Querido pai,
Neste fim de semana, aí no Brasil, comemora-se o teu dia. Sempre me lembro como sendo um momento de homenagem, de festa e de generosidade tua ao fingir que tinha gostado do que tínhamos comprado.
Nos últimos meses, no UOL, recebi a incumbência de escrever cartas como uma maneira de abrir o debate sobre alguns dos temas mais delicados da nossa sociedade. Já escrevi para jogadores, autoridades e políticos. No dia dos namorados, mandei uma cartinha para a Anitta, que me respondeu com um coração. Imagina só.
Decidi que, nesta semana, a carta seria para você. Mas certamente será a mais difícil de todas. Neste domingo seria o momento em que colocaríamos o papo da semana em dia. Mas desde que você teve o AVC, muita coisa aconteceu no Brasil, no mundo e na nossa família.
Vamos começar pelas coisas boas? Nos próximos dias, você será avô de novo e tua filha e teu genro decidiram dar teu nome ao novo neto. Outra boa notícia é que todos os teus outros quatro netos são são-paulinos, inclusive os "estrangeiros" que vivem aqui na Suíça. Pena que o time não tem acompanhado o entusiasmo deles. Mas nosso amigo Raí está sempre por perto para nos lembrar das glórias do passado.
Outra boa nova é que parece que alguns de teus ensinamentos foram ouvidos. Da última vez que nos falamos, eu estava na Hungria em 2019 tentando entender o que a extrema direita era capaz de fazer contra a democracia. Você seria operado e me disse ao telefone que, ao sair, a primeira coisa que faria seria comer um quibe. Fique tranquilo que você já tem um herdeiro. Pol, aqui, é viciado em comida árabe.
Mas, enquanto você vive tua busca interna e nossas vidas se concentram em tentar decifrar teus sinais, o mundo passou por profundas transformações. E, em diversos momentos de muita angústia, eu me peguei pensando em te ligar na busca por respostas.
Diante de tantas incertezas, me surpreendia como, de repente, tanta gente parecia ter tantas certezas. E eu pensava: "Vou falar com ele". Mas isso já não era possível.
Senti assim quando atravessamos a pior pandemia em cem anos. Muitos de nossos amigos não sobreviveram, enquanto o governo debochava do sofrimento. Você também foi contaminado. Mas, graças à ciência à qual você tanto se dedicou ao longo da vida, a vacina tinha chegado antes.
Eu sempre me perguntei onde você estaria se pudesse ainda trabalhar no hospital. Suspeito que teríamos tido fortes debates em casa sobre como fazer para administrar teu compromisso de estar sempre com aqueles que precisam de ajuda, em plena pandemia.
Mas também tivemos uma guerra na Europa, reabrindo um debate sobre a possibilidade do uso de armas nucleares. Sim, pai, parece alucinante que isso esteja acontecendo. Será que o óbvio se perdeu?
No nosso país, tenho a sensação muitas vezes que fomos engolidos por uma radiação de ódio. Alimentada pela desinformação em massa, por uma desconfiança profunda, por uma crise social avassaladora, por charlatães sem escrúpulos e pela incapacidade de lidar com nosso passado, uma parcela da sociedade optou pela violência como resposta.
No fundo, eles resgataram de suas entranhas atitudes que, até pouco tempo, deveriam estar classificadas como crimes. Hoje, a vulgaridade ganhou status político, a ignorância passou a ser uma medalha a ser usada com orgulho e a destruição - de todos os tipos - virou um instrumento legítimo de poder.
O diálogo, que você tanto nos ensinou, passou a ser um produto escasso por aqui hoje. Rejeita-se um gesto que você passou sua vida praticando: ouvir as dores do próximo.
Parentes deixaram de se falar, histórias de profunda conexão pessoal foram soterradas e o futuro foi adiado uma vez mais para aqueles que desejam construir um projeto de país. Temos o direito de sentir esgotados diante desses fracassos?
Em breve teremos eleições. O Brasil, por algumas semanas, será uma espécie de epicentro do debate mundial sobre o destino da democracia. É ela que está em jogo. Mas, mais do que definir um vencedor, será que ela não vai acabar revelando quem somos?
Enquanto você atravessa teu maior desafio, aqui fora vivemos uma encruzilhada. Não vou te esconder nada, pai. Tenho dormido muito mal, tentando entender o que pode acontecer com todos nós nas próximas semanas. Tenho a impressão que você me diria: "calma, pensa, desesperar jamais".
Eu teria muitas perguntas a te fazer. E tantos outros pedidos. Mas cada vez que te vejo, lembro de teu otimismo desconcertante, teu compromisso com o outro e, agora, essa lição diária de resistência. Há três anos, você nos mostra que mesmo os obstáculos mais duros têm respostas. Às vezes, só com um olhar.
Da última vez que estive ao teu lado, você uma vez mais apertou minha mão com muita força, como se quisesse transmitir energia, coragem e um recado: não temos o direito de desistir. Nem da vida, nem do próximo e nem do amor, em todas suas formas.
Talvez essa seja a resposta que eu buscava. E é assim que seguiremos - tua família inteira, teus amigos e os tantos pacientes que passaram pelas tuas mãos e que ainda hoje me param na rua, nas redes sociais ou em reuniões para agradecer o que você fez por eles e que pode ser traduzido em uma só palavra: respeito.
Feliz Dia dos Pais e obrigado pelas respostas,
Jamil
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