sábado, 23 de outubro de 2021

Oliveiros Ferreira, uma ausência sentida, OESP

Marco Aurélio Nogueira, O Estado de S.Paulo

23 de outubro de 2021 | 03h00

Nos momentos mais agudos de crise e confusão institucional, muitos o procuravam, em busca de uma opinião diferenciada, fora do mainstream, uma compreensão mais abrangente da vida.

Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), que faleceu há exatos quatro anos, é uma voz cuja ausência nos faz falta. Heterodoxo, provocador, observador atento dos processos políticos e de seus bastidores, era um intelectual completo, que não fugia da responsabilidade de trabalhar com ideias. Não evitava as críticas, gostava de atrai-las, transformando-as em alimento para as próprias elucubrações.

Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator-chefe e diretor. Trabalhou também como professor na USP (desde 1953), na PUC, na Unesp. Notabilizou-se como um dos pioneiros no estudo das relações internacionais. Foi meu orientador no doutoramento, período em que descobri quanto ele era um intelectual diferenciado, que reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas. Era um professor cativante, sabia ensinar e instigar, atiçava os estudantes com suas elipses e metáforas.

Ainda hoje me valho da “teoria das posses essenciais” (das almas, dos corpos, do poder, do excedente), que fundamentava a ciência política de Oliveiros. Nela havia influências múltiplas: Durkheim, Weber, Marx, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Oliveira Viana, Hobbes, Maquiavel, Clausewitz, Rousseau, Trotsky, Gramsci. Ao marxista italiano, Oliveiros dedicou estudo sistemático, convencido de que Gramsci era um vigoroso pensador do Estado. Sua tese de livre-docência, defendida na USP, foi uma leitura dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Oliveiros deu-lhe o título de Os 45 Cavaleiros Húngaros, numa remissão à história dos soldados húngaros que, em reduzido número, submeteram a população inteira de uma cidade.

Em seu pensamento, a teoria social, as relações internacionais, a História e a política mantinham-se sempre articuladas. Estava convencido de que não pode haver teoria política sem Sociologia, o “nacional” é sempre parte do “global” e os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se dão”, da “densidade e do volume dos grupos sociais” que se relacionam e lutam entre si.

Em momentos de crise como o que enfrentamos hoje, a teorização de Oliveiros é esclarecedora. A dominação política não se reduz a posses materiais e uso da força. Domina quem exerce uma “direção intelectual e moral” (Gramsci), ou seja, unifica pensamento e vida prática, emoções, valores e interesses, de modo a soldar “as experiências de vida num projeto votado a transformar o mundo, ou a conservá-lo aparentemente como tal”, escreveu Oliveiros.

Assim ele chegava ao Estado, o ente que organiza, define uma ordem normativa, garante a soberania. O Estado, para ele, era unidade de decisão e ação, mas também um “espaço” onde as classes sociais lutavam para se tornar dirigentes, ou seja, um lócus de disputa hegemônica, no qual venciam os que conseguissem elaborar uma concepção do mundo que alcançasse o “grande número” e neutralizasse os adversários.

Oliveiros foi um unitarista preocupado em ver o Estado como articulador da sociedade, defensor de seu território e de seu patrimônio. Pensou a política a partir desse registro, sem nunca aceitar que em nome da unidade estatal (ou do “amor pela Pátria”) se aniquilassem as diversidades regionais, a cultura e a democracia.

Para ele, no Brasil, as classes sociais não souberam unir politicamente o País e sobrecarregaram o Estado. Passamos a viver sob a sombra ameaçadora de ditaduras e guinadas autoritárias. Com isso, um pedaço da estrutura estatal – os “militares” – terminou por agir com maior desenvoltura política, como Oliveiros salientou no livro Os elos partidos (2007).

Após a democratização dos anos 1980, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e o País enveredou por trilhas inquietantes. Piorou com a eleição, em 2018, de um governo que age sem responsabilidade, limites e escrúpulos. Oliveiros poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista “prostituiu” o Estado e suas instituições. A política deixou de fixar grandes objetivos nacionais com que alimentar os órgãos do Estado e, por meio deles, chegar à população. Oliveiros estaria atento aos fatos, mobilizando sua “dialética da Ordem” para analisar o que muda e como pode mudar a realidade.

Hoje, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional: a organização autônoma da sociedade e a articulação entre Estado e vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro”.

Oliveiros ajudou-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos. Foi uma referência para jornalistas e cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais sem esquemas atrofiadores. Sua ausência faz uma falta danada.

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PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP 

Piada pronta, ideias fixas, Bolívar Lamounier, O Estado de S.Paulo


23 de outubro de 2021 | 03h00

Tem-se dito que o Brasil é o país da piada pronta, e exemplos disso não faltam; mas não nos esqueçamos de que somos também mestres em ideias fixas.

Piadas prontas não fazem mal a ninguém, ao contrário das ideias fixas, que podem causar sérios danos. Destas, na América Latina, o clássico absoluto é o de que o sistema presidencialista de governo é o único que se coaduna com nossa “índole”. Certa vez ouvi um presidente latino-americano dizer com toda seriedade que o presidencialismo é irremovível porque expressa a ideia do “chefe”, uma necessidade do inconsciente popular que remonta às comunidades indígenas de séculos atrás. No Brasil, desde a proclamação da República, os adeptos desse sistema não se cansam de afirmar que a concentração das duas funções, chefia de Estado e de governo, numa entidade unipessoal, o presidente, assegura a estabilidade do regime democrático e confere unidade aos programas de governo. Consumado o golpe militar encabeçado pelo marechal Deodoro, o Brasil não tinha como retornar ao parlamentarismo do Império, porque as regiões exigiam a Federação e porque, em tal hipótese, o sucessor de D. Pedro II na chefia do Estado seria uma mulher, ainda por cima casada com um conde estrangeiro.

Nos primeiros anos do regime de 1891, toda uma geração de intelectuais influenciados pelo fascismo em ascensão concordou com Rui Barbosa por ter ele elaborado uma Constituição presidencialista, mas lhe desceram o cacete por ter escolhido um modelo “fraco”, o dos Estados Unidos, por mero instinto de imitação. Queriam uma ditadura presidencial.

Deixemos, porém, de lado a República Velha e vejamos o que tem sido o nosso presidencialismo desde aqueles tristes primórdios. Em meu livro Da Independência a Lula e Bolsonaro, recentemente reeditado pela Editora FGV, citei este parágrafo do celebrado mestre Maurice Duverger, adepto de uma atenuação do presidencialismo: “O sistema presidencial (puro) é intrinsecamente propenso à instabilidade. É o que evidencia toda a América Latina. O sistema presidencial jamais funcionou a contento a não ser nos Estados Unidos. Noutros países, ele degradou-se em presidencialismo – vale dizer, em ditadura”. Penso que o mestre francês seria menos benévolo mesmo em relação aos Estados Unidos, se tivesse testemunhado o confronto de 2016 entre Hillary Clinton e Donald Trump e o desempenho deste na presidência.

Mas o melhor exemplo da relação entre presidencialismo e estabilidade é, com certeza, a Argentina, país que logrou a proeza de regredir ao subdesenvolvimento após atingir um alto grau de riqueza. Reproduzo, aqui, o registro de Carlos H. Waisman, um destacado estudioso da história de seu país: “De 1930 até o restabelecimento da democracia em 1983, a Argentina sofreu seis portentosos golpes militares (1930, 1943, 1955, 1962, 1966, e 1976), e numerosos outros de menor importância. Naquele período, o país teve 25 presidentes. Excluindo a ditadura de Perón, que durou dez anos (1946-1955), foram, portanto, 24 presidentes em 38 anos, ou seja, governos com uma duração média de 1,6 ano! Estabilidade para ninguém botar defeito.

O ciclo brasileiro de governos militares (1964-1985) não chegou a tanto, mas engana-se quem se atém à superfície dos acontecimentos, esquecendo-se da instabilidade que lavrou continuamente dentro da corporação militar durante aqueles 21 anos. O marechal Costa e Silva não acatou as diretrizes de seu antecessor, o marechal Castelo Branco, e se impôs como candidato. Quando faleceu, em 1969, o Alto Comando recorreu a um golpe sem rebuços, impedindo a posse do vice, deputado Pedro Aleixo, legitimamente eleito pelos critérios que a própria corporação militar antes estabelecera, e instalou no Planalto o general Emílio Garrastazu Médici. A sucessão deste pelo general Ernesto Geisel foi, digamos assim, tranquila, graças ao detalhe de que seu irmão, Orlando Geisel, era então o titular do Ministério da Guerra. Mas o próprio Ernesto Geisel foi obrigado a sobrestar um golpe que seu ministro da Guerra, general Sylvio Frota, começara a articular contra ele. Para demitir Sylvio Frota, Ernesto Geisel deixou de lado as formalidades e disse-lhe na lata: “O cargo é meu”. Geisel precisou também aparar arestas na caserna quando decidiu delegar ao general João Figueiredo a incumbência de encerrar o ciclo militar.

Uma das muitas diferenças relevantes entre os dois sistemas de governo é a de que a única fórmula legítima de que o presidencialismo dispõe para afastar do cargo a pessoa que concentra as duas funções, chefe de Estado e de governo, é o sempre traumático impeachment, que requer a demonstração de “crime de responsabilidade”, conceito que só uma minoria da sociedade compreende. O parlamentarismo, para recorrer ao voto de não-confiança, só precisa demonstrar que o titular do cargo é incompetente ou corrupto, ou não conta com o respeito do Congresso. Dilma Rousseff, por exemplo, poderia ter sido afastada em três semanas, poupando-nos todo aquele tormento.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Muniz Sodré O retorno ao pior, FSP

 


Dias atrás, a verve sempre elegante de um colunista nos fazia lembrar o alienista (machadiano) Simão Bacamarte e o deposto dom Pedro 2°, que partiu reclamando dos doidos: "Ambos sabiam que, de tempos em tempos, os malucos dão as cartas" (Elio Gaspari).

O senso comum identifica as louquices públicas dos mandatários por despropósitos de linguagem ou por desequilíbrio de ações. Ilogismo é o termo extensivo para o fenômeno. Reponta aqui e ali na insanidade, senão em distopias literárias, como "1984", de George Orwell. Para registro, as três divisas do seu Ministério da Verdade: guerra é paz, escravidão é liberdade e ignorância é força. Esta última é oportuna, fala de coisa que atravessa os tempos.

O ator John Hurt em cena do filme "1984", baseado na obra de George Orwell - Divulgação

Na Antiguidade, temia-se tanto a ignorância (agnoia) a ponto de representá-la como uma das Fúrias, um ser infernal. A falta de conhecimento de si mesmo, dos objetos imediatos ou dos modos de fazer sempre foi causa de perdição do homem aos olhos dos deuses e dos comuns. Ignorar é não ver o real. Na Bíblia, o ignaro é um cão que retorna ao próprio vômito (Provérbios, 26.11).

Mas como pode ser força? São Tomás de Aquino deu uma pista ao falar de "ignorantia affectata", quer dizer, ignorância intencional, respaldada por motivações sombrias. Faz fronteira com o extremismo e a loucura, daí o potencial destrutivo da servidão que desconhece a própria cegueira.

Basta lembrar o Irã do xá Reza Pahlevi, moderno apenas para as castas escolarizadas. Por fora, dezenas de milhões de pessoas que não sabiam ler nem escrever, mas eram o Povo do Livro, nome piedoso para a obediência cega ao Corão.

O império do xá caiu como um castelo de cartas. É que a força da ignorância marca o ponto regressivo de uma modernidade indiferente ao desamparo dos danados da Terra. Um autocrata maluco pode ser o "divino" escolhido para o contato emocional com seus fiéis ignaros. Ou com letrados perversos.

Em detrimento da educação, sustentáculo de toda democracia, emergem formas de vida desvairadas, em que a ciência é confundida com Satã e vacina com falta de liberdade. Horrível de dizer, mas Orwell acertou.

A ignorância tem força transitiva na alucinação política, que é a modernidade enforcada. Disso o paradigma ocidental é certamente o nazismo, com suas variáveis persistentes nas ditaduras do Oriente Médio. Mas não temos de olhar para muito longe: a quase divinização de Donald Trump na maior potência do planeta tem semelhanças de família com a lógica do pior.

No zero dos valores, os cães podem retornar, sim, ao vômito.