arma em área batizada de Complexo de Israel por chefe de grupo criminoso, segundo a polícia - Reprodução/Twitter

Dora Kramer - Bancada da toga, FSP

 Carece de melhor esclarecimento a declaração do presidente da República, dada há dias, de que não pretende repetir erros do passado na indicação de ministros ao Supremo Tribunal Federal. Qual seria exatamente a ideia?

Lula não explicou onde acha que errou, mas a escolha do advogado pessoal para integrar a corte fornece pista robusta, quase uma prova de que considera a independência dos magistrados uma falha no exercício da guarda constitucional.

O advogado Cristiano Zanin, indicado pelo presidente Lula ao Supremo Tribunal Federal, em sessão do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília - Ueslei Marcelino - 22.out.22/Reuters - REUTERS

Ao expressar arrependimento, ele dá margem a tal interpretação. Pior: confere ares de veracidade à versão corrente segundo a qual o Executivo cogita firmar aliança com o Judiciário, a fim de superar as dificuldades com o Poder Legislativo.

A se confirmar essa intenção, a tradução dela seria a de que o governo planeja fazer do STF um atalho, colocando os ministros na condição de pajens do Planalto na tarefa de compensar dificuldades nas tratativas com deputados e senadores.

Não parece que possa dar certo. Embora hoje os juízes sejam vistos como participantes do embate político e objetos de julgamento em suas decisões, uma aliança explícita seria obviamente malvista, além de agressiva ao princípio da autonomia equipotente dos Poderes.

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Numa breve consulta às internas do tribunal, constata-se rejeição ao suposto plano. Seria "o fim do mundo", diz um ministro. Outro reserva-se o direito de silenciar ante a ideia, o que em si já é uma resposta. Um terceiro permite-se sugestão melhor que a de investir na formação de um Supremo "amigo", algo semelhante a uma bancada da toga.

"Melhor seria que [Legislativo e Executivo] se entendessem e não viessem a nós com tanta frequência, pois o Supremo não é banca de advogados. As demandas chegam, somos obrigados a responder e, com isso, viramos alvos de insultos, nunca de reconhecimento", analisa o magistrado.

Recados dados, na corte espera-se que sejam anotados.

Projeto no Congresso quer liberar pagamento por doação de sangue, FSP

 Mateus Vargas

BRASÍLIA

Ministério da Saúde trabalha para barrar uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que libera o pagamento a doadores de sangue e a venda do plasma humano à indústria.

Se aprovada, a proposta reduzirá poderes da estatal federal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) —única farmacêutica autorizada a usar o material para a produção de medicamentos.

Integrantes da equipe da ministra da Saúde, Nísia Trindade, avaliam que acabar com a doação voluntária pode ainda aumentar o risco sanitário e de contaminação em transfusões.

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em evento no Palácio do Planalto - Adriano Machado/Reuters

Além disso, consideram que a PEC é uma tentativa de enfraquecer a estatal, pois poderia direcionar oferta de plasma para farmacêuticas privadas, inclusive do exterior, e reduzir o produto disponível para a Hemobrás.

"Não há indício de que doação paga melhora algo. Temos um padrão superior ao dos Estados Unidos, onde se remunera o sangue. Não é isso que melhora. É incentivar a doação", afirma o secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, Helvécio Magalhães.

"Hoje há absoluto controle de qualidade, levamos para quase zero as transmissões de HIV e hepatite nas transfusões, e parte [do controle] se deve a não comercializar a coleta".

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Apresentada pelo senador Nelsinho Trad (PSD-MS), a PEC 10/2022 recebeu assinaturas de outros 26 senadores de partidos da esquerda para a direita. Dois dos ministros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subscreveram a proposta: Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Carlos Fávaro (Agricultura).

O texto tramita na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania) do Senado, presidida por Davi Alcolumbre (União Brasil-AP). Ele também assinou a sugestão.

Relatora da proposta, a senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) elaborou parecer favorável à aprovação. A comissão vai realizar audiência pública sobre a PEC antes de votar o texto.

No projeto, Trad afirma que existe desperdício de bolsas de plasma no Brasil. O senador cita dados de uma auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) que apontou perda de cerca de 600 mil litros, equivalentes a 2,7 milhões de doações.

"Outro ponto importante é que, com a pandemia, a coleta de plasma apresentou queda em nível mundial, inclusive nos Estados Unidos da América e em alguns países da Europa que são os maiores coletores do mundo", diz a proposta.

Trad disse à Folha que o Brasil precisa aperfeiçoar a doação de plasma por plasmaférese, processo em que o plasma é retirado do sangue coletado e uma máquina devolve as hemáceas e outros elementos ao doador.

Criada em 2004, a Hemobrás ficou marcada por apuração da Polícia Federal sobre fraude em licitação de obras e atrasos para finalizar a sua fábrica.

Mas a estatal afirma que não há mais problema de desperdício de plasma, pois o produto das coletas feitas no Brasil voltou a ser fracionado no exterior e entregue ao SUS.

A Hemobrás recolhe o plasma excedente dos hemocentros, ou seja, que não é usado em transfusões, trata o produto e envia para o fracionamento. Essa última etapa, que serve para isolar componentes do plasma, hoje é feita em farmacêutica na Europa.

A estatal recebe os medicamentos de volta, como a imunoglobulina, e distribui para atender parte da demanda da rede pública. A ideia da empresa é realizar todas as etapas no Brasil a partir de 2025 ao finalizar a sua fábrica, instalada em Goiana (PE).

A discussão sobre a PEC ocorre no momento em que a Saúde tem dificuldade de abastecer o SUS com hemoderivados como a imunoglobulina.

Nos últimos anos, a pasta tem recorrido a compras de mais de R$ 300 milhões por medicamentos não registrados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), feitos com plasma estrangeiro.

Esse medicamento é utilizado no tratamento de diversas doenças, entre elas o HIV e imunodeficiências. Desde 2018 o governo acumula compras frustradas e disputas na Justiça e no TCU por causa da imunoglobulina.

Em nota, a Hemobrás afirma que as bolsas de plasma foram perdidas entre 2016 e 2020, período "em que a estatal ficou impedida de exercer sua missão institucional".

Nesse intervalo a empresa que estava contratada para o fracionamento, a francesa LFB, perdeu a certificação da Anvisa e não pode lidar com o produto brasileiro. Além disso, a Saúde decidiu assumir a gestão do plasma e retirar poderes da estatal.

Depois de retomar a gestão do plasma brasileiro, a Hemobrás voltou a enviar o produto para ser fracionado e fornecer a imunoglobulina ao SUS. A empresa, porém, ainda não atende toda a demanda do ministério.

Para o secretário Helvécio Magalhães, os governos Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL) tentaram esvaziar a Hemobrás. O último governo avaliou colocar a empresa à venda.

"O descarte [do plasma] fez parte da intencionalidade desses governos de destruir a Hemobrás e a iniciativa nacional da indústria. Temos outro pensamento, a pandemia mostrou que o Brasil está vulnerável no complexo industrial da saúde, não tinha nem mesmo máscara disponível", disse ele.

Uma PEC para ser aprovada precisa de três quintos dos votos de cada casa, em discussões de dois turnos.

"A Hemobrás entende que a doação de sangue altruísta é uma cláusula pétrea, não havendo espaço, assim, para a doação remunerada. Nos últimos anos, conseguimos avançar em todo o processo produtivo da cadeia do sangue. Isso garantiu segurança na doação e permitiu o sucesso da indústria de hemoderivados", disse a estatal.

Em nota, os conselhos de secretários de Saúde dos estados (Conass) e municípios (Conasems) pediram a reprovação da PEC, afirmando que pode "provocar uma grande concorrência pelo plasma brasileiro e inviabilizar a Hemobrás".

"O grande gargalo hoje para o seu pleno funcionamento é justamente a falta de plasma industrial no Brasil", afirmam os conselhos.

Já a ABHH (Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular) apoiou parte da PEC que trata da autorização de farmacêuticas privadas na comercialização e fracionamento do plasma excedente do Brasil.

"Entretanto, sobre a doação remunerada de plasma para fins industriais, a ABHH neste momento emite posição contrária. Entendemos que o excedente atual de plasma proveniente de doação voluntária de sangue não é devidamente aproveitado, corroborando para a não liberação desta prática no Brasil."