O próximo presidente da República terá, logo no primeiro mês de mandato, um desafio: é a eleição para presidente da Câmara dos Deputados. Arthur Lira é candidatíssimo e sua promessa para os parlamentares não é pequena. É manter o Orçamento Secreto. É manter, no Congresso Nacional, o controle de uma verba que em teoria o Executivo deveria comandar. Uma verba que dá autonomia ao Baixo Clero dos deputados, compra suas reeleições, e ao mesmo tempo impede que o governo possa direcionar dinheiro para onde é necessário. Caso as pesquisas se confirmem e Lula seja mesmo o novo ocupante do Planalto, o Centrão será uma ameaça concreta à governabilidade. A essa altura, não custa voltarmos atrás na história porque a palavra ‘Centrão’ engana. Ela representa sim, e há 35 anos, uma mesma força política dentro do Legislativo. Mas a forma como esta força se organiza mudou tanto neste arco do tempo que, de uma estrutura que permitiu o Brasil ser governável perante a fragmentação partidária, tornou-se uma ameaça a esta mesma governabilidade.
É provavelmente adequado que o pai do Centrão tivesse também um apelido no aumentativo — Roberto Cardoso Alves. O Robertão. Embora no período inicial da Ditadura tivesse pertencido à Arena, partido do regime, foi cassado em 1968 por defender o mandato de parlamentares da oposição — Alves era contra o AI-5 e se elegeu, para a Assembleia Constituinte, pelo PMDB.
Ocorre que os mais conservadores, como ele, entraram na Constituinte desorganizados. Quem tinha real controle político dos trabalhos, sob as bênçãos do presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães, eram os parlamentares que, por aqueles anos, fundariam o PSDB. E pelo menos três pautas dos futuros tucanos geravam um incômodo imenso em grupos distintos que não encontravam coesão. Uma era a Reforma Agrária, outra era o Parlamentarismo e, a terceira, o limite em quatro anos do governo José Sarney. Tinham pressa em entregar eleições diretas para o Planalto. Sarney queria seis anos e defendia uma República Presidencialista. Alves era ligado a Sarney. Era, também, um rico pecuarista do interior de São Paulo, um dos nomes mais importantes daquilo que hoje chamaríamos de bancada do agro.
Foi para enfrentar estas três pautas que, sob orientação de Sarney, Robertão deu forma ao grupo de certo jeito amorfo que batizou Centrão. Foi seu líder inicial junto com os também deputados Ricardo Fiúza e Amaral Neto, que se tornara célebre como um jornalista de TV que tecia loas ao governo Médici. Ganhou este nome, Centrão, não porque representasse o Centro. Ao contrário, era claramente a Direita dentre os constituintes. Mas pegava mal, naquele período imediatamente após a Ditadura, se dizer de Direita. Não conseguiram tudo o que quiseram. A Reforma Agrária saiu, embora se limitando a terras improdutivas, um projeto menos arrojado do que desejavam Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas. Sarney não conseguiu seis anos, mas conseguiu cinco. E a decisão do regime foi jogada para um plebiscito — o que terminou por condenar o Parlamentarismo.
Regimes precisam aprender a funcionar. O jeito de organizar o poder não nasce pronto. Primeiro é preciso uma Constituição, o livro com as regras em cima das quais o equilíbrio será criado. E o processo não é planejado, passa pela tentativa e erro. Fernando Collor de Melo não tinha um Centrão operante, tentou governar por medidas provisórias atropelando o Congresso. Perante a impopularidade e o caos econômico, sem ter construído apoio nas duas Casas do Legislativo, quando precisou, caiu. (Os escândalos de corrupção aconteceram, mas outros presidentes também tiveram os seus. Não é corrupção que derruba governos.)
É importante compreendermos como chegamos até aqui, porque o problema central da República está em quão disfuncional se tornou a relação entre Executivo e Legislativo.
Talvez, sem impeachment, o Centrão tivesse se perdido na história, como uma forma de organizar a bancada governista para fazer frente ao comando da Constituinte e só. Mas o impeachment ensinou uma lição para quem comandou Executivo e Legislativo a partir dali. Qualquer presidente precisaria se esforçar para ter uma base no Congresso, não dá para governar por decreto como haviam feito os generais. E esta compreensão é a principal fonte de poder do presidente da Câmara dos Deputados.
Fernando Henrique governou distribuindo ministérios entre partidos aliados. Em troca de compartilhar poder de decisão, angariou apoio. Com Luís Eduardo Magalhães na presidência da Câmara nos primeiros dois anos de mandato, teve uma relação de parceria. Isto mudou em 1997, quando Michel Temer o sucedeu. Temer não era de oposição — jamais foi. Mas não era um parceiro imediato do governo, pelo contrário. Ele e seu grupo político inventaram um jeito novo de organizar a Casa.
Temer havia sido constituinte, com um histórico de votação pouco coerente, que passava por ser favorável ao aborto e à reforma agrária, mas também pelo Presidencialismo e pelos cinco anos de Sarney. Exerceu o mandato, porém, como suplente. Tanto na eleição de 1986 quanto na de 1990, não teve votos o suficiente para chegar direto ao Parlamento. Assim, ocupou a cadeira de deputado por períodos quebrados. Quando chegou à presidência da Câmara, portanto, estava no primeiro mandato pleno de deputado federal.
Mas aquele era, também, um período de vácuo no PMDB da Câmara, repentinamente sem líder após a morte inesperada de Ulysses Guimarães. E Michel Temer compreendia o Parlamento. Cercado de um grupo que incluía o potiguar Henrique Eduardo Alves, o baiano Geddel Vieira Lima, o carioca Wellington Moreira Franco e, posteriormente, o gaúcho Eliseu Padilha, formou um núcleo que dominou a Casa. Pela primeira vez, graças principalmente à habilidade de Padilha, um calouro na Casa, o presidente da Câmara tinha o mapa de como cada deputado votaria. Mais do que isso, tinha o mapa, também, de quais as aflições de cada parlamentar. Saber o que desejam os parlamentares, o que vira seus votos, e o momento certo de botar em pauta cada projeto para votação é poder. Um poder ímpar de negociação com o Planalto — afinal, Michel Temer se mostrou eficiente em entregar resultados.
É ali que o Brasil voltou a falar ativamente do Centrão. Afinal, pela primeira vez desde a Constituinte havia um grupo com organização e relativa independência do governo federal que, porém, trabalhava para o governo federal desde que mediante negociação. Mas o Centrão de Temer não era o mesmo Centrão de Alves. O de Alves era, em essência, o bloco do Planalto na Assembleia. O de Temer era um bloco que queria votar com o Planalto, só não o faria de graça.
O que Temer nunca fez foi quebrar o Colégio de Líderes.
Havia na Câmara dos Deputados um rito, uma hierarquia de comando, que organizava os trabalhos e distribuía poder em camadas. No topo estava o presidente da Casa e sua Mesa Diretora. Mas o presidente não tomava suas decisões a respeito da pauta sozinho, ele a compartilhava desde 1987 com o Colégio de Líderes — cada partido tinha um líder, a oposição tinha o seu, o governo idem. Eram estas pessoas que juntas definiam o que seria votado e o que não. A principal crítica ao sistema era de que tirava poder da maioria dos deputados. Tirava mesmo. Dava, porém, poder aos partidos. Organizava melhor as bancadas.
Em seu primeiro mandato, Lula escolheu não distribuir ministérios como Fernando Henrique. Preferiu um modelo de muitos ministros petistas. Embora nunca declarada, a tese de governo parecia ser que o Planalto e seus ministros definiriam as políticas públicas e a lida com o Congresso seria na base não do debate mas do fisiologismo. O PT, sua escolha de método de governo parecia sugerir, via o Congresso como um grande Centrão, os ‘trezentos picaretas’. O Mensalão começou um processo de despolitizar o relacionamento Executivo-Legislativo.
No segundo mandato, com Temer de volta à presidência da Câmara e uma relação mais estreita de compartilhamento de poder com o PMDB, a relação até voltou a se parecer com a de Fernando Henrique, seus tucanos e o PFL. Mas o processo se desmontou de vez no governo Dilma. Quando o PT tentou driblar o PMDB para eleger fora do acordo um presidente da Câmara seu, viu-se surpreendido com um levante do Baixo Clero e a escolha para o cargo do pernambucano Severino Cavalcanti.
O Centrão de Temer não era o mesmo Centrão de Alves. O de Alves era, em essência, o bloco do Planalto na Assembleia. O de Temer era um bloco que queria votar com o Planalto, só não o faria de graça.
Severino não ficou muito tempo no comando da Casa — um escândalo de corrupção o obrigou a renunciar oito meses após a posse. Mas, tendo sido eleito pela força coletiva dos deputados sem expressão política, trabalhou para eles. E sua primeira intuição foi atende-los diretamente, ignorando o Colégio de Líderes. Inepto, Severino descentralizou o poder na Câmara, sinalizando o caminho que outros dois presidentes seguiriam com bem mais eficiência. Um, o carioca Eduardo Cunha, do PMDB. Outro, o alagoano Arthur Lira, do PP.
Cunha e Lira uniram a eficiência da máquina de mapear votos sofisticada por Temer com a quebra da estrutura de comando partidário de Cavalcanti. A força de Eduardo Cunha estava em sua grande capacidade de estudo, trabalho e total falta de escrúpulos. Ele não sabia apenas o que o governo desejava votar ou não, como tinha perfeita noção de quanto poderia extorquir em emendas e cargos por cada ponto. Mas Cunha compreendia, também, como funcionava dentro da Câmara os diversos lobbies setoriais. Sabia que projetos interessavam a que grupos empresariais. Assim, tomava dinheiro também na ponta. Os ganhos eram compartilhados com o Baixo Clero, deputados que lembram dele como um presidente sempre atencioso. No auge do poder, Cunha usou do impeachment como arma de vingança pessoal, quando deputados do PT votaram por sua cassação no Conselho de Ética.
Lira não tem a sofisticação de Cunha no mapeamento dos lobbies mas também não precisa. A discrição que houve, ainda que tênue, foi abandonada na Câmara dos Deputados. O poder de impeachment foi utilizado como arma de extorsão contra um presidente que não tem qualquer pudor — um presidente que, ora, nasceu do Baixo Clero da Câmara. Um presidente da República que vem do Centrão. O poder de Lira já não é mais usado para tirar verbas, projetos ou cargos do Executivo. Não precisa mais, agora ele próprio controla a verba. Em essência, a estrutura da Câmara dos Deputados foi convertida em uma máquina de financiamento das campanhas de parlamentares do Baixo Clero. É a deterioração completa de um sistema que nunca foi perfeito.
É importante compreendermos como chegamos até aqui, porque o problema central da República está em quão disfuncional se tornou a relação entre Executivo e Legislativo. O equilíbrio nessa relação se rompeu, o Centrão é apenas o sintoma mais evidente.
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