domingo, 21 de agosto de 2022

O pária arrisca ajudar o bloqueio da exportação de soja brasileira, Elio Gaspari, FSP

 Em novembro reúne-se no Egito a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a COP-27. Com um governo influenciado pelos agrotrogloditas que desmatam o país e hostilizam as causas ambientais, o Brasil tornou-se saco de pancadas do mundo. Um pária orgulhoso, nas palavras do ex-chanceler Ernesto Araújo. Talvez convenha alertar a inerte burocracia federal que arma-se um bote ambiental contra o agronegócio brasileiro na COP-27.

Na COP-26, realizada em Glasgow no início do ano, o governo americano pediu sugestões para a redução do aquecimento global. Chegou ao Fórum de Commodities Agrícolas, que congrega os grandes compradores e vendedores mundiais de grãos, uma sugestão da Tropical Forest Alliance.

Área de cerrado desmatado para o plantio de soja no entorno da bacia do rio dos Couros, na Chapada dos Veadeiros
Área de cerrado desmatado para o plantio de soja no entorno da bacia do rio dos Couros, na Chapada dos Veadeiros - Lalo de Almeida - 8.dez.21/Folhapress

A ideia é levar à COP-27 uma proposta antecipando de 2030 para 2025 a meta de desmatamento zero no cerrado. A partir de janeiro de 2026 as grandes empresas e companhias de comércio exterior não comprariam mais grãos (leia-se soja) vindos de áreas ambientalmente críticas. Isso tudo sem que o governo e os empresários brasileiros tenham sido ouvidos nem cheirados.

Pelo regime de hoje, um empresário é obrigado a preservar 35% de sua área. Com a antecipação, ferra-se quem comprou terra ou começou seu negócio no cerrado, programando-se para cumprir as regras em 2030. Com um governo que tolera o desmatamento ilegal, vai-se avançar sobre o desmatamento legal.

Se Bolsonaro e os agrotrogloditas continuarem tratando o meio ambiente como um problema exclusivamente doméstico, a proposta de antecipação irá em frente.

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Isso nada tem a ver com a Amazônia, onde a plantação de grãos é irrelevante. O que vai para o tabuleiro é o cerrado. Sem floresta luxuriante, é um bioma que precisa ser protegido, até porque, entre 1985 e 2020, ele perdeu cerca de 13% de sua vegetação nativa.

Metade da exportação brasileira de soja vem do cerrado. Como não há diálogo entre o governo e as entidades ambientais que defendem o bioma, arrisca-se chegar a uma situação em que, seguindo uma possível recomendação da COP-27, essa antecipação da meta resulte num boicote às exportações de parte da soja do cerrado a partir de janeiro de 2026.

O ministro Paulo Guedes poderá continuar achando que a mulher do presidente francês é feia ou ligar o que bem entender, mas compradores como o Carrefour não negociarão com derivados da soja do cerrado.

O grosso do moderno agronegócio brasileiro afastou-se dos agrotrogloditas, mas são eles quem dão cartas em Brasília. Mandam muito em seus favorecidos e mandam nada em reuniões como a COP ou em entidades como o Fórum de Commodities Agrícolas.

Nessas instâncias o governo brasileiro pode ser ouvido e seria um negociador legítimo. Perdeu legitimidade porque quis, quando preferiu jactar-se de ser pária. Na questão da Amazônia foi um pária orgulhoso e acabou confundido com o crime organizado.

O bioma do cerrado pode e deve ser defendido com uma negociação que preserve o meio ambiente e a produção nacional de soja de agroempresários dispostos a cumprir as leis nacionais e a prestar atenção nas combinações internacionais.

A OCDE e um Brasil que não existe, FSP

 VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)

No plano divulgado em junho pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para a adesão do Brasil ao bloco, o chamado "roadmap", a entidade se dispõe a acolher um Brasil que não existe.

Um Brasil que não existe em 2022, e que, se mantido o atual cenário de desmonte da governança ambiental, do sistema de proteção dos direitos humanos, da transparência e da integridade pública, e de outros pilares da democracia, será apenas uma aspiração.

Sede da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em Paris - Charles Platiau - 3.set.2009/Reuters

O Brasil imaginado segundo o "roadmap" deve estar alinhado com a preservação de valores da democracia e do Estado de Direito, a defesa dos direitos humanos, a proteção do planeta e o esforço de não deixar ninguém para trás. Além de descumprir requisitos gerais, o Brasil real, comandado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), vai na direção contrária de exigências específicas.

No campo ambiental, a OCDE cobra do Brasil políticas efetivas para zerar suas emissões de gases de efeito estufa, acabar com o desmatamento e perda de biodiversidade, respeitar os direitos de povos indígenas e comunidades locais, fortalecer os órgãos ambientais e investigar e punir intimidação e atos de violência contra defensores ambientais. No Brasil real, a taxa de desmatamento da Amazônia Legal foi a maior em 15 anos, e órgãos como Ibama e Funai perderam autonomia e capacidade de atuação, e as ações de fiscalização sofreram reduções drásticas.

O Brasil desejado pela OCDE tem sólida estrutura de governo, que fortalece de maneira contínua a confiança na democracia e nas instituições, que atuam com independência. O Brasil real está mergulhado em intimidações, em campanhas de desinformação promovidas pelo presidente e ataques constantes contra os que defendem a democracia.

O Brasil do "roadmap" promove transparência e "accountability". E protege e promove o espaço cívico. O Brasil real nos faz rever, a cada dia, nossos conceitos de impossível, insuportável e intolerável.
Casos recentes atestam como o Brasil imaginado pela OCDE está a léguas de distância do Brasil real. Bilhões de reais do orçamento federal são empregados sem qualquer critério técnico, transparência ou controle, à disposição de aliados. O presidente da República se vangloria de destruir a capacidade de fiscalização dos órgãos ambientais e ataca sistematicamente o sistema eleitoral. O procurador-geral da República se alinha ao presidente.

E, escancarando o Brasil real, aquele que massacra ativistas, defensores do meio ambiente e quem mais luta pelo Brasil imaginado, o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados na Amazônia, enquanto trabalhavam para proteger a floresta e as populações indígenas.

No contexto atual, é fundamental que o processo de adesão à OCDE seja criterioso e transparente e não se restrinja às informações oficiais produzidas pelo governo. Um processo plural, que incorpore visões de atores independentes não estatais, terá mais chances de enxergar o Brasil real e, ainda mais importante, avançar na construção do Brasil imaginado.

Bruno Brandão
Diretor-executivo da Transparência Internacional Brasil}

Denise Dora
Diretora regional da Artigo 19 Brasil e América do Sul

Mauricio Voivodic
Diretor-executivo do WWF-Brasil

Paulo Abrão
Diretor-executivo do Washington Brazil Office