segunda-feira, 31 de outubro de 2022

GIOVANA MADALOSSO - Desce a mamadeira de despiroca, FSP

 

Giovana Madalosso

Escritora, é autora de "Tudo Pode Ser Roubado" e "Suíte Tóquio" e colunista da plataforma de mudanças climáticas Fervura

Garçom, desce uma mamadeira de despiroca que hoje eu quero comemorar. Sei que agora temos que nos unir como nação, mas isso eu faço amanhã, se sobrar fígado. Hoje eu quero é abraçar quem sofreu comigo esse pesadelo e lutou para que não tivesse bis.

Vem colar sua alma lavada na minha, ambientalista, feminista, pacifista, filho constrangido de terraplanista, psicólogo de fascista, cicloativista, jornalista chamada de quadrúpede.
Vem brincar no meu plexo, fiscal desmoralizado do Ibama, subalterno de meritocrata branco de família rica, rainha dos baixinhos, menina de 14 anos, vítima de violência doméstica e política. Vem, nordestino, mãe solo, casal de Josés, gente que não cabe na régua da família de bem —bem para quem? Vem sem-terra, sem-teto, sem-absorvente, sem-distintivo, sem-patente, sem direito trabalhista, sem lei de incentivo.

Vem chorar de emoção no meu cangote, minha irmã lésbica, minha amiga preta que temia pelos filhos, minha filha de dez anos que não contava para os colegas em quem eu ia votar por medo de passar o recreio sozinha, meu amigo cientista que perdeu a bolsa de pesquisa e teve que deixar para trás o seu país.

Vem ganhar um cheiro, meu colega Julián Fuks, ameaçado de morte por cometer o atentado da escrita. Vem, Giovana, abraçar a Giovana, que muitas vezes sentiu medo de publicar essas colunas. Vem, 33 milhões de estômagos tristes e peitos magros, médicos do SUS, torturados pela ditadura, mulher que foi espancada por votar 13, meninos contaminados pela água do garimpo.

Vamos bater os pés, yanomamis, ticunas, krenaks, kokamas, macuxis e todos os outros povos indígenas. Que as 680 mil ossadas lá embaixo escutem o nosso barulho.

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Alegria de democrata é frágil e às vezes dura pouco. Então se enrola na bandeira que haviam roubado de nós, capricha na caipirinha de limão sem veneno e vamos beber para não esquecer. Não vamos esquecer nunca.

O QUE A FOLHA PENSA - A chance de Tarcísio

 A vitória de Tarcísio de Freitas (Republicanos) na disputa pelo governo paulista é, sem dúvida, o feito mais vistoso do bolsonarismo nestas eleições. Mas, além de não ser considerado um seguidor radical no plano ideológico, o ex-ministro se apresenta com perfil técnico.

Em sua passagem pela pasta da Infraestrutura, comportou-se como um gestor discreto e diligente —o bastante para destoar do padrão de incompetência escandalosa da grande maioria de seus colegas na Esplanada brasiliense.

Carioca, de origem militar e ocupante de cargos importantes nos governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB), Tarcísio começou a campanha como um quase desconhecido do eleitorado do estado mais rico e populoso do país. O seu conhecimento da realidade paulista foi motivo de contestações dos adversários.

Abraçou, com titubeios posteriores, teses equivocadas na área de Segurança Pública, na tentativa de agradar ao corporativismo policial —uma das bases bolsonaristas mais importantes. Cometerá um erro grave se de fato acabar com o bem-sucedido programa de câmeras corporais nas fardas da PM.

Protagonizou episódio rumoroso quando uma visita à favela de Paraisópolis, na capital, foi interrompida por um tiroteio.

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Tarcísio superou forças que predominaram na política paulista ao longo de quase três décadas —o PSDB, que ocupa o Bandeirantes desde 1995, e o PT, que chegou ao segundo turno com o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad.

Terá condições políticas e orçamentárias favoráveis para um bom governo, se fizer as escolhas corretas. O estado mantém suas finanças em ordem e teve sua arrecadação alavancada a partir de 2021.

É preciso, porém, avançar em qualidade da educação, linhas metroviárias e ferroviárias, despoluição de rios e combate ao crime patrimonial, além de partilhar da carência nacional na saúde.

O eleito não deverá ter maior dificuldade em negociar com legendas ao centro, seja na Assembleia Legislativa, seja no plano nacional. O ex-prefeito da capital Gilberto Kassab, expoente do PSD, é um aliado de primeira hora.

Será interessante, daqui para a frente, observar a relação de Tarcísio —agora o principal representante do bolsonarismo legitimado pelas urnas e no comando do segundo maior Orçamento do país— com o futuro presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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O QUE A FOLHA PENSA Ao centro, Lula

 Luiz Inácio Lula da Silva, 77, tornou-se neste domingo (30) o primeiro brasileiro a ser eleito por três vezes para a Presidência da República. Sua vitória e, dentro de dois meses, sua posse consagrarão a alternância de poder e a solidez da democracia brasileira.

Lula conquista o novo mandato graças, em parte, à memória de realizações durante sua passagem pelo governo. Em seus momentos mais virtuosos, o petista soube aproveitar com responsabilidade as vantagens do bom momento econômico global na década retrasada e das transformações demográficas do Brasil.

Muito do triunfo lulista se deve também à firme e mais do que justificada rejeição de metade do eleitorado a seu oponente, Jair Bolsonaro (PL), o primeiro presidente a perder a disputa no cargo desde que o país adotou a reeleição.

O ímpeto autoritário, a truculência, a inoperância e o desmazelo de Bolsonaro facilitaram a campanha de Lula, que se deu ao luxo de sonegar ao eleitor o detalhamento de seus planos econômicos para um governo que se afigura difícil.

O presidente eleito —com a menor margem de votos desde a redemocratização— é também rejeitado por parcela expressiva e influente da sociedade, seja pelos escândalos de corrupção durante suas administrações, seja pela ruína econômica operada por sua sucessora, Dilma Rousseff, seja pela pauta ideológica abraçada por vezes de forma intolerante pelo PT.

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Deverá enfrentar no Congresso uma oposição mais ampla e radical que a de 20 anos antes. O bolsonarismo e outras forças à direita conquistaram posições importantes no Legislativo e nos estados.

Não poderá esperar uma conjuntura internacional favorável, ao menos de pronto. A guerra na Ucrânia e a alta da inflação e dos juros em todo o mundo elevaram os riscos de recessão. No plano doméstico, as finanças do governo exigem ajuste crível e rigoroso.

Por tudo isso, Lula precisa dar mostras imediatas de responsabilidade orçamentária e disposição de rumar ao centro, política e economicamente. Deve se cercar de especialistas e quadros qualificados, para além do raio estreito do partido e de aliados à esquerda.

Sem definir uma regra fiscal que assegure a solvência da dívida pública, não haverá dinheiro para as demandas prementes em educação, saúde e assistência social. Sem permitir que a economia funcione com liberdade e competição, não haverá o crescimento sustentado essencial para reduzir a pobreza.

Acaba a propaganda de campanha, começam as responsabilidades de governo. A democracia estará fortalecida se o país for capaz de superar ideias e práticas que obstruem seu desenvolvimento.

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