segunda-feira, 15 de agosto de 2022

CARTA AO MEU PAI: NÃO TEMOS O DIREITO DE DESISTIR, Jamil Chade UOL

  

Querido pai,

 

Neste fim de semana, aí no Brasil, comemora-se o teu dia. Sempre me lembro como sendo um momento de homenagem, de festa e de generosidade tua ao fingir que tinha gostado do que tínhamos comprado.

 

Nos últimos meses, no UOL, recebi a incumbência de escrever cartas como uma maneira de abrir o debate sobre alguns dos temas mais delicados da nossa sociedade. Já escrevi para jogadores, autoridades e políticos. No dia dos namorados, mandei uma cartinha para a Anitta, que me respondeu com um coração. Imagina só.

 

Decidi que, nesta semana, a carta seria para você. Mas certamente será a mais difícil de todas. Neste domingo seria o momento em que colocaríamos o papo da semana em dia. Mas desde que você teve o AVC, muita coisa aconteceu no Brasil, no mundo e na nossa família.

 

Vamos começar pelas coisas boas? Nos próximos dias, você será avô de novo e tua filha e teu genro decidiram dar teu nome ao novo neto. Outra boa notícia é que todos os teus outros quatro netos são são-paulinos, inclusive os "estrangeiros" que vivem aqui na Suíça. Pena que o time não tem acompanhado o entusiasmo deles. Mas nosso amigo Raí está sempre por perto para nos lembrar das glórias do passado.

 

Outra boa nova é que parece que alguns de teus ensinamentos foram ouvidos. Da última vez que nos falamos, eu estava na Hungria em 2019 tentando entender o que a extrema direita era capaz de fazer contra a democracia. Você seria operado e me disse ao telefone que, ao sair, a primeira coisa que faria seria comer um quibe. Fique tranquilo que você já tem um herdeiro. Pol, aqui, é viciado em comida árabe.

 

Mas, enquanto você vive tua busca interna e nossas vidas se concentram em tentar decifrar teus sinais, o mundo passou por profundas transformações. E, em diversos momentos de muita angústia, eu me peguei pensando em te ligar na busca por respostas.

 

Diante de tantas incertezas, me surpreendia como, de repente, tanta gente parecia ter tantas certezas. E eu pensava: "Vou falar com ele". Mas isso já não era possível.

Senti assim quando atravessamos a pior pandemia em cem anos. Muitos de nossos amigos não sobreviveram, enquanto o governo debochava do sofrimento. Você também foi contaminado. Mas, graças à ciência à qual você tanto se dedicou ao longo da vida, a vacina tinha chegado antes.

 

Eu sempre me perguntei onde você estaria se pudesse ainda trabalhar no hospital. Suspeito que teríamos tido fortes debates em casa sobre como fazer para administrar teu compromisso de estar sempre com aqueles que precisam de ajuda, em plena pandemia.

 

Mas também tivemos uma guerra na Europa, reabrindo um debate sobre a possibilidade do uso de armas nucleares. Sim, pai, parece alucinante que isso esteja acontecendo. Será que o óbvio se perdeu?

 

No nosso país, tenho a sensação muitas vezes que fomos engolidos por uma radiação de ódio. Alimentada pela desinformação em massa, por uma desconfiança profunda, por uma crise social avassaladora, por charlatães sem escrúpulos e pela incapacidade de lidar com nosso passado, uma parcela da sociedade optou pela violência como resposta.

 

No fundo, eles resgataram de suas entranhas atitudes que, até pouco tempo, deveriam estar classificadas como crimes. Hoje, a vulgaridade ganhou status político, a ignorância passou a ser uma medalha a ser usada com orgulho e a destruição - de todos os tipos - virou um instrumento legítimo de poder.

 

O diálogo, que você tanto nos ensinou, passou a ser um produto escasso por aqui hoje. Rejeita-se um gesto que você passou sua vida praticando: ouvir as dores do próximo.

 

Parentes deixaram de se falar, histórias de profunda conexão pessoal foram soterradas e o futuro foi adiado uma vez mais para aqueles que desejam construir um projeto de país. Temos o direito de sentir esgotados diante desses fracassos?

 

Em breve teremos eleições. O Brasil, por algumas semanas, será uma espécie de epicentro do debate mundial sobre o destino da democracia. É ela que está em jogo. Mas, mais do que definir um vencedor, será que ela não vai acabar revelando quem somos?

 

Enquanto você atravessa teu maior desafio, aqui fora vivemos uma encruzilhada. Não vou te esconder nada, pai. Tenho dormido muito mal, tentando entender o que pode acontecer com todos nós nas próximas semanas. Tenho a impressão que você me diria: "calma, pensa, desesperar jamais".

 

Eu teria muitas perguntas a te fazer. E tantos outros pedidos. Mas cada vez que te vejo, lembro de teu otimismo desconcertante, teu compromisso com o outro e, agora, essa lição diária de resistência. Há três anos, você nos mostra que mesmo os obstáculos mais duros têm respostas. Às vezes, só com um olhar.

 

Da última vez que estive ao teu lado, você uma vez mais apertou minha mão com muita força, como se quisesse transmitir energia, coragem e um recado: não temos o direito de desistir. Nem da vida, nem do próximo e nem do amor, em todas suas formas.

 

Talvez essa seja a resposta que eu buscava. E é assim que seguiremos - tua família inteira, teus amigos e os tantos pacientes que passaram pelas tuas mãos e que ainda hoje me param na rua, nas redes sociais ou em reuniões para agradecer o que você fez por eles e que pode ser traduzido em uma só palavra: respeito.

 

Feliz Dia dos Pais e obrigado pelas respostas,

Jamil

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Mathias Alencastro- Carta pela democracia terá seu lugar na história, mas ainda não terminou de ser escrita, FSP

 

SÃO PAULO

A sensação de que estávamos vivendo um momento especial era palpável. Terminada a leitura das cartas pela democracia, na Faculdade de Direito da USP, a atitude protocolar, de braços ao longo do corpo e mãos juntas, foi imediatamente trocada por abraços efusivos e clima algo desencontrado de vitória.

A ausência de controles de segurança no evento nos lembra que, apesar de tudo, vivemos numa sociedade mais pacífica que a dos Estados Unidos. A presença de correspondentes estrangeiros dava a sensação de que a luta contra o autoritarismo no Brasil é pela sobrevivência da democracia no mundo.

Público presente na leitura de manifestos pela democracia, na Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo
Público presente na leitura de manifestos pela democracia, na Faculdade de Direito da USP, no centro de São Paulo - Marlene Bergamo/Folhapress

As intervenções que antecederam a leitura tentaram, em diversas ocasiões, situar a carta na sua trajetória histórica. O manifesto só podia surgir em agosto de 2022, tal como a original precisou esperar até agosto de 1977. À época, a Amazônia também ardia, e as potências ocidentais, começando pela liderada pelo democrata Jimmy Carter, vislumbravam a possibilidade de uma abertura política no Brasil.

Dois elementos destoam no ato desta quinta. Primeiro é o caráter anticlimático do texto. A busca pelo consenso o deixou monocórdico, mas por outro lado o libertou de egos e deu voz aos seus signatários: desempregadas, enfermeiras, motoristas e policiais. Sua simplicidade narrativa combina bem com a singularidade da sua missão: comunicar o repúdio da sociedade aos ataques contra a democracia.

Em seguida, apesar do formalismo, a leitura agora é mais ambiciosa que a original porque age em diferentes espaços e tempos. Dirige-se aos que combatem Bolsonaro e a assassinados, perseguidos e torturados. Ela olha para o futuro quando pronuncia o fim de um passado autoritário que teima em se manifestar. A carta pretende encerrar, em uma única leitura, a era Bolsonaro e a ditadura militar.

É possível fazer vários paralelos com outros momentos, da Carta 77 de Vaclav Havel contra o regime comunista na Tchecoslováquia ao repúdio às tentativas de golpe na Argentina, narrada neste jornal pelo saudoso Clóvis Rossi, e na Espanha. Essas comparações servem para lembrar aos mais emocionados que os desdobramentos de hoje são imprevisíveis. Havel e seus companheiros foram reprimidos ferozmente, enquanto os socialistas liderados por Felipe González assumiram o governo espanhol. Na Argentina, os militares desapareceram definitivamente da politica, algo que jamais aconteceu no Brasil.

No momento da leitura da carta, Bolsonaro anunciou a redução do diesel, comunicando às fatias mais pobres da população que, enquanto as elites se ocupam dos valores, ele cuida da economia real. Essa velha artimanha será repetida à exaustão nos próximos dois meses. A leitura do manifesto certamente terá o seu lugar na história. Mas ela ainda não terminou de ser escrita.

Ruy Castro Perdeu, tem de honrar, FSP

 Outro dia dei-me conta de que ainda não soube de apostas Lula x Bolsonaro na eleição. Não será por falta de jogadores. Os sites de apostas abundam na internet e sempre haverá pessoas que fazem fé em qualquer coisa —bicho, bingo, futebol, cavalos ou se vai chover. Os mais precavidos tentam manipular previamente o resultado e às vezes um vai preso por isso. Mas o certo devia ser: ganhou, levou. Perdeu, tem de honrar.

Em 1955, na véspera de um Fla-Flu, o rubro-negro Ary Barroso e o tricolor Haroldo Barbosa, grandes compositores, apostaram o bigode. Quem ganhasse rasparia o bigode do outro em público e com testemunhas. Deu Flu 2x1 e Ary, mau perdedor, escondeu-se na casa da cantora Linda Baptista, também Flamengo. Mas Haroldo descobriu-o e, munido de gilete, pincel, creme e Aqua Velva, foi até lá com uma turma e consumou a vitória.

Na Copa do Mundo de 1966, Carlinhos Niemeyer, criador do cinejornal Canal 100, quebrou a banca do Playboy Club de Londres ao ganhar US$ 150 mil na roleta. E já começou a gastá-los no dia seguinte, no estádio, em Liverpool. Ao ver os torcedores ingleses vibrando com a eliminação do Brasil para Portugal, atirou-lhes dinheiro a mancheias na arquibancada e lavou a alma ao vê-los se estapeando por ele. "Pobretões! Subdesenvolvidos!", gritava.

Em 1982, na disputa para o governo do Rio entre Leonel Brizola e Miro Teixeira, o brizolista Jaguar e o peemedebista Ziraldo, sócios no Pasquim, apostaram a propriedade exclusiva do jornal. O perdedor seria obrigado ainda a comer um exemplar. Brizola venceu. Ziraldo entregou suas cotas e teve de engolir várias páginas com uísque. Jaguar ficou com tudo —inclusive, como só viu depois, com a tremenda dívida do Pasquim.

Talvez, pela gravidade do atual momento, não haja clima para apostas. Talvez porque já se saiba quem vai ganhar. E talvez porque o perdedor esteja tentando desonrar a eleição.