quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

O que fazer em 2021, Antonio Delfim Netto, FSP

 Mesmo na ausência da pandemia, sabia-se que 2020 seria um ano desafiador. A urgência de avançarmos nas soluções para a nossa encruzilhada fiscal já estava configurada, e, portanto, o andamento dessa agenda, dentro de um calendário exíguo devido às eleições municipais, demandaria uma fina coordenação entre Executivo e Legislativo.

A pandemia exigiu um desvio de rota, e os esforços realizados no âmbito da PEC da Guerra, as medidas de crédito e de preservação do emprego e a atuação do Banco Central permitiram ao Brasil um relativo sucesso na economia, com uma queda projetada para o PIB de cerca de metade das estimativas iniciais.

Mas a agenda mais urgente, a da reorganização das contas públicas, não se materializou. É verdade que o ministro Guedes às vezes parece perder o foco. Mas também é verdade que muitas das soluções apresentadas adormeceram nas mãos do Legislativo. Afinal, no início de novembro de 2019, três imprescindíveis PECs fiscais foram enviadas ao Senado. Também estão parados no Congresso outros tantos projetos, como a Lei do Gás e a reforma administrativa. Esta última, dura e corretamente exigida pelo ministro ao longo de 2020, foi enviada em setembro e ainda aguarda a designação de um relator...

Se o governo foi e deve ser cobrado pelo envio desses projetos ao Congresso e pelo seu tímido avanço, parece natural que também o Parlamento deva explicações pela letargia. O ímpeto reformista do Legislativo se perdeu, talvez como reflexo da disputa de poder interna para comandar a pauta no biênio que se inicia e, portanto, influenciar tanto o desempenho do governo quanto o desenho eleitoral em 2022.

Há pouca convicção no Executivo em apoiar a agenda econômica, o que já se intuía desde a reforma da Previdência, aprovada a despeito do presidente Bolsonaro. Sua baixa disposição para decidir e relutância em liderar temas difíceis ficou novamente evidente nas discussões sobre o financiamento do substituto do auxílio emergencial e nas versões cada vez mais aguadas das PECs fiscais.

[ x ]

É urgente a retomada das medidas de reorganização fiscal. Sem a regulamentação dos gatilhos do teto e o endereçamento do crescimento endógeno das despesas obrigatórias, continuaremos a procurar com lupa o investimento público no Orçamento.

O investimento já não repõe a depreciação do estoque de capital há algum tempo, o que significa que estamos num processo de autofagia, comendo nossas próprias entranhas. Sem abrir espaço orçamentário para o investimento público, que dá ao setor privado a expectativa de que haverá crescimento e o induz a investir, não haverá crescimento sustentado.

Antonio Delfim Netto

Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.


Os brutos também amam o mimimi, Ruy Castro FSP

 A palavra mimimi ainda não está nos dicionários. Pelo menos não nos aurélios e houaisses, mas a culpa pode ser das minhas edições, tão antigas que ainda impressas em papel. Mimimi é um desafio à morfologia, ciência que, em linguística, significa o estudo da estrutura e da formação das palavras. De onde veio mimimi? Desconhece-se uma raiz que a justifique. Pode ter vindo de mi, a 3ª nota da escala musical, donde mi-mi-mi seria uma sequência de mis. Mas não deve ser o caso —é raro alguém sair solfejando em meio aos selvagens bate-bocas em que hoje é usada a palavra mimimi.

Foi com ela que, de maneira avassaladora nos últimos tempos, bandeiras como o combate ao racismo, ao feminicídio, à homofobia, ao genocídio, às armas que levam ao homicídio e a outros cídios passaram a ser classificadas por certos grupos. Mimimi é sinônimo de chororô, vitimismo maricas, coisa de fracos, choro de perdedor. Tornou-se não apenas uma forma de negar aos humilhados e ofendidos o direito de se defenderem como de ridicularizá-los, reduzindo seus argumentos a uma palavra cômica.

Mas, quando se pensava que o mimimi não teria lugar no universo da macheza e do triunfalismo, eis que a menção a um inesperado cídio —o suicídio— acusa uma brecha nessa carapaça de invencíveis e inexpugnáveis.

[ x ]

Um colunista sugeriu candidamente a Jair Bolsonaro que, para o bem do Brasil, se matasse. Mera ironia, sabendo-se que é o que Bolsonaro sugere todo dia ao povo brasileiro, ao induzi-lo a contrair o coronavírus desprezando a máscara, o álcool gel, o distanciamento, a vacina. É claro que, sendo Bolsonaro um macho full-time, ex-soldado, ex-atleta e ex-humano, a dita sugestão nem o abalou. Mas abalou seus apoiadores. "É um crime!", gritaram. "Uma covardia!". "Não se induz um homem ao suicídio!". "E se ele aceitar a sugestão??".

Surpresa! Os brutos também amam o mimimi.

Jair Bolsonaro com fãs em São Francisco do Sul (SC) em Santa Catarina - Facebook
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ford vai além, editorial FSP

 O encerramento das atividades de uma grande empresa é necessariamente doloroso. Milhares de trabalhadores perdem seus empregos, e consumidores, seus produtos. O impacto se espalha, por vezes de modo terminal, entre fornecedores, investidores, credores, comércios e regiões adjacentes.

Tratando-se de uma companhia como a Ford brasileira, o evento ganha dimensões simbólicas e políticas. Uma das marcas principais da industrialização do país anunciou na segunda-feira (11) o fechamento de suas fábricas, e governos do presente e do passado têm sua responsabilidade escrutinada.

A experiência demonstra, entretanto, que intervenções do Estado destinadas a prolongar a longevidade de negócios resultam em mazelas ainda mais graves e duradouras. O setor automobilístico, aliás, também simboliza distorções da industrialização nacional.

A decisão da Ford decerto encontra motivos na estratégia particular da empresa, na situação de seu ramo de atividade, na conjuntura econômica e na condição estrutural do país —e governos, como norma geral, só deveriam interferir em favor das duas últimas.

Em fevereiro de 2019, a montadora já anunciara o fechamento da fábrica de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Àquela altura estava claro que transformações profundas se aproximavam.

O setor como um todo se adapta a novas circunstâncias do mercado global —de mudanças nos hábitos dos consumidores às pressões por veículos não poluentes, passando pela ascensão dos aplicativos de transporte individual.

Desde períodos anteriores, de todo modo, está fadada à exaustão a política brasileira de subsídios e proteção à indústria, que resulta em produtos caros e custos para o erário. Hoje vigora o programa Rota 2030, de 2018, que substituiu o Inovar-Auto, considerado parcialmente ilegal pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Aqui e agora, o governo de Jair Bolsonaro não deve fazer nada pela Ford ou outras empresas em particular. Tem pela frente, isso sim, enormes tarefas, até o momento negligenciadas, para a recuperação da atividade, a proteção da população mais vulnerável e a melhora do ambiente de negócios do país.

Vacinação, ampliação do Bolsa Família, abertura a importações, privatizações, reformas administrativa e tributária —há muito a fazer para evitar que o Brasil testemunhe mais desinvestimento.

editoriais@grupofolha.com.br

  • 8