segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Hélio Schwartsman - Identitarismo complica vida de atores, FSP

 Na agitada temporada teatral do verão boreal, houve três montagens de "Ricardo 3º", de William Shakespeare. A britânica Royal Shakespeare Company escalou um ator com deficiência física para interpretar o monarca "deformado"; na produção do festival Stratford, em Ontário, Canadá, o papel de protagonista coube a um homem branco sem deficiência; e, na montagem nova-iorquina do Free Shakespeare in the Park, a uma mulher negra. Quem tem razão? Papéis de personagens com claras distinções raciais, de orientação sexual ou com características físicas bem definidas devem ser reservados para atores com esses mesmos traços?

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 7 de agosto de 2022, mostra um palco de teatro dividido em três partes equivalentes, mas distinguidas pelas cores das cortinas, tablado e fundo, e em cada uma delas um ator em cena, interpretando um rei, todos usando coroas. No primeiro terço do quadro, o rei é branco e aparenta portar deficiência física; veste calça marrom e capa cinza escura. No segundo terço, quem interpreta o rei é uma mulher negra que veste blusa roxa, colete dourado e calças pretas. No terceiro e último, o ator é um homem branco que veste roupas escuras.
Ilustração para a coluna de Hélio Schwartsman deste domingo (7) - Annette Schwartsman

Essa é uma tendência que vem ganhando corpo. Não é incomum gays exigirem que apenas atores gays façam personagens gays. Judeus criticaram uma produção israelense por ter escolhido uma atriz não judia para fazer Golda Meir num filme. No Brasil, uma atriz negra teve de desistir de interpretar Ivone Lara num musical porque militantes alegaram que sua pele não era escura o bastante para esse papel.
Não me convencem. Uma definição de ator é a de alguém que finge ser uma pessoa que não é. Isso significa que homens podem fazer o papel de mulheres; mulheres, o de homens; gays, o de héteros; héteros, o de gays; e todas as combinações imagináveis. Negar isso é negar a essência da ideia de interpretação.

A conclusão que extraio daí é que toda exigência é descabida. Diretores e produtores, assim como autores, são livres para fazer o que bem entenderem. Numa montagem de inspiração mais naturalista, os atores e figurantes de "Ricardo 3º" seguirão a demografia da corte inglesa do final do século 15, isto é, brancos. Já um diretor interessado em questionar as estratificações sociais pode perfeitamente escalar apenas intérpretes negros.

Creio que o quadro é parecido com o das religiões. Todo mundo é livre para ter uma, mas é errado tentar impor a sua aos demais.

helio@uol.com.br

domingo, 7 de agosto de 2022

Método científico e conversa de botequim, OESP

 Claudio de Moura Castro, O Estado de S.Paulo

07 de agosto de 2022 | 03h00

Pesquisadores de primeira linha concordam, o método científico é uma das maiores conquistas da humanidade, considerando os benefícios trazidos pela ciência. E defendemos, aqui, a tese de que oferece também uma orientação preciosa para lidar com assuntos do nosso cotidiano, até nas conversas sérias de botequim, sendo mesmo uma vacina anti-fake news. Contudo, nesse uso as regras são diferentes.

Talvez o impacto mais poderoso do método seja a cumulatividade que adquire a ciência que por ele se pauta. Ou seja, se pesquiso hoje uma tese nova, não tenho de refazer todo o conhecimento que a precedeu. Tomo as pesquisas sérias como sendo a melhor aproximação da verdade. Cada cientista põe o seu tijolinho nessa construção – alguns gênios põem um tijolão.

Os resultados dos meus antecessores merecem confiança, sempre que se cumpriram as fastidiosas exigências do método científico. Se há amostras, sua seleção foi judiciosa. Os dados merecem confiança e foram tratados corretamente. E por aí vai. No fundo, permitem a qualquer um repetir os procedimentos usados. E, se isso for feito, os resultados seriam os mesmos, pois a natureza pode ser fugidia, mas não é desonesta.

Aleluia! Cumprida essa liturgia metodológica, alguma coisa quase mágica acontece com a pesquisa. Se meus leitores não conseguem encontrar falhas, omissões ou enganos nos meus procedimentos, o método científico os proíbe de discordar dos meus resultados. Checam-se os processos. Não se encontraram falhas? Então, os resultados têm de ser engolidos, mesmo a contragosto.

Na prática, os dados podem ser imperfeitos, simplificamos demais os procedimentos ou deixamos de incluir fatores potencialmente relevantes. Daí aparecerem resultados conflitantes ou contraditórios. Cada cientista furiosamente defende as suas teses e o campo parece caótico. É assim mesmo.

Para alguns defensores da ivermectina, é preciso tomá-la logo que aparecem sintomas. Mas, nessas horas iniciais, é impossível gerar um grupo de controle aleatório para receber o placebo. Sendo assim, é dificílimo conduzir pesquisas “padrão ouro” testando a eficácia desse uso. As que têm placebo são de pacientes já hospitalizados. Permanecemos num limbo inconclusivo.

Porém, com a acumulação de estudos, começam a emergir os consensos em quase todos os campos. Assim caminha a ciência.

Se o método científico revelou-se tão potente, deve ser também útil para os assuntos controvertidos que lemos nos jornais. De fato, mas há uma grande diferença.

A ciência de hoje se tornou muito especializada. Tenho um doutorado em Economia. Mas apenas entendo uns poucos papers da mais recente American Economic Review. Portanto, não podemos esperar do público que consulte fontes incompreensíveis até para cientistas da mesma área. O caminho é outro.

Para o método científico clássico, não interessam o autor, suas crenças, onde publicou e tudo o mais. A proposição científica não se apoia em reputações. O Nobel de Linus Pauling não o protegeu de seu engano quanto à vitamina C. E um médico de roça demonstrou que antibiótico cura úlcera, ao arrepio das prima-donas da época. Porém, se dentro das subáreas da nossa profissão já não entendemos tanto, a receita não serve para um leigo no assunto, como somos todos, afora em alguns poucos campos do conhecimento.

No nosso cotidiano, temos de formar opinião sobre múltiplos assuntos. Alguns são sobre valores ou ideologia, no que a ciência nada tem a dizer. Há os que não justificam gastar tempo. Em outros, não alcança nosso conhecimento técnico. E não queremos ser enganados por fake news. Nesses últimos dois casos, a ciência ajuda, mas o jeito de chegar a ela é diferente.

Se nos falta fôlego ou conhecimento para avaliar as abundantes pesquisas, temos de escolher criteriosamente os cientistas que vão fazer isso para nós. Qual a sua formação? Como é visto nos meios científicos? Publicou em periódicos de sólida reputação? Anda na contramão de outros cientistas respeitados que lidam com o mesmo tema? Que bibliografia citam? Prêmio Nobel de Literatura falando de DNA recombinante não merece credibilidade. E por aí afora. Claro, ouvir leigos é erro primário.

Anthony Fauci merece menos créditos pela sua posição no governo americano do que por ser o 12.º americano mais citado em publicações científicas afins. É óbvio, ele pode errar e já errou. Mas temos de fazer nossas apostas. Em contraste, nosso Congresso longamente ouviu um “consagrado perito” em questões de meio ambiente. Porém, ao examinar seu currículo, revelou-se que suas pouquíssimas publicações em revistas científicas sérias eram sobre outro assunto.

É isto, diante de um problema, se não temos condições de avaliar o que diz a ciência, temos de escolher cuidadosamente quem o faça para nós. Ou seja, avaliamos a credibilidade das pessoas, e não dos estudos. Um bom começo é consultar os jornais e revistas mais respeitados por sua cobertura científica. E, quando cientistas respeitados discordam, o melhor que podemos fazer é suspender julgamento. É estultice pontificar.

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M.A., PH.D., É PESQUISADOR EM EDUCAÇÃO

sábado, 6 de agosto de 2022

Jô Soares era um milagre, homem dos mil personagens que sempre sabia se reinventar; leia análise, OESP

 Marcelo Rubens Paiva, O Estado de S.Paulo

06 de agosto de 2022 | 08h33

Jô Soares era um milagre brasileiro. É raro encontrar um sujeito culto, refinado, que trafegava em todas as áreas, TV, teatro, jornalismo, artes plásticas, literatura, cinema, educado no Liceu Jaccard, em Lausanne, ser tão humilde, comunicativo, popular.

Aos 20 anos, contracenou no cinema com Grande Otelo, Emilinha Borba, Nelson Gonçalves. Não se incomodava em fazer escada em Praça da Alegria e, aos 29 anos, para o gigante do humor físico, Ronald Golias, em Família Trapo – uma revolução na TV brasileira, que ficou dez anos no ar, levado ao vivo e com improvisos num teatro lotado da Record.

Encarnava personagens que abordavam questões de gênero, provocavam uma sociedade conservadora, preconceituosa. Ser gordo, assumir ser gordo, ser a favor dos gordos e usar um grande bordão, “viva o gordo, abaixa o regime”, para provocar a ditadura, deram-lhe um assento no lugar de fala dos discriminados.

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Jô Soares trafegava em todas as áreas: TV, teatro, jornalismo, artes plásticas, literatura e cinema Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Se o mundo vivia em pé de guerra e o movimento paz & amor contaminava, lá vinha ele como um hippie doidão em Faça Amor Não Faça Guerra. Passou por Satiricon, Planeta dos Homens, Praça da Alegria, até ganhar protagonismo em Viva o Gordo com seus 300 personagens, do boleiro Zé da Galera, que reclamava pelo orelhão com Telê Santana da falta de ponta na seleção, ao Capitão Gay.

Travestia-se com deleite em personagens femininos, Norminha, a cozinheira gulosa Aninha, Vovó Nana. Fazia o rei anão de joelhos, um autoritário inútil, com uma técnica circense aprimorada.

Reconhecimento

Humor precisa de repertório. Atores dizem que é mais difícil do que drama. Grandes humoristas, de Jerry Lewis a Petter Sellers, fizeram coisa séria com os pés nas costas. E quando todos achavam que Jô estava ultrapassado, ele se renovava.

Tocou uma coluna na Veja, que ilustrava. Mudou de emissora e inaugurou no SBT o gênero tão popular e necessário nos Estados Unidos, late night talk show, inspirado em Johnny Carson e David Letterman, que mistura humor, entrevista, música.

Diferentemente dos seus colegas americanos, uma cláusula da Globo o impossibilitava de entrevistar no Jô Soares Onze e Meia grandes celebridades contratadas. Deu a ele a chance e diferencial de promover um programa politizado, num momento de retomada da democracia. Fez história com entrevistas que eram comentadas no dia seguinte. 

“Ir a um Jô Soares” no SBT e depois na Globo era o auge da carreira de qualquer um. Gentil, nos tratava como estrelas mais influentes do que ele. Dirigia no teatro atrizes refinadas, como Beth Coelho. Certa vez, ambos traduzíamos peças de Shakespeare. Ele dava dicas de dicionários e estilos. 

Solidão

Fui à sua casa numa noite. Demorou para atender a porta. Veio torto, encurvado, reclamando do ciático. Estava sozinho. O grande apartamento de Higienópolis, escuro e vazio. Fomos ao seu escritório, forrado pelo mais potente e moderno equipamento de informática. Havia vários HDs conectados e um monitor gigante. De uma cadeira, operava tudo, como um piloto de Boeing.

Conversamos horas. Quando me preparei para partir, ele enrolava, não queria que eu fosse, não queria ficar sozinho. Era triste. Todo encurvado, no escuro, me levou até a porta.

O homem de mais de mil personagens estava só. Doze anos de entrevistas no SBT, mais 16 na Globo, 28 anos com plateia, banda, entrevistados, em torno de 7 mil programas. E ali, um solitário. Um beijo pra você, gordo. Tem uma galera te esperando por aí.