Joe Miller
Há 400 anos a família de Carletta Heinz produz frascos de vidro especiais para as principais perfumarias do mundo, numa fábrica próxima à floresta da Francônia, na Alemanha.
Mas a invasão da Ucrânia pela Rússia poderá forçar sua executiva-chefe de 38 anos a fechar a empresa antes que ela entre em seu quinto século.
Em caso de escassez prolongada de gás, caso Moscou decida cortar o fornecimento aos países europeus que impuseram sanções à Rússia por causa da guerra, "não conseguiremos sobreviver como empresa", disse Heinz. "Teríamos que desligar completamente [os fornos de fundição de vidro], perderíamos a força de trabalho... e seria muito difícil reiniciar a produção depois de um ano ou dois."
A Heinz-Glas não é a única empresa alemã a dar o alarme. Mais da metade do gás natural consumido no país a cada ano vem da Rússia –a maior proporção entre as grandes economias da União Europeia–, e as indústrias dependentes de gás estão alertando que no inverno suas operações poderão ficar à mercê da boa vontade de Moscou.
Seus temores aumentaram na quarta-feira (30), quando o governo alemão, preocupado com a possibilidade de a Rússia cortar o fornecimento de gás depois que os países da UE rejeitaram a exigência de Moscou de ser paga em rublos, ativou o primeiro de três estágios de alerta em seu plano de fornecimento de emergência.
De acordo com uma lei implementada durante o embargo de petróleo dos exportadores árabes na década de 1970, a indústria alemã seria forçada a reduzir o consumo de gás em caso de escassez, com suprimentos reservados para infraestrutura crítica e residências.
Tal medida custaria à maior economia da Europa dezenas de bilhões de euros, como sugerem estimativas, e poderia mergulhá-la em recessão. Líderes sindicais alertaram que centenas de milhares de empregos estariam em risco.
A economia alemã pode até entrar em sua "pior crise desde o fim da Segunda Guerra Mundial", disse Martin Brudermuller, executivo-chefe da Basf, maior empresa química do mundo em vendas, ao jornal Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung, na quinta-feira.
Christian Seyfert, diretor da VIK, que representa grupos alemães com uso intensivo de energia, como fabricantes de aço ou produtos químicos, disse que a crise "definitivamente poderá ser pior do que a pandemia [Covid-19]".
O coronavírus "atingiu fortemente nossos membros, mas, graças em parte à demanda da China, logo houve uma recuperação econômica", disse ele. "Esta é uma situação ainda mais preocupante."
Embora muitas empresas alemãs tenham ajustado suas previsões de lucros para levar em conta o aumento dos custos de energia em consequência da guerra, algumas das principais indústrias do país dizem que não poderão operar sem fornecimento suficiente de gás.
Os fornos da Heinz-Glas –a maioria dos quais é aquecida a gás a 1.600°C– funcionam 24 horas por dia, com cerca de seis frascos incandescentes saindo da linha de produção a cada segundo. Eles são entregues a clientes importantes em todo o mundo, como Yves Saint Laurent, Tiffany e Estée Lauder.
Se esfriar, o vidro fundido nos fornos solidificará e os equipamentos terão que ser substituídos, a um custo de milhões de euros.
As indústrias químicas e siderúrgicas, muito maiores, enfrentam situação semelhante.
Cerca de 15% do fornecimento de gás da Alemanha são consumidos pelo setor químico, segundo a VCI, seu órgão representativo. A fábrica da Basf em Ludwigshafen, no sudoeste da Alemanha –o maior complexo químico integrado do mundo–, usa quase 4% do gás do país.
Embora o gás usado para geração de eletricidade possa ser substituído por usinas a carvão, seu papel como matéria-prima ou combustível para altos-fornos e outros processos industriais não é facilmente substituído.
A Basf disse ao FT que os "steam crackers" –unidades que quebram hidrocarbonetos em componentes químicos básicos– em sua unidade de Ludwighsafen parariam completamente se as entregas de gás caíssem abaixo de 50% do nível normal, pondo em risco o fornecimento de substâncias usadas em produtos médicos, de higiene e alimentares.
Henrik Follmann, chefe da empresa familiar de produtos químicos Follmann Chemie, com sede na Renânia do Norte-Vestfália, no oeste da Alemanha, disse que o fornecimento de gás é crucial para a produção de nafta. "Precisamos dessa matéria-prima", disse ele. "Se não conseguirmos, as refinarias vão parar, a indústria química vai parar e toda a indústria alemã vai parar."
Ele acrescentou: "Eu forneço produtos químicos para as indústrias de madeira e móveis –se elas não receberem de mim, o que vão fazer? É a mesma coisa para a indústria de fabricação de chips, que depende de produtos químicos, ou para a indústria automobilística".
As siderúrgicas estão igualmente alarmadas com as propostas do governo. Na cidade de Duisburg, no oeste, os altos-fornos das maiores siderúrgicas da Europa dependem do gás como reserva se o suprimento de carvão for insuficiente.
Uma pessoa próxima à Thyssenkrupp, proprietária da usina, disse: "Ficar sob uma quantidade crítica de gás seria perigoso. Causaria sérios danos aos nossos ativos".
É improvável que um corte no fornecimento de gás à Alemanha passe de 50%, dizem analistas. A chamada "destruição da demanda" causada pelo aumento dos preços reduziria o consumo de gás, argumentam. Enquanto isso, cerca de um terço das importações russas poderiam ser substituídas por entregas de outros países, segundo a BDEW, que representa as empresas de energia alemãs.
Esforços para conter o uso de gás doméstico podem reduzir ainda mais o problema. No caso de uma crise de oferta, segundo os economistas da Allianz, "para cada [ponto percentual] de redução no consumo de gás das famílias... até 25 mil empregos serão protegidos na manufatura".
Não está claro se as distribuidoras de energia seriam consideradas responsáveis se não entregassem gás aos clientes. Se o governo obrigar os fornecedores a cortar as entregas, os grupos de serviços públicos estarão protegidos de pedidos de indenização, segundo Christian Hampel, sócio da BDO Legal, que assessora empresas sobre as possíveis consequências da escassez de gás.
Mas "enquanto for possível a aquisição de um substituto o fornecedor de gás deve entregar", acrescentou. A existência econômica dos fornecedores "pode estar em risco" se forem obrigados a pagar preços exorbitantes pelo gás de substituição ou indenizar os clientes, disse ele.
Embora a indústria alemã tenha enfrentado crises de energia no passado, desta vez o governo parecia despreparado, segundo executivos.
O pai de Carletta Heinz, Carl-August, comandou a empresa de vidro da família durante o embargo de petróleo nos anos 1970. Mas o aposentado de 71 anos disse que esta crise é "claramente a mais perigosa".
Retirar a produção da Alemanha "seria o último recurso", disse Carletta Heinz. Ela não se impressionou com as decisões políticas que levaram sua companhia a enfrentar uma ameaça existencial.
"Nosso país realmente falhou em garantir uma segunda fonte [de gás]", disse ela. "Nenhuma empresa agiria dessa maneira."
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves