sábado, 23 de outubro de 2021

Um estranho no paraíso, Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo


20 de outubro de 2021 | 03h00

Vivemos num vale de lágrimas. E não é por acaso que rezo o “Salve Rainha, Mãe de misericórdia(...) A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas…”.

Piano
As canções que tocavam no piano de nossa mãe ajudavam a suportar o vale de lágrimas Foto: Steve Buisansse/Pixabay

Não é difícil ver que a Virgem Maria é a nossa mãe e advogada galáctica. No meu caso, Maria de Lourdes (Lolita), em cujo ventre morei por nove meses, foi uma prodigiosa pianista frustrada (aos 6 anos ela tocava piano), mas virando mãe de seis filhos seu palco era a família para a qual ela dava um recital no fim do dia, sob o olhar orgulhoso de papai. 

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Foi ela quem nos apresentou aos grandes mestres – que chamava de difíceis, trocando-os pelos não menos talentosos Braguinha, Lamartine Babo, Jobim, Lyra, Pixinguinha, Bororó e Ary Barroso. Dos clássicos, tocava uma música do russo Alexander Borodin popularizada no musical Kismet, levado à cena na Broadway em 1911 e num filme de 1955. A canção era A Stranger in Paradise e mamãe a tocava talvez mais para nós do que para ela. Aliás, no fundo, era Borodin quem tocava a pianista...

A letra americana de Um Estranho no Paraíso reúne uma reprimida e rotineira sensualidade. A do amante diante do corpo da amada, que vai transformar a poesia num doce encontro neste estranho paraíso chamado corpo que a dança nos dava permissão para sentir e abraçar.

Um Estranho no Paraíso foi a primeira música que ouvi de Tony Bennett. A segunda foi Because of You. Ambas são dos anos 1950, quando – puxa vida! – eu tinha 17 anos, aprendia a dançar e estava “perdidamente apaixonado” por várias meninas. 

A turma, porém, polarizou. Metade dizia que nada se comparava ao Sinatra de All or Nothing at All, o velho lema dos apaixonados de morte. Outros diziam que Tony era o máximo.

O que as polarizações boçalmente imobilizam, trocando seis por meia dúzia, a vida resolve. Bennett ficou e muitos (sobretudo músicos negros e gays) também. Foram as músicas que cantavam que nos ensinaram a amar e aceitar o fim de um amor. 

As canções que tocavam no piano de nossa mãe eram, vejo agora, como preces: ajudavam a suportar o vale de lágrimas. 

Saudade, leitores. Foram essas músicas que abriram as portas do carinho físico e da sensualidade. Foram elas que tornavam o complicado, procurado e sempre difícil amor ser algo palpável, assustador e deliciosamente concreto. 

PS: Sinatra eternizou-se e, entre outros milagres, fez parar de chover no Maracanã em 1980, mas Bennett mostra, com Lady Gaga, o milagre da música. Cantando, derrotou o Alzheimer. Cantando, como diz o velho ditado, espantamos nossos males. A música nos torna menos estranhos no paraíso e, certamente, no vale de lágrimas. 

É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Prevent Senior fecha acordo com MP e se compromete a vetar ‘kit covid’, OESP

 Rayssa Motta

22 de outubro de 2021 | 15h02

Fachada de unidade da Prevent Senior em São Paulo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Prevent Senior assinou nesta sexta-feira, 22, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público de São Paulo em que se compromete a vetar o uso off-label do ‘kit-covid’ e a realização de pesquisas internas com remédios ineficazes contra o novo coronavírus. 

Documento

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A operadora de saúde é acusada de administrar medicamentos como coloroquina, hidroxicloroquina e invermectina sem o consentimento dos pacientes e de esconder ocorrências de mortes. 

O advogado Aristides Zacarelli Neto, que representa os irmãos Fernando e Eduardo Parrillo, donos da empresa, se reuniu nesta tarde com o promotor de Justiça Arthur Pinto Filho, responsável pela investigação na esfera cível, para selar o acordo. Eles sentaram à mesa exatamente uma semana após o MP oferecer o TAC.

Zacarelli disse que o TAC ‘não produz prova e muito menos admite culpa’. De acordo com o advogado, o objetivo da assinatura foi ‘aproximar e dar mais voz aos colaboradores e beneficiários’. “A empresa é sólida e sairá ainda mais forte deste momento”, afirmou.

O termo livra a operadora de uma eventual ação civil pública pela conduta na pandemia. A multa em caso de cumprimento varia de acordo com a cláusula entre R$ 10 mil e R$ 100 mil por ocorrência.

“É inacreditável que ainda hoje no Brasil se discuta a eficácia do kit-covid. O TAC é um avanço muito grande para mostrar que esses medicamentos não não mais aceitos na medicina moderna”, defendeu o promotor Arthur Pinto Filho após a assinatura do acordo.

Entenda os principais pontos do acordo:

  • Proibição ao uso do kit-covid;
  • Proibição a tratamentos experimentais sem autorização prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa);
  • Instituição da figura de um ‘ombudsman’ contratado e pago pela Prevent Senior, desde que tenha o nome aprovado pelo MP, para fiscalizar internamente os procedimentos da operadora, inclusive recolhendo sugestões e críticas dos segurados;
  • Veiculação de avisos em jornais de grande circulação para esclarecer que não fez nenhuma pesquisa que tenha atestado a eficácia do kit-covid;
  • Veto a alterações no código de diagnóstico dos pacientes em documentos internos e preenchimento de declarações de óbito com ‘informações verdadeiras, o mais detalhadamente possível, sem omissões e sem alterações a posteriori’;
  • Disponibilização dos prontuários aos pacientes e familiares de vítimas.

A criação de um conselho gestor, nos moldes dos conselhos municipais de saúde, para orientar os dirigentes dos hospitais da rede foi o único ponto proposto inicialmente pelo MP que ficou fora da versão final. O colegiado também ficaria responsável por fiscalizar as cláusulas do acordo e por fazer a ponte entre segurados, médicos e a Prevent Senior.

“Nós achamos melhor pensar com mais calma esse modelo”, disse Pinto Filho após ouvir os argumentos da Prevent Senior. A operadora apresentou ressalvas sobre a possibilidade de ‘instrumentalização’ do conselho em um momento em que já está exposta diante da opinião pública.”Eu acho a questão do conselho gestor fundamental, mas não houve um consenso”, acrescentou. Ainda poderá haver um aditivo ao termo assinado hoje para a instituição do conselho.

Em outra frente, o Ministério Público de São Paulo estuda a cobrança de uma multa por danos morais coletivos pela administração do kit-covid e da pesquisa que teria sido feita pela operadora. Uma reunião com representantes do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho está prevista nos próximos 15 dias para discutir critérios para um pedido conjunto indenização.

“Eu acho muito importante que se estabeleça um dano moral coletivo que repare o dano causado à sociedade”, disse o promotor. Se a Prevent Senior não aceitar o valor cobrado, uma ação civil será enviada à Justiça. A empresa já sinalizou que está disposta a negociar o pagamento, o que não impede que familiares de vítimas ajuízem ações particulares. O TAC inclui uma cláusula que proíbe a operadora de ‘obstaculizar ou negar acesso ao prontuário médico pelo paciente, seu representante legal ou familiares’, também para facilitar a avaliação sobre a possibilidade de judicialização por aqueles que perderam familiares.

A Prevent Senior também é investigada por uma força-tarefa de oito promotores paulistas na esfera criminal. Eles apuram se houve dolo da operadora e se há, de fato, uma relação entre a administração do ‘kit-covid’ e as nove mortes no estudo interno denunciado por médicos à CPI da Covid.


Angela Alonso -A CPI expressa mais a nação do que o governo, FSP

 Acabada em meio a vazamentos, estrelismos e futricas, a CPI da Covid perdeu a chance de se fechar com a merecida chave de ouro. Dividindo-se, desperdiçou no finalzinho o que fez tão bem ao longo de sua existência: ser a voz da nação contra o governo.

A ideia de trazer depoentes comuns, cidadãos que perderam um pedaço de suas vidas ao perderem vidas que amavam, foi um grande ato político.

Alcançou dois efeitos difíceis de sobrepor. Um foi mostrar didaticamente o que um Parlamento pode ser: a expressão da sociedade que o elegeu. O outro foi a combinação genuína –fake é fácil– de emoção pessoal e ação política. Abriu espaço para que a dor das famílias das vítimas ganhasse foro institucional. Assim converteu o sofrimento privado em indignação pública contra a maior autoridade política nacional. Ato de dramaticidade rara, que poucas vezes a política alcança.

Comoveu a todos, menos ao presidente. Lido o relatório final da CPI, Bolsonaro foi Bolsonaro: "Nada produziram a não ser o ódio e rancor entre alguns de nós", "não temos culpa de absolutamente nada". O país, para além do cercadinho, discorda deste juízo.

O descompasso entre presidente e nação está claro nas pesquisas sobre governo e voto para o ano que vem. Aí se medem opinião e intenção. Nenhuma das duas é balsâmica para Bolsonaro.

Mas o recado acachapante vem da prática: 73% da população tomou a primeira dose da vacina. Considerados apenas os com mais de 18 anos, há quase unanimidade: 96%. Uma taxa de adesão assombrosa. Como esta é a gente que obrigatoriamente vota, a decisão presidencial de não se imunizar representa menos de 4% do eleitorado.

E como quem vacina é o Estado —apesar de empenhos do governo de delegar a tarefa à iniciativa privada—, o sucesso é do Estado. O Estado que o governo se empenha tanto em destruir.

Ao longo de décadas, o Brasil montou uma estrutura de políticas de bem-estar, que inclui as campanhas de vacinação e todo o arcabouço do SUS. A solidez deste sistema de saúde pública universal passou, no ápice da disseminação da Covid, pelo maior dos testes: funcionou apesar de omissões, boicotes, inoperâncias e incompetências governamentais.

O êxito da imunização em massa resulta de política pública bem urdida e de burocracia estatal aperfeiçoada por governos de diferentes partidos. Ancora-se na capilaridade do Estado e na dedicação de funcionários públicos, tidos por indolentes pela parte Guedes da sociedade. Se o Estado fosse miudinho, a tragédia seria mais graúda e mais comprida.

A CPI documentou a falência bolsonarista no provimento do bem-estar coletivo. Agora que a frente sanitária melhora, a inépcia do governo ficará a céu aberto, de corpo inteiro, sem o guarda-chuva da emergência. Os olhos se deslocam da pandemia para seus efeitos em educação, saúde, emprego, inflação, enfim, em todas as áreas nas quais o fracasso da administração Bolsonaro é retumbante.

Este governo tem um ano para fazer o que não fez em três. Seu êxito é da ordem do improvável. Mas, decerto, nem liga, pois joga a política no campo do espetáculo, não no da gestão.

Ao contrário da CPI, Bolsonaros e bolsonaristas estão em dissonância com a pátria que dizem defender. A nação está enlutada, de preto, como a capa do relatório da CPI. Quem vive em meio às desgraças do Brasil real não anda por aí gargalhando como o filho-senador ou, como o filho-deputado, fantasiando-se de xeique de um reino imaginário.