domingo, 21 de agosto de 2022

Hélio Schwartsman - Está tudo dominado, FSP

 "Elite Capture", do filósofo nigeriano-americano Olúfémi O. Táíwò, é um livro interessante. O texto é daqueles bem militantes, contrastando um pouco por minha preferência por obras mais analíticas. Mas Táíwò, que é professor na Universidade Georgetown, levanta problemas relevantes, que frequentemente passam despercebidos.

Para Táíwò, está tudo dominado. Para início de conversa, as estruturas sociais são desenhadas para sempre favorecer as elites. É o que ele chama de capitalismo racial. Mas, como se isso não bastasse, vemos agora essas mesmas elites se apropriando da política de identidade, originalmente um movimento de resistência, para fazer avançar seus interesses, num fenômeno que o autor batizou de política de deferência.

Hoje, a fina flor do capitalismo mundial, isto é, grandes bancos e "big techs", não só encampa o discurso identitário como também promove a elite dos grupos marginalizados a posições privilegiadas. Os diretamente envolvidos ganham. Os empresários sinalizam sua virtude, os promovidos ficam com a promoção, mas a maior parte dos marginalizados continua marginalizada. No Brasil, as cotas em universidades fazem um pouco isso. A sociedade fica com a sensação de dever cumprido por ter instituído essa política e os bons estudantes negros ganham vagas em boas escolas. Mas os mais discriminados, isto é, o garoto negro que não consegue concluir o ensino fundamental e acaba em subempregos ou no crime, continua quase tão discriminado quanto seus trisavós escravizados.

O que me incomodou no livro é que Táíwò não deixa muito espaço para respostas que difiram da sua. Precisamos necessariamente ver os empresários como cínicos tentando faturar em cima dos movimentos identitários? Não dá para imaginar que um "capitalista" considere o racismo imoral e esteja disposto a agir contra ele, embora sem deflagrar um movimento revolucionário, que é o que o autor cobra?

O QUE A FOLHA PENSA - NÓS DO BRASIL - Nós do SUS

 Houve um tempo em que o único "serviço" que o cidadão poderia esperar do Estado era um exército que protegeria a cidade de invasores. Aos poucos, vieram também uma força policial e algo que com muito boa vontade poderíamos chamar de sistema de Justiça.

A partir do século 18, países mais avançados adicionaram à lista a educação pública e, mais tarde, um sistema de pensões. Foi só depois da Segunda Guerra que veio a explosão de serviços que caracterizam os Estados contemporâneos. E o mais complexo deles é, sem dúvida alguma, a saúde.

O Brasil, num raro destaque positivo, é o único país de renda média do mundo a oferecer um sistema universal de saúde gratuito à sua população. E os desafios do SUS, já imensos antes da pandemia, tornaram-se ainda maiores depois, como mostrou reportagem da série Nós do Brasil, na Folha.

O problema de base é, evidentemente, o subfinanciamento. Embora os gastos públicos e privados do Brasil com saúde sejam até proporcionalmente maiores que de países desenvolvidos, o jogo muda inteiramente quando se consideram apenas despesas de governo.

Em 2019, os desembolsos totais chegaram a 9,6% do Produto Interno Bruto, ante 8,8% na média da OCDE. Já o dispêndio público ficou em 3,8% do PIB, ante 6,5%.

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A pandemia escancarou o papel essencial do SUS. Embora nosso desempenho na crise sanitária tenha sido péssimo, muito pior seria sem o sistema de saúde.

A grande disposição com que a população arregaçou as mangas para tomar as primeiras doses da vacina, a despeito da insistente propaganda contrária de Jair Bolsonaro (PL), tem muito a ver com a confiança acumulada em vários anos do programa nacional de imunização, apontado como um dos melhores do mundo.

Seja como for, a pandemia colocou ainda mais pressão sobre o SUS. A demanda pelos serviços, que já era maior do que a oferta, foi reprimida por cerca de dois anos. A chamada Covid longa criou uma nova categoria de usuários; algo parecido vale para a saúde mental.

Embora o sistema esteja sendo mais exigido, é difícil imaginar como suas verbas possam aumentar de forma permanente. O Brasil lida com severa restrição orçamentária, agravada pela recente rodada de gastos eleitorais. Há amplo espaço para melhorias na gestão, mas isso não bastará para equacionar todas as carências.

O melhor caminho é cortar algo dos muitos subsídios e programas ineficientes bancados pelo Estado brasileiro para aumentar os recursos para a saúde pública. Politicamente, trata-se, na maior parte dos casos, de enfrentar grupos de interesse e suas benesses.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

O fim das atividades do Liceu Coração de Jesus, FSP

 


Douglas Nascimento
SÃO PAULO

Corria o ano de 1885 quando um padre católico italiano chamado João Melchior Bosco ganhou o apoio de Dona Isabel, princesa imperial do Brasil, para a construção de uma nova instituição de ensino na cidade de São Paulo, naquela época dotada de poucas escolas, visando atender principalmente a imigrantes italianos e filhos de escravos libertos: nascia ali o Liceu Coração de Jesus.

Liceu Coração de Jesus - história.
Ala do Liceu Coração de Jesus ainda em obras no final do século 19. - Museu da Obra Salesiana no Brasil / Divulgação

Bosco morreria em 1888 sendo proclamado santo em 1934 e hoje é conhecido como São João Bosco ou Dom Bosco. Dali para a frente inicia-se uma história que se confunde com a de São Paulo do século 19 a 21 e que, salvo alguma mudança de última hora, encerrará sua história no final do ano letivo de 2022.

São 137 anos dedicados ao ensino, às artes, a bondade e a fé em um grande complexo dos Salesianos em Campos Elíseos que além da escola também possui teatro, creche e aquela que é possivelmente a mais bela igreja de São Paulo, onde até o ápice da crise da cracolândia era super concorrida para celebrar casamentos e bodas.

Inicialmente uma instituição de ensino estritamente masculina, o liceu oferecia diversos cursos que permitiam a jovens garotos saírem de suas dependências com uma profissão para seguir, sendo o curso de tipógrafo um dos mais concorridos.

Liceu Coração de Jesus - história.
Alunos da turma de marcenaria do Liceu Coração de Jesus em meados do século 20. - Museu da Obra Salesiana no Brasil / Divulgação

As alunas mulheres só iriam adentrar ao Coração de Jesus em meados da década de 1970. O colégio também foi vanguardista sendo a primeira instituição de ensino paulistana a oferecer curso de ensino médio noturno.

Entre os alunos formados pelo Liceu que se consagraram podemos destacar entre vários, dois nomes: o músico Toquinho e o ator Grande Otelo, este último por sua vez teve seu nome homenageado com o teatro da escola.

Liceu Coração de Jesus
Teatro do Liceu Coração de Jesus antes de ser rebatizado como Grande Otelo, posteriormente ele foi modernizado. - Museu da Obra Salesiana no Brasil / Divulgação

RESISTIU A REVOLUÇÕES

Na Revolução de 1924 o Liceu foi alvo de canhões ruins de pontaria, que visavam acertar o Palácio Campos Elíseos, sede do governo paulista e próximo ao colégio, mas que acabaram caindo na tipografia do Liceu destruindo parcialmente a área e ferindo um aluno. Até hoje parte da "Revolução Esquecida" – termo no qual o conflito de 1924 é bastante conhecido – podem ser vistos nas grades da escola e da igreja, em marcas deixadas por tiros de fuzis.

Em 1932 a entidade se preparou para eventuais danos com a chegada da Revolução Constitucionalista, mas desta vez os combates se deram à distância do Liceu.

DEGRADAÇÃO DO CENTRO

O Liceu Coração de Jesus sobreviveu à primeira onda de degradação da região de Campos Elíseos, ocasião em que a elite deixou esse que foi o primeiro bairro nobre paulistano rumo a outras regiões paulistanas, como Higienópolis, Jardins e Pacaembu.

Em 1961, com a inauguração da Rodoviária de São Paulo, ao lado da Estação Júlio Prestes, veio a onda de degradação da região com a transformação dos palacetes e casarões em cortiços. Este processo de deterioração da região começou neste momento e culminaria três décadas mais tarde no grande obstáculo que chamamos de Cracolândia.

Anos de fluxo descontrolado na Cracolândia afugentou alunos do Liceu Coração de Jesus - Danilo Verpa/Folhapress

Este último obstáculo parece até o momento intransponível para o Liceu Coração de Jesus. Cracolândia, esse apelido pejorativo que virou sinônimo não só do bairro de Campos Elíseos, mas nos últimos anos de qualquer lugar que concentre alguns usuários de drogas, grudou praticamente em tudo quando é estabelecimento da região como um carrapato gruda em um cachorro. E seus efeitos são igualmente devastadores.

A escola que no passado já chegou a ter três mil alunos hoje conta com menos de 200 alunos matriculados. A queda vertiginosa não se dá por uma queda na qualidade de ensino, que continua referência, mas pelo medo de pais de alunos em levarem seus filhos a estudar num bairro que virou terra sem lei.

Liceu Coração de Jesus - história.
Alunos de escrituração comercial (caligrafia) do Liceu Coração de Jesus em 1894 - Museu da Obra Salesiana no Brasil / Divulgação

Nos últimos meses os governos estadual e municipal tem feito ações que diminuíram a presença de usuários de drogas no entorno da escola, entretanto parece que o socorro chegou tarde demais.

O Liceu Coração de Jesus, caso realmente encerre suas atividades no final deste ano letivo, terá sobrevivido ileso a duas revoluções, mas sucumbido a ineficiência do poder público em garantir o básico da segurança.