quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Meio Político - Nascimento, ascensão e domínio do Centrão

 O próximo presidente da República terá, logo no primeiro mês de mandato, um desafio: é a eleição para presidente da Câmara dos Deputados. Arthur Lira é candidatíssimo e sua promessa para os parlamentares não é pequena. É manter o Orçamento Secreto. É manter, no Congresso Nacional, o controle de uma verba que em teoria o Executivo deveria comandar. Uma verba que dá autonomia ao Baixo Clero dos deputados, compra suas reeleições, e ao mesmo tempo impede que o governo possa direcionar dinheiro para onde é necessário. Caso as pesquisas se confirmem e Lula seja mesmo o novo ocupante do Planalto, o Centrão será uma ameaça concreta à governabilidade. A essa altura, não custa voltarmos atrás na história porque a palavra ‘Centrão’ engana. Ela representa sim, e há 35 anos, uma mesma força política dentro do Legislativo. Mas a forma como esta força se organiza mudou tanto neste arco do tempo que, de uma estrutura que permitiu o Brasil ser governável perante a fragmentação partidária, tornou-se uma ameaça a esta mesma governabilidade.

É provavelmente adequado que o pai do Centrão tivesse também um apelido no aumentativo — Roberto Cardoso Alves. O Robertão. Embora no período inicial da Ditadura tivesse pertencido à Arena, partido do regime, foi cassado em 1968 por defender o mandato de parlamentares da oposição — Alves era contra o AI-5 e se elegeu, para a Assembleia Constituinte, pelo PMDB.

Ocorre que os mais conservadores, como ele, entraram na Constituinte desorganizados. Quem tinha real controle político dos trabalhos, sob as bênçãos do presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, eram os parlamentares que, por aqueles anos, fundariam o PSDB. E pelo menos três pautas dos futuros tucanos geravam um incômodo imenso em grupos distintos que não encontravam coesão. Uma era a Reforma Agrária, outra era o Parlamentarismo e, a terceira, o limite em quatro anos do governo José Sarney. Tinham pressa em entregar eleições diretas para o Planalto. Sarney queria seis anos e defendia uma República Presidencialista. Alves era ligado a Sarney. Era, também, um rico pecuarista do interior de São Paulo, um dos nomes mais importantes daquilo que hoje chamaríamos de bancada do agro.

Foi para enfrentar estas três pautas que, sob orientação de Sarney, Robertão deu forma ao grupo de certo jeito amorfo que batizou Centrão. Foi seu líder inicial junto com os também deputados Ricardo Fiúza e Amaral Neto, que se tornara célebre como um jornalista de TV que tecia loas ao governo Médici. Ganhou este nome, Centrão, não porque representasse o Centro. Ao contrário, era claramente a Direita dentre os constituintes. Mas pegava mal, naquele período imediatamente após a Ditadura, se dizer de Direita. Não conseguiram tudo o que quiseram. A Reforma Agrária saiu, embora se limitando a terras improdutivas, um projeto menos arrojado do que desejavam Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas. Sarney não conseguiu seis anos, mas conseguiu cinco. E a decisão do regime foi jogada para um plebiscito — o que terminou por condenar o Parlamentarismo.

Regimes precisam aprender a funcionar. O jeito de organizar o poder não nasce pronto. Primeiro é preciso uma Constituição, o livro com as regras em cima das quais o equilíbrio será criado. E o processo não é planejado, passa pela tentativa e erro. Fernando Collor de Melo não tinha um Centrão operante, tentou governar por medidas provisórias atropelando o Congresso. Perante a impopularidade e o caos econômico, sem ter construído apoio nas duas Casas do Legislativo, quando precisou, caiu. (Os escândalos de corrupção aconteceram, mas outros presidentes também tiveram os seus. Não é corrupção que derruba governos.)

É importante compreendermos como chegamos até aqui, porque o problema central da República está em quão disfuncional se tornou a relação entre Executivo e Legislativo.

Talvez, sem impeachment, o Centrão tivesse se perdido na história, como uma forma de organizar a bancada governista para fazer frente ao comando da Constituinte e só. Mas o impeachment ensinou uma lição para quem comandou Executivo e Legislativo a partir dali. Qualquer presidente precisaria se esforçar para ter uma base no Congresso, não dá para governar por decreto como haviam feito os generais. E esta compreensão é a principal fonte de poder do presidente da Câmara dos Deputados.

Fernando Henrique governou distribuindo ministérios entre partidos aliados. Em troca de compartilhar poder de decisão, angariou apoio. Com Luís Eduardo Magalhães na presidência da Câmara nos primeiros dois anos de mandato, teve uma relação de parceria. Isto mudou em 1997, quando Michel Temer o sucedeu. Temer não era de oposição — jamais foi. Mas não era um parceiro imediato do governo, pelo contrário. Ele e seu grupo político inventaram um jeito novo de organizar a Casa.

Temer havia sido constituinte, com um histórico de votação pouco coerente, que passava por ser favorável ao aborto e à reforma agrária, mas também pelo Presidencialismo e pelos cinco anos de Sarney. Exerceu o mandato, porém, como suplente. Tanto na eleição de 1986 quanto na de 1990, não teve votos o suficiente para chegar direto ao Parlamento. Assim, ocupou a cadeira de deputado por períodos quebrados. Quando chegou à presidência da Câmara, portanto, estava no primeiro mandato pleno de deputado federal.

Mas aquele era, também, um período de vácuo no PMDB da Câmara, repentinamente sem líder após a morte inesperada de Ulysses Guimarães. E Michel Temer compreendia o Parlamento. Cercado de um grupo que incluía o potiguar Henrique Eduardo Alves, o baiano Geddel Vieira Lima, o carioca Wellington Moreira Franco e, posteriormente, o gaúcho Eliseu Padilha, formou um núcleo que dominou a Casa. Pela primeira vez, graças principalmente à habilidade de Padilha, um calouro na Casa, o presidente da Câmara tinha o mapa de como cada deputado votaria. Mais do que isso, tinha o mapa, também, de quais as aflições de cada parlamentar. Saber o que desejam os parlamentares, o que vira seus votos, e o momento certo de botar em pauta cada projeto para votação é poder. Um poder ímpar de negociação com o Planalto — afinal, Michel Temer se mostrou eficiente em entregar resultados.

É ali que o Brasil voltou a falar ativamente do Centrão. Afinal, pela primeira vez desde a Constituinte havia um grupo com organização e relativa independência do governo federal que, porém, trabalhava para o governo federal desde que mediante negociação. Mas o Centrão de Temer não era o mesmo Centrão de Alves. O de Alves era, em essência, o bloco do Planalto na Assembleia. O de Temer era um bloco que queria votar com o Planalto, só não o faria de graça.

O que Temer nunca fez foi quebrar o Colégio de Líderes.

Havia na Câmara dos Deputados um rito, uma hierarquia de comando, que organizava os trabalhos e distribuía poder em camadas. No topo estava o presidente da Casa e sua Mesa Diretora. Mas o presidente não tomava suas decisões a respeito da pauta sozinho, ele a compartilhava desde 1987 com o Colégio de Líderes — cada partido tinha um líder, a oposição tinha o seu, o governo idem. Eram estas pessoas que juntas definiam o que seria votado e o que não. A principal crítica ao sistema era de que tirava poder da maioria dos deputados. Tirava mesmo. Dava, porém, poder aos partidos. Organizava melhor as bancadas.

Em seu primeiro mandato, Lula escolheu não distribuir ministérios como Fernando Henrique. Preferiu um modelo de muitos ministros petistas. Embora nunca declarada, a tese de governo parecia ser que o Planalto e seus ministros definiriam as políticas públicas e a lida com o Congresso seria na base não do debate mas do fisiologismo. O PT, sua escolha de método de governo parecia sugerir, via o Congresso como um grande Centrão, os ‘trezentos picaretas’. O Mensalão começou um processo de despolitizar o relacionamento Executivo-Legislativo.

No segundo mandato, com Temer de volta à presidência da Câmara e uma relação mais estreita de compartilhamento de poder com o PMDB, a relação até voltou a se parecer com a de Fernando Henrique, seus tucanos e o PFL. Mas o processo se desmontou de vez no governo Dilma. Quando o PT tentou driblar o PMDB para eleger fora do acordo um presidente da Câmara seu, viu-se surpreendido com um levante do Baixo Clero e a escolha para o cargo do pernambucano Severino Cavalcanti.

O Centrão de Temer não era o mesmo Centrão de Alves. O de Alves era, em essência, o bloco do Planalto na Assembleia. O de Temer era um bloco que queria votar com o Planalto, só não o faria de graça.

Severino não ficou muito tempo no comando da Casa — um escândalo de corrupção o obrigou a renunciar oito meses após a posse. Mas, tendo sido eleito pela força coletiva dos deputados sem expressão política, trabalhou para eles. E sua primeira intuição foi atende-los diretamente, ignorando o Colégio de Líderes. Inepto, Severino descentralizou o poder na Câmara, sinalizando o caminho que outros dois presidentes seguiriam com bem mais eficiência. Um, o carioca Eduardo Cunha, do PMDB. Outro, o alagoano Arthur Lira, do PP.

Cunha e Lira uniram a eficiência da máquina de mapear votos sofisticada por Temer com a quebra da estrutura de comando partidário de Cavalcanti. A força de Eduardo Cunha estava em sua grande capacidade de estudo, trabalho e total falta de escrúpulos. Ele não sabia apenas o que o governo desejava votar ou não, como tinha perfeita noção de quanto poderia extorquir em emendas e cargos por cada ponto. Mas Cunha compreendia, também, como funcionava dentro da Câmara os diversos lobbies setoriais. Sabia que projetos interessavam a que grupos empresariais. Assim, tomava dinheiro também na ponta. Os ganhos eram compartilhados com o Baixo Clero, deputados que lembram dele como um presidente sempre atencioso. No auge do poder, Cunha usou do impeachment como arma de vingança pessoal, quando deputados do PT votaram por sua cassação no Conselho de Ética.

Lira não tem a sofisticação de Cunha no mapeamento dos lobbies mas também não precisa. A discrição que houve, ainda que tênue, foi abandonada na Câmara dos Deputados. O poder de impeachment foi utilizado como arma de extorsão contra um presidente que não tem qualquer pudor — um presidente que, ora, nasceu do Baixo Clero da Câmara. Um presidente da República que vem do Centrão. O poder de Lira já não é mais usado para tirar verbas, projetos ou cargos do Executivo. Não precisa mais, agora ele próprio controla a verba. Em essência, a estrutura da Câmara dos Deputados foi convertida em uma máquina de financiamento das campanhas de parlamentares do Baixo Clero. É a deterioração completa de um sistema que nunca foi perfeito.

É importante compreendermos como chegamos até aqui, porque o problema central da República está em quão disfuncional se tornou a relação entre Executivo e Legislativo. O equilíbrio nessa relação se rompeu, o Centrão é apenas o sintoma mais evidente.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Envolvimento com Bolsonaro tira credibilidade das Forças Armadas, Hélio Schwartsman, FSP

 O Estado e suas instituições fazem parte daquilo que o historiador israelense Yuval Harari chama de realidades imaginárias, que são coisas que só existem em nossas cabeças, mas que, como todos creem nelas, acabam se tornando reais. Entram nessa categoria itens como dinheiro, pessoas jurídicas, religiões e a própria ideia de nação. Entra também o respeito a instituições.

Se ninguém acreditar que a polícia está aí para solucionar crimes e ajudar o cidadão, ela terá bem mais dificuldades para desempenhar essas tarefas, da mesma forma que o dinheiro perderia todo seu valor se as pessoas achassem que cédulas não passam de papel colorido. Os generais brasileiros têm, portanto, motivos para preocupar-se com a pesquisa Ipsos que mostra que a credibilidade das Forças Armadas caiu em relação a 2021 e é a quarta ou quinta mais baixa entre 28 países analisados.

Pela sondagem, só 30% dos brasileiros confiam nos militares. São 11 pontos percentuais a menos que a média global. Ficaram pior na foto só os efetivos da Colômbia (29%), África do Sul (28%) e Coreia do Sul (25%). Empatamos com os poloneses. Em relação ao ano passado, a queda foi de cinco pontos percentuais. Levantamento periódico do Datafolha, que segue outra metodologia, também capturou queda na confiança entre 2019 e 2021.

Embora as pesquisas não explorem as causas do fenômeno, não é preciso ser um Sherlock Holmes para concluir que a proximidade entre os militares e o governo de Jair Bolsonaro, que é mal avaliado, tem algo a ver com isso. Os vários pequenos escândalos de compras duvidosas (uísque, picanha, Viagra e próteses penianas) decerto também não ajudam.

O ponto central é que, se há instituições como Presidência, Congresso, STF e imprensa, que não podem se furtar aos desgastes da política, as Forças Armadas têm o dever de ficar tão longe dela quanto possível. É isso que os generais não estão vendo.

monumento que São Paulo esqueceu, São Paulo Antiga, FSP

 

Douglas Nascimento
SÃO PAULO

É difícil transitar pelo centro de São Paulo e não se deparar com uma obra projetada por Ramos de Azevedo (*1851 +1928). Os palácios do Pátio do Colégio, a Casa das Rosas, o Theatro Municipal e o Mercadão são algumas das criações que saíram de sua prancheta ou de seu escritório técnico.

monumento em detalhe
O arquiteto Ramos de Azevedo retratado por Galileo Emendabili em monumento erigido em sua homenagem. - Douglas Nascimento / São Paulo Antiga

Arquiteto, professor e empreendedor, Azevedo formou-se na Bélgica e teve a felicidade de viver em uma época de grande desenvolvimento paulista proporcionado pela produção de café. Seus trabalhos aproximaram São Paulo dos traços europeus que a elite da época tanto desejava e à medida que mais projetos com sua assinatura surgiam, a cidade colonial ia desaparecendo.

Já consagrado e admirado, Ramos de Azevedo faleceu em 1928 deixando um grandioso legado que acompanhamos até os dias de hoje nas ruas da cidade, além de uma legião de admiradores, amigos e alunos. E são estes que, imediatamente após a sua morte, se reúnem para discutir como fazer um grande reconhecimento. Surge a ideia de homenageá-lo com a construção de um monumento, e é idealizado um concurso que é rapidamente abraçado por diversos escultores, onde um deles será o escolhido para imortalizar o grande arquiteto de São Paulo.

monumento em local público
O monumento a Ramos de Azevedo na Avenida Tiradentes, seu local original em fotografia da década de 1930. - Divulgação

Poucos meses depois, em maio de 1929, o Comitê Pró-Monumento Ramos de Azevedo abre, no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, a exposição das 18 obras candidatas. Em outubro do mesmo os membros do comitê escolhem o projeto do escultor Galileo Emendabili, ele que anos mais tarde ficaria também conhecido pelo Obelisco do Ibirapuera.

Uma vez eleito o vencedor, começava o trabalho de Emendabili para construir o monumento que prometia ser o maior da cidade até então. Como a arrecadação de dinheiro foi totalmente privada a obra demorou um pouco para sair do papel, sendo inaugurada apenas em 25 de janeiro de 1934. O conjunto escultórico é feito em bronze e granito. A Folha da Noite cobriu a inauguração.

O local escolhido, a Avenida Tiradentes, dividiu opiniões. Muitos acharam apropriado a estátua ficar ali diante do prédio projetado para ser sede do Liceu de Artes e Ofícios (atual Pinacoteca) e outros achavam que a obra deveria ficar em outra região, como a própria Praça Ramos de Azevedo. Entretanto, lá não havia espaço suficiente.

monumento em detalhe
Monumento a Ramos de Azevedo na década de 1950. A frente da escultura era voltada para Rua São Caetano. - Divulgação

Em 1952 o monumento provou que os críticos do local escolhido estavam corretos. O aumento do número de veículos, aliado à necessidade de ampliação do eixo viário entre as zonas norte e sul, passando pelo centro, logo mostrou que o local escolhido fora inapropriado. Foi neste momento que iniciou-se a discussão de como alargar a Avenida Tiradentes com aquele monumento no meio do caminho.

As ideias foram várias e partiram desde uma redução do monumento até sua remoção. A mudança só seria colocada em prática no ano de 1967, quando se começou o planejamento da primeira linha do metrô, ligando Santana ao Jabaquara. Assim, em novembro deste mesmo ano, a escultura foi desmontada para só depois se discutir um novo local.

Avenida na região central de São Paulo
Avenida Tiradentes na década de 1950, com destaque no centro da imagem ao Monumento a Ramos de Azevedo - Divulgação

DESTINO: CIDADE UNIVERSITÁRIA

O arquiteto da cidade se estivesse vivo teria visto seu monumento ser colocado em um canto do Jardim da Luz, desmontado e abandonado em uma situação que perduraria até 1973, quando foi decidida sua transferência para a Cidade Universitária. A reinauguração, sem a comoção pública de 1934, ocorreria em 1975.

Monumento a Ramos de Azevedo
Vista do Monumento a Ramos de Azevedo na Cidade Universitária, zona oeste da capital paulista. - Douglas Nascimento / São Paulo Antiga

Desde então o Monumento a Ramos de Azevedo segue nas proximidades da Escola Politécnica da USP. Se o local foi o mais apropriado dentro da universidade, por outro lado retirou dos olhos da maioria dos paulistanos a visão da obra que homenageia aquele que foi o mais importante arquiteto paulistano.

A escultura de 25 metros de altura é apenas mais um dos inúmeros monumentos paulistanos que não está em seu local de origem, movendo-se conforme a necessidade urbanística ou a conveniência do governante da ocasião. O homenageado merece, por toda sua dedicação a arquitetura de São Paulo, um local onde pudesse ser mais contemplado pelos paulistanos. Quem sabe um novo espaço para ele a tempo do centenário de sua morte ?