segunda-feira, 4 de abril de 2022

Indústria da Alemanha diz que racionamento de energia vai devastar empresas, FSP FT

 Joe Miller

Alexander VladkovMartin Arnold
FINANCIAL TIMES

Há 400 anos a família de Carletta Heinz produz frascos de vidro especiais para as principais perfumarias do mundo, numa fábrica próxima à floresta da Francônia, na Alemanha.

Mas a invasão da Ucrânia pela Rússia poderá forçar sua executiva-chefe de 38 anos a fechar a empresa antes que ela entre em seu quinto século.

PUBLICIDADE

Em caso de escassez prolongada de gás, caso Moscou decida cortar o fornecimento aos países europeus que impuseram sanções à Rússia por causa da guerra, "não conseguiremos sobreviver como empresa", disse Heinz. "Teríamos que desligar completamente [os fornos de fundição de vidro], perderíamos a força de trabalho... e seria muito difícil reiniciar a produção depois de um ano ou dois."

Estação de compressão da empresa de gás holandesa Gasunie em Embsen, na Alemanha - Fabian Bimmer/Reuters

A Heinz-Glas não é a única empresa alemã a dar o alarme. Mais da metade do gás natural consumido no país a cada ano vem da Rússia –a maior proporção entre as grandes economias da União Europeia–, e as indústrias dependentes de gás estão alertando que no inverno suas operações poderão ficar à mercê da boa vontade de Moscou.

Seus temores aumentaram na quarta-feira (30), quando o governo alemão, preocupado com a possibilidade de a Rússia cortar o fornecimento de gás depois que os países da UE rejeitaram a exigência de Moscou de ser paga em rublos, ativou o primeiro de três estágios de alerta em seu plano de fornecimento de emergência.

De acordo com uma lei implementada durante o embargo de petróleo dos exportadores árabes na década de 1970, a indústria alemã seria forçada a reduzir o consumo de gás em caso de escassez, com suprimentos reservados para infraestrutura crítica e residências.

Tal medida custaria à maior economia da Europa dezenas de bilhões de euros, como sugerem estimativas, e poderia mergulhá-la em recessão. Líderes sindicais alertaram que centenas de milhares de empregos estariam em risco.

A economia alemã pode até entrar em sua "pior crise desde o fim da Segunda Guerra Mundial", disse Martin Brudermuller, executivo-chefe da Basf, maior empresa química do mundo em vendas, ao jornal Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung, na quinta-feira.

Christian Seyfert, diretor da VIK, que representa grupos alemães com uso intensivo de energia, como fabricantes de aço ou produtos químicos, disse que a crise "definitivamente poderá ser pior do que a pandemia [Covid-19]".

O coronavírus "atingiu fortemente nossos membros, mas, graças em parte à demanda da China, logo houve uma recuperação econômica", disse ele. "Esta é uma situação ainda mais preocupante."

Embora muitas empresas alemãs tenham ajustado suas previsões de lucros para levar em conta o aumento dos custos de energia em consequência da guerra, algumas das principais indústrias do país dizem que não poderão operar sem fornecimento suficiente de gás.

Os fornos da Heinz-Glas –a maioria dos quais é aquecida a gás a 1.600°C– funcionam 24 horas por dia, com cerca de seis frascos incandescentes saindo da linha de produção a cada segundo. Eles são entregues a clientes importantes em todo o mundo, como Yves Saint Laurent, Tiffany e Estée Lauder.

Se esfriar, o vidro fundido nos fornos solidificará e os equipamentos terão que ser substituídos, a um custo de milhões de euros.

As indústrias químicas e siderúrgicas, muito maiores, enfrentam situação semelhante.

Cerca de 15% do fornecimento de gás da Alemanha são consumidos pelo setor químico, segundo a VCI, seu órgão representativo. A fábrica da Basf em Ludwigshafen, no sudoeste da Alemanha –o maior complexo químico integrado do mundo–, usa quase 4% do gás do país.

Embora o gás usado para geração de eletricidade possa ser substituído por usinas a carvão, seu papel como matéria-prima ou combustível para altos-fornos e outros processos industriais não é facilmente substituído.

A Basf disse ao FT que os "steam crackers" –unidades que quebram hidrocarbonetos em componentes químicos básicos– em sua unidade de Ludwighsafen parariam completamente se as entregas de gás caíssem abaixo de 50% do nível normal, pondo em risco o fornecimento de substâncias usadas em produtos médicos, de higiene e alimentares.

Henrik Follmann, chefe da empresa familiar de produtos químicos Follmann Chemie, com sede na Renânia do Norte-Vestfália, no oeste da Alemanha, disse que o fornecimento de gás é crucial para a produção de nafta. "Precisamos dessa matéria-prima", disse ele. "Se não conseguirmos, as refinarias vão parar, a indústria química vai parar e toda a indústria alemã vai parar."

Ele acrescentou: "Eu forneço produtos químicos para as indústrias de madeira e móveis –se elas não receberem de mim, o que vão fazer? É a mesma coisa para a indústria de fabricação de chips, que depende de produtos químicos, ou para a indústria automobilística".

As siderúrgicas estão igualmente alarmadas com as propostas do governo. Na cidade de Duisburg, no oeste, os altos-fornos das maiores siderúrgicas da Europa dependem do gás como reserva se o suprimento de carvão for insuficiente.

Ministros da Economia da Alemanha e da França, Chistian Lindner (esq.) e Bruno Le Maire (dir.), durante pronunciamento em Berlim - Tobias Schwarz/Reuters

Uma pessoa próxima à Thyssenkrupp, proprietária da usina, disse: "Ficar sob uma quantidade crítica de gás seria perigoso. Causaria sérios danos aos nossos ativos".

É improvável que um corte no fornecimento de gás à Alemanha passe de 50%, dizem analistas. A chamada "destruição da demanda" causada pelo aumento dos preços reduziria o consumo de gás, argumentam. Enquanto isso, cerca de um terço das importações russas poderiam ser substituídas por entregas de outros países, segundo a BDEW, que representa as empresas de energia alemãs.

Esforços para conter o uso de gás doméstico podem reduzir ainda mais o problema. No caso de uma crise de oferta, segundo os economistas da Allianz, "para cada [ponto percentual] de redução no consumo de gás das famílias... até 25 mil empregos serão protegidos na manufatura".

Não está claro se as distribuidoras de energia seriam consideradas responsáveis se não entregassem gás aos clientes. Se o governo obrigar os fornecedores a cortar as entregas, os grupos de serviços públicos estarão protegidos de pedidos de indenização, segundo Christian Hampel, sócio da BDO Legal, que assessora empresas sobre as possíveis consequências da escassez de gás.

Mas "enquanto for possível a aquisição de um substituto o fornecedor de gás deve entregar", acrescentou. A existência econômica dos fornecedores "pode estar em risco" se forem obrigados a pagar preços exorbitantes pelo gás de substituição ou indenizar os clientes, disse ele.

Embora a indústria alemã tenha enfrentado crises de energia no passado, desta vez o governo parecia despreparado, segundo executivos.

O pai de Carletta Heinz, Carl-August, comandou a empresa de vidro da família durante o embargo de petróleo nos anos 1970. Mas o aposentado de 71 anos disse que esta crise é "claramente a mais perigosa".

Retirar a produção da Alemanha "seria o último recurso", disse Carletta Heinz. Ela não se impressionou com as decisões políticas que levaram sua companhia a enfrentar uma ameaça existencial.

"Nosso país realmente falhou em garantir uma segunda fonte [de gás]", disse ela. "Nenhuma empresa agiria dessa maneira."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

domingo, 3 de abril de 2022

Morre a escritora Lygia Fagundes Telles, aos 98 anos, OESP

 Ubiratan Brasil, O Estado de S.Paulo

03 de abril de 2022 | 11h06

Dama da literatura nacional, uma das mais amadas escritoras brasileiras, Lygia Fagundes Telles morreu na manhã deste domingo, 3, aos 98 anos. A informação foi confirmada ao Estadão por sua neta, Lúcia, que informou que a avó não passava por nenhum tratamento de doença e ainda não se sabe a causa da morte. "Ela estava velhinha, não sofreu nada", disse.

Autora de uma obra de estilo elegante, ecos machadianos e um permanente estado de espírito que permite manipular a escrita com firmeza e serenidade, Lygia sempre ofereceu ao leitor a oportunidade de pensar sobre suas existências. E seus personagens, especialmente os femininos, exibiram a pluralidade das vozes das mulheres, tornando-se símbolo da luta contra a hipocrisia da sociedade.

Lygia Fagundes Telles
Lygia Fagundes Telles em foto tirada durante evento em abril de 2017. Escritora morreu em 3 de abril de 2022, aos 98 anos de idade Foto: Denise Andrade/Estadão

A escritora Lygia Fagundes Telles descobriu a força que seus personagens exerciam sobre os leitores quando publicou a seleção Meus Contos Preferidos, lançada em 2004. “Uma moça, na barraca do caqui na feira, me reconheceu e cobrou a ausência de Herbarium; dias antes, um sujeito me parou na rua reclamando que não tinha selecionado outro conto, Boa Noite, Maria. Voltei para casa e a carta de uma moça dizia que eu tinha me esquecido de A Confissão de Leontina. Parecia um complô”, riu-se a escritora, que usava a escrita como testemunho da vida, da própria vida.

Muitos de seus livros se tornaram clássicos, como o romance As Meninas, de 1973, obra inspiradora pois reflete o impasse de jovens que viveram numa época obscura. A literatura sempre foi, para Lygia, um caminho para mudar o mundo. Pelas letras, ela transmitiu aos leitores a aventura de novos conhecimentos – seja pelos detalhes do cotidiano, pelo devaneio particular ou mesmo pela vida da imaginação.

Lygia de Azevedo Fagundes nasceu no dia 19 de abril de 1923, na rua Barão de Tatuí, no bairro de Santa Cecília, em São Paulo. Era a quarta filha de uma pianista, Zazita, e do procurador promotor público Durval de Azevedo Fagundes. Por conta da profissão do pai, ela e a família se mudaram para várias cidades paulistas. Se da mãe herdou a vocação artística, de Durval, Lygia descobriu uma de suas profissões.

“Decidi ser advogada por causa do meu pai, Durval, que também se formou na São Francisco. Era um homem lindo, adorável, mas que tinha um grande pecado: era um jogador contumaz. Adorava roleta. Ele me levava a um cassino em Santos e, enquanto eu, pequena, tomava uma enorme taça de sorvete, meu pai jogava as fichas e as perdia, uma a uma. Quando íamos embora, derrotados, ele sempre dizia: ‘Hoje perdemos, mas amanhã a gente ganha’. Eu o admirava muito”, relembrou Lygia ao Estadão, em 2013. “Mas não foi fácil estudar na São Francisco. Na minha turma, éramos apenas seis mulheres entre mais de cem homens. Todas virgens! Certa vez, um dos meus colegas me perguntou: ‘O que vocês, mulheres, querem aqui na faculdade? Casar?’ Respondi, de bate-pronto: ‘Também!’ Mal sabia ele que me casaria com um dos professores (Gofredo da Silva Telles Júnior).”

Lygia se matriculou na Faculdade de Direito em 1941. Lá, conheceu a poeta Hilda Hilst, que logo se tornou uma de suas melhores amigas – antes, ela se formou em educação física, também pela USP. Apesar dos dois cursos, a escrita começa a se impor no seu caminho, principalmente depois que começou a participar ativamente de debates literários.

Seu primeiro livro, Porão e Sobrado, foi publicado em 1938, em edição financiada pelo pai. Já o segundo, Praia Viva, saiu em 1944, um ano antes de seu bacharelado. Em 1949, três anos depois do término do curso de Direito, a escritora publicou seu terceiro livro de contos, O Cacto Vermelho, pelo qual recebeu o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras. 

Do casamento com Gofredo da Silva Telles Júnior, em 1947, adquiriu o sobrenome e teve um filho que muito amou, o cineasta Goffredo Telles Neto, que morreu em 2006, aos 52 anos. Foi na década de 1950 que Lygia escreveu seu primeiro romance, Ciranda de Pedra (1954), que a tornou nacionalmente conhecida pelo público e reconhecida pela crítica – Antonio Cândido, por exemplo, considerava essa obra o marco de sua maioridade como escritora.

O segundo romance, Verão no Aquário, foi lançado em 1963, mesmo ano em que se casou com o crítico cinematográfico Paulo Emílio Sales Gomes. Na verdade, foi um escândalo, pois ela continuava oficialmente casada com Gofredo – a lei brasileira não admitia ainda o divórcio. Em meio a uma grande maledicência, o casal viveu bem e feliz, até a morte dele, em 1977.

Ao Estadão, Lygia gostava de se lembrar dessa fase de felicidade. “Paulo Emílio era um homem encantador, inteligente, vibrante, irônico. Ele me apelidou de Cuco, brincadeira com o relógio de uma velha tia cujo cuco sempre cantava as horas com atraso – eu sempre me atrasava para nossos compromissos. Também apelidou meu filho Goffredinho de Cré, pois, nas aulas de francês, quando o garoto errava feio, Paulo disparava: ‘Crétain!’ (cretino)”, contava, sorridente. 

“Paulo sempre foi um grande incentivador da minha obra, especialmente nos momentos mais difíceis”, continuava. “Como em 1973, quando publiquei As Meninas. Era época pesada da ditadura militar e eu me inspirei, entre outras coisas, num panfleto que detalhava a violência física sofrida por um preso político. Coloquei isso no meio da trama e fiquei apreensiva quando o livro foi enviado para a censura. Enquanto aguardava, nervosa, o veredicto, fui surpreendida pela chegada, alegre, de Paulo, em nosso apartamento. Ele trazia uma garrafa de vinho e estava muito disposto a comemorar. Logo explicou: aborrecido com uma história em que não acontecia nada, o censor só lera algumas páginas, não chegara àquele ponto da tortura e liberava a obra.”

Nos contos, Lygia também exibia um talento único, como comprovam Antes do Baile Verde (1970), Seminário dos Ratos (1977), A Estrutura da Bolha de Sabão (1978), A Disciplina do Amor (1980), Mistérios (1981), A Noite Escura e Mais Eu (1998) e Invenção e Memória (2000). O que os torna tão intensos é a busca da escritora, a partir de seus personagens, das respostas que dão sentido à vida e que permitem às pessoas descobrir a melhor forma de interagir com o mundo externo. Lygia também cria seres que não se livram da memória, vivendo imersos na temporalidade. 

Em 1985, ela foi eleita para ocupar a cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, iniciando uma fase de reconhecimento internacional, como se consagrando Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique de Portugal (1987) e, principalmente, com o recebimento, em 2005, do Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa, pelo conjunto da obra.

Lygia sabia que o talento só era bem exercido com muito esforço – por isso, dizia que rasgava muito seus originais até conquistar o texto que considerava ideal. “Para escrever, você precisa se dedicar de corpo e alma a seu personagem, a seu enredo e à sua ideia”, ensinava. “É preciso que seja um ato de amor, uma doação absoluta, e é impossível sair do transe enquanto não dá a história por acabada, enquanto não decifra o humano. O detalhe é que o ser humano é indefinível. Por mais que tente, você não consegue defini-lo totalmente. O ser humano é inalcançável, inacessível e incontrolável, ele está sujeito a esses três ‘Is’.”

Estatuto da Vítima prevê que quem sofreu violência impeça soltura de criminoso, FSP

 


SÃO PAULO

O Brasil ainda não tem um estatuto de amparo às vítimas, tal qual os que existem em países como Portugal, Espanha, México e Argentina, mas isso deve mudar, em breve. Em fase final de elaboração, o documento brasileiro tramita com urgência na Câmara dos Deputados.

De acordo com texto do Projeto de Lei 3.890/20, o Estatuto da Vítima tem o intuito de defender interesses de quem sofre diretamente danos físicos, emocionais ou econômicos ao ser vítima de crimes, desastres naturais ou epidemias.

A formulação do documento, que se concentra na perspectiva de quem sofre violência, nasceu a partir das práticas implementadas pela promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos no projeto Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), do Ministério Público de São Paulo, e reuniu grupo de promotores, delegados, policiais, psicólogos, religiosos e membros da sociedade civil, coordenados por ela.

"Buscamos visão aprofundada da vítima e o estatuto diferencia as mais vulneráveis", afirma Celeste, no cargo há 15 anos, e que se valeu de sugestões de vítimas durante a elaboração do documento.

"A ideia é formular políticas públicas integradas para o acolhimento e proteção a vítimas para garantir o acesso a serviços essenciais e a informações que ainda não são assegurados pelo poder público."

Mulher de cabelo preto, caído no ombro, esté sentada e usa vestido florido e segura livro sobre direito penal das vítimas
A promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos elaborou o Estatuto da Vítima, que promete trazer proteção a quem sofrer agressão e privacidade de dados - Rubens Cavallari/Folhapress

Dentre as mudanças propostas, a vítima deverá ser avisada de todas as etapas do processo, inclusive quando o agressor estiver prestes a ganhar a liberdade, o que não acontece atualmente, segundo a comissão que elaborou o documento.

Hoje, segundo a promotora, a vítima fica sabendo da condenação ou da absolvição, porém sem nenhum direito de opinar e de contestar uma decisão. Já se o acusado disser que deseja recorrer, ela explica, prevalece a sua vontade.

"A mesma sistemática pode ser aplicada no lado inverso. Se a vítima opinar pelo recurso, o juiz poderá rever sua decisão. Ela terá a chance de se opor a algum elemento apresentado para justificar a soltura e ainda apontar eventual risco à sua integridade física ou psíquica. [Com o estatuto], a pessoa agredida será ouvida e vai se preparar emocionalmente."

A vítima, segundo Celeste, passa a ter direito a se manifestar em relação a decisões jurídicas antes da concessão de benefícios como liberdade provisória, liberdade condicional, progressão de regime e prisão domiciliar.

Outros aspectos do documento são a proteção dos dados da vítima ao registrar boletim de ocorrência, a indenização pelo Estado por crimes ocorridos por falta de segurança pública, assim como do acusado ao ofendido, a criação do conceito de vítimas coletivas (como as de tragédias de Brumadinho e Petrópolis) e indiretas (filho de alguém assassinado), e atenção aos órfãos da Covid.

Um dos pontos exige que depoimentos sejam gravados e apresentados nas fases seguintes do processo, evitando que a vítima preste novas declarações e, com isso, reviva a violência. Mas o texto foi aprovado no grupo de trabalho da Câmara esta semana com exceções, como crimes violentos, onde a pessoa agredida será ouvida novamente.

Para a estilista Ana Paula São Tiago, 40, esse é um dos pontos mais importantes do estatuto. Ela conta que não teve amparo da lei em 2006, quando afirma ter sofrido abuso sexual de um suposto médium. Após finalmente tomar coragem para denunciar, foi incentivada por advogados e promotores a desistir "porque João de Deus é muito poderoso".

Esse silêncio durou anos até que, em 2019, ela conseguiu abrir denúncia contra seu agressor após outras mulheres irem à mídia para acusar João Teixeira de Faria do mesmo crime. Atualmente, ele acumula 106 anos de prisão em condenações por crimes sexuais.

Mesmo assim, ela foi submetida a um processo em que teve que repetir sua experiência traumática para advogados, promotores e juízes por várias e várias vezes. "Eu vivenciei tudo novamente a cada relato novo. Foi duro, cruel e dispensável", diz.

Ana Paula afirma que foi estuprada por João de Deus enquanto seu pai, que tinha câncer cerebral maligno no grau mais severo, era enganado com a promessa de cura por aquele a quem ela chama de charlatão.

"O meu pai foi tapeado na fé. Enquanto ele ludibriava meu pai, estuprava a filha dele. Fiquei perdida e no momento em que mais precisei de ajuda, não tive apoio da Justiça. Se o estatuto existisse naquela época, mais vítimas poderiam ter tido coragem de denunciar e muita dor teria sido evitada."

Outra sugestão do documento é a exigência do treinamento de profissionais de delegacias para escuta empática. Ao registrar o B.O., os delegados terão o dever de esclarecer à vítima sobre seus direitos. Esse ponto já é previso em lei, mas não é visto com frequência na prática.

"É uma questão cultural. Mas os direitos da vítima já começam no boletim de ocorrência, porque o delegado é o primeiro garantidor da lei, e deveriam ser reforçados em documento impresso", afirma Ivana David, desembargadora do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo).

A desembargadora exalta o estatuto e diz que ele traz novos conceitos e moderniza outros já existentes. Ela destaca, ainda, a padronização do atendimento em todos os cantos do Brasil.

"É um olhar maior do que a gente já tem hoje. Esse documento amplia direitos das vítimas, corta a burocracia processual e impõe regras ao juiz onde quer que esteja."

A estilista Vana Lopes, 61, conta que em 1993 sofreu violência sexual do ex-médico Roger Abdelmassih ao se submeter a processo de fertilização in vitro e diz que se sentiu "perdida" com a falta de suporte das autoridades.

Ela ainda processou Abdelmassih ​por erro médico e pelo sumiço dos seus 11 embriões e ela desenvolveu síndrome do pânico.

"Quando sofremos violência, é um susto, ficamos desorientadas. No momento que mais precisei de ajuda, senti falta da solidariedade dos órgãos públicos, de humanidade."

Em 2011, quando o médico condenado a mais de 170 anos de prisão por estupro teve seu registro caçado e estava foragido da Justiça, Vana —que contou a história no livro "Bem-Vindo ao Inferno"—, iniciou um coletivo de ajuda a pacientes do ex-médico, o Vítimas Unidas, que foi ampliado e atualmente tem cem casos ativos de diversas naturezas.

Vana destaca outro ponto importante contemplado pelo PL: o tempo da vítima para denunciar. "Ela fica paralisada, em qualquer classe, profissão. Quando se sofre violência, é preciso de um tempo para entender o que aconteceu", diz.

Ela explica que o estatuto vai mediar isso, porque haverá psicólogo e assistente social nas delegacias, além de advogado para orientar a vítima.

De autoria do deputado federal Rui Falcão (PT), o PL passou por audiências públicas antes de ser aprovado no grupo de trabalho da Câmara. "O projeto está tendo boa acolhida na Câmara, mas não queremos distorções."

De acordo com Falcão, há uma sugestão de que parte do ressarcimento às vítimas pelo Estado saia do Fundo Penitenciário, "que praticamente está esterilizado e sem destinação".

Há quem diga que o estatuto é apenas um sonho, segundo a desembargadora Ivana. "Temos que começar em algum momento. O que não dá é deixar a vítima exposta a crimes e a um Estado que fica de braços cruzados."

"Muitas vezes a sociedade não sabe os direitos que possui, e com o estatuto ficará mais claro. Não vai ser fácil o Estado bancar, o Judiciário vai ter que brigar muito. Vamos exigir sua aprovação e execução, porque é muito bem-vindo."

Depois de passar pela Câmara, o documento segue ao Senado e, se aprovado, para sanção presidencial. Com o objetivo de sensibilizar os parlamentares pela aprovação do Estatuto da Vítima, circula na plataforma Change.org um abaixo-assinado em defesa do projeto.