quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

PAULO CESAR DE ARAÚJO Como uma frase nunca dita por Pelé o perseguiu por décadas, FSP

 Paulo Cesar de Araújo

Historiador e jornalista. Autor, entre outros livros, de "Eu Não Sou Cachorro, Não", "Roberto Carlos em Detalhes" e "O Réu e o Rei"

[RESUMO] Pelé nunca declarou que os brasileiros não sabem votar, ao contrário do que indicou o título de uma reportagem do Jornal do Brasil de novembro de 1977. Apesar dos seguidos desmentidos do jogador, a frase foi interpretada como uma justificativa de atos da ditadura militar, teve ampla repercussão na imprensa e o acompanhou por longos 45 anos.

"Brasileiro não sabe votar." Quantas vezes você já ouviu essa frase associada ao nome de Pelé? Por causa dela, o jogador foi criticado, cobrado, zombado. "Pelé tinha mais é que pendurar a língua junto com as chuteiras", disparou certa vez O Pasquim.

Mas você conhece o áudio ou o vídeo dessa fala do rei do futebol? Já leu essa afirmação textual em alguma entrevista dele para um jornal ou uma revista? Não, nunca, porque essa declaração não partiu da boca de Pelé. Foi atribuída a ele por uma interpretação do Jornal do Brasil na edição de 24 de novembro de 1977, semanas depois de o jogador se despedir do futebol.

Pelé no Festival de Cannes, em 1981
Pelé no Festival de Cannes, em 1981 - Ralph GATTI / AFP

Naquele dia, em uma iniciativa da Arena, partido da ditadura militar, Pelé seria homenageado no Congresso por "sua ação diplomática em favor da imagem do Brasil no exterior". Na véspera, já em Brasília, ele se encontrou com o então ministro da Justiça, Armando Falcão, para tratar da liberação de um filme em que atuaria como ator. Foi uma audiência de menos de meia hora, mas que acabaria custando muito caro a Pelé.

À saída, cercado de um grupo de jornalistas, ele concedeu uma coletiva improvisada, falando de cinema, futebol e política. O resultado apareceu nos jornais no dia seguinte, com a foto do jogador ao lado do então ministro. A reportagem mais explosiva foi a do Jornal do Brasil, um texto não assinado intitulado "Pelé diz que brasileiro não sabe votar depois de uma troca de ideias com Falcão".

Ressalte-se que nenhum dos outros jornais presentes àquela coletiva citou a tal frase em suas matérias.

PUBLICIDADE

Segundo O Globo, Pelé afirmou que o povo "devia se interessar mais por política, pois só assim as coisas vão melhorar" e que "o eleitor vota por amizade, não por ter no candidato um grande político ou administrador". Na versão de O Estado de S. Paulo, Pelé disse que "o povo precisa saber mais para pedir mais". "É claro que existe uma estrutura impedindo uma maior participação. Mas, se o povo procurar aprender um pouquinho mais, nós poderemos ir muito longe." Por sua vez, Folha apenas registrou que Pelé "parece querer trilhar os caminhos da política". "Pelo menos já está fazendo declarações como um autêntico político."

A frase "brasileiro não sabe votar" não está sequer no corpo do texto do próprio JB, apenas no título, sem aspas, e posta ali por alguém que não entrevistou o jogador. A matéria era enviada sem título da sucursal de Brasília. Na Redação no Rio, recebeu o tratamento final pelo editor, redator e copidesque.

Porém, para azar de Pelé, isso aconteceu justo no Jornal do Brasil, na época o mais influente e prestigioso órgão da imprensa brasileira. Se "deu no JB", ninguém sairia ileso de uma notícia com aquele título, ainda mais no contexto da ditadura militar.

Meses antes, o presidente Ernesto Geisel havia outorgado o Pacote de Abril, que continha medidas como a instituição dos senadores biônicos e a manutenção de eleições indiretas para presidente, governador e prefeito de capitais. Nesse caldeirão, a frase de Pelé parecia justificar os atos antidemocráticos do regime, reforçada pelo complemento de que ele tinha dito aquilo "depois de uma troca de ideias com Falcão".

Quem titulou a matéria do JB teve a clara intenção de mostrar o jogador como uma espécie de marionete do governo, alguém que emite uma opinião política depois de ouvi-la do ministro-censor. No entanto, isso não se comprova lendo as reportagens daquela entrevista coletiva, incluindo a do próprio Jornal do Brasil. Não há referência de que Pelé e Armando Falcão falaram de voto popular na reunião. O título, portanto, é mesmo enganoso.

A repercussão, porém, foi imediata e, ao chegar ao Congresso para receber a homenagem da Arena, Pelé se deparou com os punhos cerrados do MDB, em um pelotão liderado pelo presidente do partido à época, Ulysses Guimarães. "Pelé é bom de bola, mas ruim de história. Os adversários da Abolição também diziam que os escravos não estavam preparados para a liberdade."

Com o recorte da matéria do JB nas mãos, o deputado Aírton Soares (MDB-SP), ameaçava, em uma questão de ordem, questionar o rei do futebol. "Ele renegou a sua origem, o seu povo, a sua raça e assumiu uma posição elitista", salientava o deputado Tarcísio Delgado (MDB-MG).

No mesmo dia, o deputado estadual Edson Khair (MDB) também protestou na Assembleia carioca: "Pelé é o gênio da bola e só pode agir mesmo com os pés, porque com a cabeça ele mostrou que não pensa".

Assustado com a repercussão, Pelé subiu ao plenário do Congresso para agradecer a homenagem e, pela primeira vez, tentar se explicar pela declaração que não havia feito: "Acredito que houve um mal-entendido. O que eu quis dizer foi o seguinte...".

A polêmica parecia boa demais para ser encerrada com um discurso de Pelé. Daí que os mesmos jornais que não tinham atribuído a frase a ele agora a repercutiam.

"Ao explicar sua afirmação de que o povo brasileiro não sabe votar, Pelé disse que...", escreveu no dia seguinte O Globo. A Folha também publicou que, "advertido pela reação a seu palpite infeliz, Pelé tentou remendar o que dissera, mas a ninguém conseguiu convencer". O Pasquim viu um prato cheio na controvérsia e logo levou às bancas uma "edição revista, comentada e ilustrada" com a tal frase do jogador, incluindo até uma foto da matéria original do JB.

A rigor, aquilo que Pelé teria afirmado sobre o povo brasileiro era dito havia tempos por muita gente, de direita e de esquerda, especialmente quando seus candidatos perdiam eleições. Boa parte das pessoas, no entanto, jamais aceitaram quando a frase foi supostamente proferida por Pelé, que era cobrado por suas declarações políticas ou pela falta delas e por não aderir à pauta do movimento negro.

Ao marcar o que se acreditava ser seu milésimo gol, na noite de 19 de novembro de 1969, o jogador poderia tê-lo dedicado à sua mãe, que faria aniversário no dia seguinte, mas, na emoção do momento, apelou em favor das crianças pobres do país. Foi chamado de demagogo e oportunista. O cronista Paulo Mendes Campos, por exemplo, considerou aquele gesto "um horror".

Parte da sociedade cobrava de Pelé posições de esquerda. Era o tempo das chamadas patrulhas ideológicas, que tinham no cartunista Henfil um de seus principais militantes. Por várias vezes, ele escrevia o nome de Pelé nas lápides do Cemitério dos Mortos-Vivos, seção de O Pasquim que "enterrava" pessoas julgadas simpatizantes ou omissas em relação à ditadura. Junto com o rei, desciam ao "túmulo" personalidades como Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Roberto Carlos.

Não por acaso, "Pelé diz que brasileiro não sabe votar" encontrou um terreno fértil e vários outros chargistas, colunistas, cronistas, leitores em cartas para a Redação (a mídia social da época) jogaram suas cargas de pau sobre o Rei. Como observou João Moreira Salles, "amar Pelé foi sempre mais difícil". "Pelé jamais caiu. Ao contrário, subiu, subiu e lá ficou. É uma altura que oprime. Sendo impossível não gostar do jogador, o homem se tornou o alvo."

O ex-atleta seguiria negando aquela famigerada declaração. "Fizeram uma onda enorme em torno de uma coisa que eu não disse", garantiu em 1978 para a revista Manchete e reafirmou em uma entrevista à Playboy, em 1980. "O que eu quis dizer é que o povo brasileiro precisa levar mais a sério o voto, não votar em Cacareco, em Pelé ou em Zico, porque isso não leva o Brasil a nada. Fui dizer isso e modificaram tudo."

Quatro anos depois, ao apoiar a campanha das Diretas Já, Pelé foi novamente cobrado pela frase que o perseguia como uma sombra do passado. "Eu nunca disse aquilo. Quem deturpou minhas palavras foi um jornalista leviano", repetiu para a Manchete. Em 1993, entrevistado por Juca Kfouri, desabafou mais uma vez: "Repito que não disse que o povo não sabia votar, apenas pedi que votassem com seriedade".

Porém, de nada adiantaram seus seguidos desabafos e desmentidos. Aquela frase colou feito tatuagem em Pelé e foi muito lembrada, sem maiores questionamentos, nas recentes reportagens sobre a sua morte, aos 82 anos. Sim, agora Pelé não está mais aqui para se explicar e se defender por suposta ofensa ao nosso povo.

Neste texto, eu faço isso por ele, como uma forma de homenagem (e imperativo de justiça) não apenas a Pelé, o ídolo eterno, mas também a Edson, como ele gostava de se ver, que, por longos 45 anos, no meio de quase todas as entrevistas, se deparava com uma mesma e indefectível pergunta: "Por que você acha que o brasileiro não sabe votar?".

A radicalização dos idosos, Mariliz Pereira Jorge, FSP

 É fácil desdenhar e afirmar que entre os golpistas há um bando de velhos que deveria voltar para o bingo. Falamos em delírio coletivo, saudosismo ou demência sobre gente que acampou em frente aos quartéis e participou da quebradeira, mas a radicalização dos idosos precisa ser olhada com lupa.

Manipulação, abuso e controle emocional são ingredientes usados pela extrema direita para cooptar seguidores, e os idosos foram alvo fácil da seita bolsonarista. Os não ativos digitais têm ainda mais dificuldade de lidar com notícias falsas, teorias da conspiração, trolls e deep fakes.

Idoso bolsonarista no prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Gabriela Biló/Folhapress

Não à toa "gaslighting" foi eleita a palavra de 2022 pelo dicionário Merriam-Webster, impulsionada pelo aumento de tecnologias usadas para dominar as pessoas, especialmente em contextos políticos. Sem tradução literal, pela definição é a prática de enganar alguém de forma rudimentar e ter alguma vantagem.

"Gaslighting" começou a ser usada há poucos anos para definir abuso em relacionamentos amorosos, inspirada na peça "Gas Light", de 1938. O personagem principal tenta convencer a mulher de que ela está ficando louca quando reclama que a luz está mais fraca —o marido diz que é sua imaginação.

Exatamente o que acontece sempre que Bolsonaro, parlamentares e blogueiros apoiadores dizem algo inacreditável para a maioria de nós, mas que passa a ser verdade entre seus seguidores. Ao contestarem encontrarão resistência em seus próprios grupos, então passam a aceitar o inaceitável.

Há, obviamente, gente mau-caráter, consciente do que faz, dos danos que provoca à democracia. Mas a massa de manobra, importante para manter o bolsonarismo ativo, não ficou alienada da noite para o dia. O que a extrema direita fez foi lhes dar a ilusão de que participam de algo grandioso. Ao abraçarem a seita bolsonarista, os idosos suprem carências afetivas, encontram um novo propósito de vida, o senso de pertencimento que muitos perderam à medida que envelheciam, inclusive pelo abandono da própria família.

PUBLICIDADE

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Tarcísio nomeia PM citado no processo do Carandiru para vaga na Administração Penitenciária, OESP

 O governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) nomeou o policial militar citado no processo do massacre do Carandiru Sérgio Souza Merlo para o cargo de Assessor Técnico de Gabinete na Secretaria de Administração Penitenciária.

Na peça original apresentada pelo Ministério Público de São Paulo, o então primeiro-tenente foi denunciado por lesão corporal. O processo contra Merlo, que hoje é coronel aposentado, foi considerado extinto em primeira instância.

Merlo não fez parte do grupo acusado de matar 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo em outubro de 1992, mas é citado por participar de uma varredura das celas em um segundo momento da operação, dedicada à triagem dos presos já rendidos. A investigação apontou que a ação culminou na agressão a detentos.

Multidão de parentes e curiosos lota a entrada da Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, em espera apreensiva pelo final do confronto entre detentos e policiais.
Multidão de parentes e curiosos lota a entrada da Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, em espera apreensiva pelo final do confronto entre detentos e policiais.  Foto: HEITOR HUI/ESTADÃO

A nomeação de Merlo foi efetivada no Diário Oficial do Estado no último sábado, 14. Nesta terça-feira, a publicação ainda registrou gratificações salariais concedidas a ele decorrentes da função que vai assumir - o prêmio de desempenho individual e o adicional de periculosidade.

Em nota, a Secretaria da Administração Penitenciária defendeu que “as nomeações da Pasta são realizadas exclusivamente com base em critérios técnicos” e ressaltou que Sérgio Merlo é bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco e “tem mais de trinta anos de experiência na Administração Pública”.

Situação semelhante ocorreu no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, quando o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, indicou o coronel Nivaldo Restivo para assumir o comando da Secretaria Nacional de Políticas Penais. No caso do massacre do Carandiru, Restivo também é citado na operação de varredura e foi acusado de omissão. Ele desistiu de assumir o cargo após pressão do PT e de movimentos sociais.

Durante uma década, o processo do massacre do Carandiru ficou travado aguardando uma decisão definitiva sobre quem deveria julgar os policiais: a Justiça militar ou a Justiça comum. Eles só foram a júri popular entre 2013 e 2014. Os julgamentos precisaram ser fatiados por causa do número de réus.

Desde então, o caso tem sido marcado por reviravoltas judiciais. O Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a anular as condenações e a determinar novos julgamentos por considerar que a acusação não conseguiu apontar exatamente qual a culpa de cada policial. Em um novo capítulo do processo, que soma mais de 100 mil páginas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) restabeleceram a decisão dos jurados. A discussão agora é sobre a dosimetria das penas, que a defesa considera excessivas. O processo está suspenso no Tribunal de Justiça de São Paulo por um pedido de vistas.