domingo, 21 de maio de 2023

Samuel Pessôa - A história do impeachment de Dilma, FSP

 Samuel Pessôa

Fernando Limongi, professor titular de ciência política da FFLCH da USP e professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV, lançou na sexta-feira (19), pela editora Todavia, "Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato", com a narrativa dos fatos históricos que geraram o impeachment de Dilma, votado na Câmara em 17 de abril de 2016 e no Senado em 31 de agosto.

Limongi, quase que obsessivamente, nos presta um serviço público: por meio de uma narrativa fluente e enxuta em 168 páginas, acompanhamos em ritmo de thriller a sequência detalhada dos fatos. Todas as referências às notícias da imprensa da época que documentam a reconstituição histórica meticulosa de Limongi estão em 649 notas nas 100 páginas a elas dedicadas em letras pequenas no final do livro.

De roupa azul marinho e em frente a uma estante com livros, a ex-presidente Dilma Rousseff, em seu apartamento,em Porto Alegre (RS); ela tem o rosto virado para a sua esquerda
A ex-presidente Dilma Rousseff em seu apartamento - Lucas Lima - 22.jul.19/UOL/Folhapress

A edição cuidadosa contém referências bibliográficas e um índice remissivo, que facilita em muito a vida do leitor para recuperar fatos e personagens.

A tese principal do livro, sugerida pela reconstituição dos fatos, é que o impeachment de Dilma foi totalmente diferente do de Collor. Se neste o quarteto crise econômica, povo na rua, falta de articulação política e ocorrência de todos esses fatos no início do mandato explica o impeachment, não é o mesmo caso para Dilma.

Dilma conseguiu por pelo menos duas vezes recentralizar seu governo. Em setembro de 2015, após o MBL dispensar os serviços de Ives Granda Martins e "bater à porta de Hélio Bicudo" —que, assessorado pela também jurista Janaina Paschoal, preparou um novo pedido—, Dilma promoveu uma reforma ministerial. O PMDB recebeu duas pastas adicionais —Saúde, para o deputado do Piauí Marcelo Castro, e Ciência e Tecnologia, para o deputado do Rio de Janeiro Celso Pansera.

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Como escreveu Limongi, "a reforma ministerial, portanto, marcou a reaproximação de Dilma e Lula, responsável direto pela reaproximação bem-sucedida com o grupo de Jorge Picciani".

No segundo momento, no início de 2016, em seguida ao Supremo ter, em dezembro de 2015, derrubado o rito estabelecido pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, deixando o processo em suspenso até fevereiro de 2016, houve o afastamento das principais lideranças políticas do impeachment. Como escreveu Limongi, "o clima político era outro. O impeachment havia saído da pauta. Tudo indicava que o calendário eleitoral seria seguido".

Nesse momento, voltou-se a tratar da agenda econômica. O governo, por meio do ministro Nelson Barbosa, ensaiou uma reforma da Previdência e um teto de gastos.

Nesse momento de distensão, a Lava Jato contra-ataca. Primeiro com a Operação Acarajé, em 22 de fevereiro, com 51 mandados, entre eles o de prisão para o marqueteiro de Dilma, João Santana. E, em seguida, em 4 de março, com a Operação Aletheia, com o mandado de condução coercitiva de Lula.

Esses movimentos da Justiça deixaram claro para os políticos que a Operação Lava Jato não iria ficar somente nos executivos das empresas nem somente nos políticos petistas. Iria alcançar a todos eles. Em uma ação de salvamento desesperada, o impeachment foi a saída que os políticos encontraram para tentar "estancar a sangria" promovida por Curitiba e pela Procuradoria-Geral da República na pessoa do procurador Rodrigo Janot.

Se entendi corretamente, essa é a narrativa de Limongi. E é nesse sentido que o impeachment de Dilma seria intrinsicamente distinto do de Collor: com erros e acertos, Dilma fez política. O que ela não conseguiu entregar foi o silenciamento da Lava Jato, aliás, produto que Temer também não entregou.

Adicionalmente, o fato de que, após sete anos do impedimento de Dilma, os políticos não se movimentaram para alterar a lei de impeachment de 1950, uma simples lei ordinária, sinaliza que a classe política gosta de ter à mão esse "remédio amargo" de solução de crises políticas agudas.

Celso Rocha de Barros - A culpa foi do impeachment de Dilma?, FSP (definitivo)

 A editora Todavia acaba de publicar um livro muito bom: "Operação Impeachment", de Fernando Limongi. Trata-se de um dos maiores cientistas políticos brasileiros, autor, com Argelina Figueiredo, de um trabalho clássico que mostrou que o presidencialismo de coalizão funcionava bem melhor do que se acreditava.

Em "Operação Impeachment", a proposta de Limongi é simples: com base exclusivamente em fatos noticiados pela imprensa (que eram, portanto, de conhecimento dos atores políticos quando tomaram suas decisões), Limongi conta a história que começa nos conflitos internos do primeiro mandato de Dilma e desemboca no impeachment.

Há, entretanto, um arcabouço teoricamente informado que conduz o texto.

A ex-presidente Dilma Rousseff
A ex-presidente Dilma Rousseff - Lucas Lima - 22.jul.2019 - UOL/Folhapress

Quando Limongi descreve as ações de Dilma ou de seus adversários, está sempre se perguntando: por que aqueles mecanismos que antes funcionavam no presidencialismo de coalizão não funcionaram em 2016? Limongi está conversando com sua própria obra e com 30 anos de ciência política brasileira.

Por outro lado, Limongi não está interessado nos grandes discursos sobre o impeachment. Não tem maior interesse em discutir se foi ou não foi golpe: o que lhe interessa é justamente o fato de que as instituições ainda estavam ali, mas deixaram de funcionar.

Tampouco tem paciência com a historinha "a gente pegou o PT roubando aí foi lá e derrubou a Dilma". As delações da Lava Jato mostram um cartel de empreiteiras que funcionava havia décadas e financiava todo mundo, inclusive todo mundo que fez o impeachment.

A tese "o problema foi que a Dilma era inábil" é acolhida com bem mais ressalvas do que de hábito: mesmo que Dilma tenha falhado, jogou duro contra seus adversários, ganhou por muitos anos e esteve longe de ser a única que jogou errado.

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Limongi também demonstra saudável ceticismo diante da ideia, comum entre alguns petistas, de que Lula no lugar de Dilma teria resolvido todas as crises políticas.

Mas se Dilma jogou, por que caiu? A explicação, segundo Limongi, é a Lava Jato.

Não porque as descobertas da operação tenham inspirado um movimento de massas que derrubou a presidente. Os políticos brasileiros fizeram o impeachment para se defender da Lava Jato, pois não acreditavam mais que Dilma seria capaz de pará-la.

O cientista político Fernando Limongi, que lança "Operação Impeachment", livro sobre a queda de Dilma Rousseff, em sua casa na zona oeste de São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Leitores antigos da coluna sabem que essa também é minha interpretação. No final, a Lava Jato foi mesmo desmontada pela rapaziada que estava do lado de Deltan Dallagnol no discurso da semana passada. Mas a centro-direita que fez o impeachment foi dizimada na eleição de 2018, com consequências terríveis para a democracia brasileira daí em diante.

O que o livro de Limongi nos obriga a perguntar é qual teria sido a reação produtiva do sistema político às revelações da Lava Jato. Do ponto de vista do interesse racional dos atores que fizeram o impeachment, que alternativa havia? Aceitar a prisão quando suas conexões com o cartel das empreiteiras fossem reveladas? Do ponto de vista do país, só havia as alternativas "acordão" e "cruzada fratricida"?

De qualquer forma, o livro de Limongi é importante para mostrar que há muito que vale a pena reconstruir no sistema político brasileiro depois de uma década em que raramente desperdiçamos a chance de virar na curva errada.