Grande parte das casas editoriais no Brasil são aparelhos ideológicos. Existem as chiques de esquerda que só publicam os golden boys e as golden girls. Existem aquelas que só publicam mulheres ou outras identidades militantes.
Existem as que recusam figuras dúbias do ponto de vista da pureza conservadora. Existem as business-oriented que buscam apenas publicar quem vende, mesmo que a figura seja totalmente inconsistente —basta que ela tenha um bom engajamento nas redes. Existem, claro, exceções.
Esse mapa impede que autores importantes sejam publicados aqui. Há um verdadeiro ponto cego editorial.
Um dos autores mais lidos na França hoje é o visconde Olivier de Kersauson de Pennendreff, marinheiro e velejador. Politicamente, ele é inclassificável, o que já atrapalha diante da miopia que a hiperpolitização do mundo nos causa. Apesar de muito lido, Kersauson não tem nada a ver com literatura motivacional, autoajuda, coaching ou qualquer picaretagem do tipo "foguete não anda de ré".
O autor carrega em si a tradição francesa que reúne figuras como Pascal, Montaigne, Bossuet, La Bruyère, La Rochefoucauld —todos do século 16 ou 17— e mesmo Cioran, do século 20.
Trata-se da tradição moralista francesa, caracterizada pela análise fina da natureza humana, essa mesma que dizem que não existe, apesar de ela se espraiar pela psicologia, política, sociologia, para quem não tem o hábito de mentir. Nosso cotidiano de trabalho, familiar, amoroso, é afogado em natureza humana.
Por ser um autor contemporâneo –Kersauson tem hoje 78 anos– sua escrita traz elementos absolutamente atuais. O senso histórico nele é agudo.
Não se trata de um nostálgico, apesar de reconhecer que escolheu uma profissão arcaica —marinheiro– e ter vivido mais tempo entre as estrelas e o mar. Reconhece que aos 78 anos já se trata de uma pessoa irrelevante para o mundo, que, segundo ele, deve ser tocado por pessoas de 20 anos, as únicas que transitam pelo circo das aparências eletrônicas às quais a vida foi reduzida –termos dele.
Como todo moralista, escreve textos curtos e de fácil entendimento. O que importa, o que ele chama de "potência da verdade", está no detalhe. Aliás, o título do seu último livro, lançado agora em janeiro, é "Veritas tantam potentiam habet ut non subverti possit" –em latim mesmo– que significa "a verdade tem uma tal potência que ela não pode ser aniquilada". O autor é conhecido por títulos peculiares.
Kersauson percebe como o mundo se tornou mediocremente igual –palavra, que aliás, ele detesta. Viajar, um dos seus temas predileto, afinal, ele sempre foi um marinheiro, virou algo banal.
Em Palermo, pede-se hamburguer, em Paris, pizza. Nada mais é diferente, apesar de toda a masturbação mental sobre "a diferença". Traço este que é fruto do sucesso da estupidez capitalista.
Aliás, a mania das identidades é fruto do fato de que as pessoas são um nada. Nada fazem de significativo. A militância pelas identidades não é signo de "progresso", mas de miséria psicológica e social.
O paladar das crianças foi destruído porque não existe mais cozinha materna. Apesar de todo o blábláblá sobre maternidade, a função está em extinção porque é considerada menor.
Desde 1968, ninguém mais quer educar criança nenhuma. Educar uma criança, ao contrário do que as diatribes modernas pregam, é ensiná-los a comer à mesa, respeitar os mais velhos, não interromper quando outras pessoas estão falando, tomar banho, arrumar suas coisas. Desde 1968 impera uma total irresponsabilidade, preguiça e modismos no terreno da educação escolar e familiar.
Kersauson crítica a mística que seus contemporâneos atribuíram a revolução de 1789, que, para ele, revelou sua verdadeira natureza nos massacres perpetrados em nome dela. Quer conhecer a natureza de um revolucionário? Veja como ele se apraz em matar. Com isso, ele derruba toda a mística política dos últimos dois séculos.
Ao final, é a impotência que nos arrasa desde sempre. A verdade fundamental da natureza humana é o terror. E, contra a verdade, não se pode nada.