terça-feira, 23 de agosto de 2022

Alvaro Costa e Silva - Bicentenário da Independência virou uma piada mórbida, FSP

 


O filme "Independência ou Morte!", de 1972, reconstitui a célebre pintura homônima de Pedro Américo, de 1888. Esta, por sua vez, foi inspirada na tela "Friedland", de Meissonier, que evoca uma vitória militar de Napoleão Bonaparte. Comparado ao imperador francês no primeiro momento, dom Pedro 1º acabou virando o Tarcísio Meira.

Um livro recém-lançado —"O Sequestro da Independência", de Carlos Lima Jr., Lilia Schwarcz e Lúcia Stumpf— mostra que o filme, na tentativa de literalmente refazer a pintura, transforma o riacho do Ipiranga numa poça barrenta. A ideia de cavar um buraco no chão e enchê-lo de água transportada ao local das filmagens em caminhões pipa não deu certo. Do corpete azul imaculado do galã à natureza recém-plantada no set, tudo é falso e artificial.

Produzido para os festejos do sesquicentenário, no regime militar, "Independência ou Morte!" é um abacaxi patriótico. No entanto, com o tempo e as muitas reprises na televisão, ganhou ares de cult. A turma se reunia no feriado para rir com os diálogos forçados e as suíças do Tarcísio. Há nele uma graça involuntária, uma ingenuidade até comovente.

Piada com o grito do Ipiranga, para valer, quem fez foi o cartunista Jaguar, que em 1970 publicou no Pasquim uma fotopotoca tendo como suporte o mesmo quadro. Da boca de dom Pedro sai um balão onde se lê: "Eu quero mocotó!". Era uma referência à música de Jorge Ben Jor, interpretada pelo maestro Erlon Chaves e sua Banda Veneno, enorme sucesso na época.

Cutucados com vara curta, os generais da ditadura reagiram à afronta a um dos símbolos da nação. A cúpula do jornal foi quase toda em cana.

Agora, véspera do bicentenário, com direito ao coração do imperador preservado em formol, generais e empresários ligados ao bolsonarismo são uma piada mórbida, animadores do estopim de golpe convocado para o 7 de Setembro. Eles querem mocotó.

dom pedro está ao centro da imagem, com a espada em riste. dezenas de soldados o rodeiam em cavalos, seguindo o seu exemplo e celebrando a proclamação. ao fundo, vê-se uma fazenda e as serras do vale
Tela de Pedro Américo, finalizada em 1888, imagina a cena da proclamação da Independência do Brasil, com dom Pedro ao centro montado sobre um cavalo - Reprodução/ Livro "O Sequestro da Independência"

Cristina Serra - Bolsonaro e o coração das trevas, FSP

 

Nada mais simbólico do governo Bolsonaro que o culto mórbido ao coração de dom Pedro 1°. Tão macabro quanto zombar de quem morreu por falta de oxigênio em Manaus. Tão sombrio quanto incentivar criminosamente a imunidade de rebanho, promover remédios inúteis e desprezar a compra de vacinas, o que levou 700 mil brasileiros aos cemitérios. O prazer de Bolsonaro é a morte.

Governo funesto que celebra o colonizador e a pilhagem da terra, encharcada com o sangue do povo. Não fosse o formol, o pedaço de carne do imperador já teria se desmanchado na poeira dos séculos. É como Bolsonaro, conservado no formol do consórcio mais pavoroso de poder e rapina a tomar conta do país depois da ditadura.

Coração de dom Pedro 1º, guardado em recipiente de vidro na igreja de Nossa Senhora da Lapa, no Porto
Coração de dom Pedro 1º, guardado em recipiente de vidro na igreja de Nossa Senhora da Lapa, no Porto - Venerável Irmandade da Lapa/Divulgação

Ele e seus filhos, milicianos, militares incompetentes, falsos religiosos exploradores do desespero alheio, coronéis do agro, vigaristas do centrão e empresários golpistas. Donos do capital que viceja no autoritarismo, dispostos a virar a mesa e a cometer crimes para evitar a derrota do governo que os beneficia, como revelam as conversas divulgadas por Guilherme Amado no portal Metrópoles. Se não forem investigados, será uma desmoralização das autoridades eleitorais. Golpismo não pode ser relativizado ou naturalizado, sob pena de nunca sairmos da idade das cavernas em termos de estabilidade política e saúde democrática e institucional.

Demorou muito para que setores importantes da sociedade brasileira e autoridades se manifestassem de maneira firme pelo Estado democrático de Direito, como vimos, recentemente, na divulgação de cartas e manifestos e na posse de Alexandre de Moraes no TSE.

Foi só depois de uma escalada de violência eleitoral que teve seu ápice na morte do petista Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, assassinado pelo bolsonarista Jorge Guaranho. Por fim, a pregação golpista de Bolsonaro para embaixadores demarcou o limite, bastante elástico a meu ver, do inaceitável. Precisávamos ter esperado tanto?


Hélio Schwartsman - Salvos pela incompetência, FSP

 Não sou religioso, mas agradeço aos céus pela incompetência do atual governo. Fossem Jair Bolsonaro e seus sequazes um pouco mais inteligentes, seria dificílimo tirá-los do poder.

A democracia tem um forte viés situacionista. Cerca de 80% dos líderes que se reapresentam para um segundo mandato consecutivo têm sucesso. Para que percam, é preciso que algo grave tenha acontecido. Em geral, isso ocorre por força de crises econômicas.

É verdade que Bolsonaro teve de enfrentar dois problemas a que não deu origem, que foram a pandemia e a guerra na Ucrânia. A conjunção dos dois acabou favorecendo o empobrecimento da população e um processo inflacionário difícil de debelar.

Outros governantes também experimentam dificuldades eleitorais por causa de algum dos dois flagelos. Para parte dos analistas, Trump perdeu a Casa Branca devido ao mau desempenho na pandemia, já que a economia ia relativamente bem. Até Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, a dirigente de um dos países que melhor lidaram com a Covid, parece em vias de ser derrotada por causa da inflação, contra a qual ela não teve o mesmo sucesso.

O que distingue Bolsonaro da maioria das lideranças é que ele ganhou do Congresso presentes com os quais outros não puderam nem sonhar. O primeiro foi a blindagem. Bolsonaro começou seu mandato antagonizando o Legislativo, em particular o centrão. Mas, assim que viu que correria risco de impeachment, se acertou com o grupo, do qual virou tchutchuca.

O segundo foi o megaultrapacote de bondades eleitorais. O presidente recebeu de mão beijada bilhões de reais para medidas populistas. Pior, numa atitude que desafia a lógica, a oposição votou em massa a favor desse estelionato.

Se Bolsonaro e seus asseclas tivessem tido a competência de dosar melhor o timing das intervenções eleitoreiras, ele seria um candidato imbatível. Felizmente, eles são bem ruins.