sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

1/4 O DIA EM QUE MINHA MÃE ENVELHECEU, Angélica Santa Cruz, Revista Gama (definitivo)

 Jane Fonda tinha uma certa dificuldade para manter o equilíbrio sempre que suas mãos eram presas em um par de algemas de plástico. E ficava aliviada quando percebia que era levada pelos policiais para um ônibus com degraus baixos, mais fácil de embarcar. Esses dois detalhes – a leve tontura, a torcida por uma viatura acessível – apareceram meio na diagonal em um artigo sobre a atriz publicado no The New York Times. Eram dados acessórios, mas foi a única informação do texto que fui capaz de reter. A atriz causou rebuliço planetário pouco antes da pandemia ao ser presa cinco vezes por fazer manifestações em Washington contra as mudanças climáticas, sempre usando um lindo casaco vermelho.

Tirando esses pequenos percalços que chamaram a minha atenção – e que, eu acho, se devem a uma queda da função do labirinto e à diminuição da força muscular que aparecem com a idade – não teve grandes limitações, encarou todas. A atriz foi um ícone pop da cultura jovem, agora é um ícone pop do envelhecimento. Como costuma acontecer com as celebridades, é também involuntariamente alçada a uma existência diáfana – virou uma nova expressão da velhice, um símbolo de uma maneira jovial de ser idosa.

O software da minha mãe é o oposto da Jane Fonda. Ela lembra a aconchegante Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, na versão ilustrada para o livro de receitas – tem os mesmos cabelos brancos e a mesma expressão naturalmente amigável da personagem gente boa do Sítio do Picapau Amarelo. Nos aniversários e nas noites de Natal, costumava optar por dar presentes antiquados, como camisolas, lencinhos de tecido, caixas de sabonetes, perfumes. Discorda das divisões dos humanos por faixa etária (“acontece que eu não acredito nisso!”, disse, certa vez), mas sempre recebeu os sinais de envelhecimento com uma serenidade admirável, considerando que foi de grande beleza na juventude.

Jane Fonda tem 83 anos, a minha mãe também. Entre as duas, há uma diferença atitudinal e de estágios fisiológicos que desmoraliza tentativas de encaixá-las em definições sobre maturidade

Mesmo vaidosa, nunca quis tingir os cabelos, jamais procurou tratamentos de rejuvenescimento facial. Rejeita os grupos de senhoras felizes que se juntam em atividades específicas para a Terceira Idade, como quem suspeita que a velhice não seja uma afinidade em si. Há alguns anos pensei que seria bom para ela fazer novas amizades e a levei em um grupo de idosas frequentadoras de uma paróquia. Ela saiu chocada: “Eu nunca gostei de jogo, agora vou jogar bingo com elas?”. Ficar em qualquer lugar, em qualquer circunstância, desde que perto das duas filhas, é sem dúvida a grande aventura que ela deseja.

A minha mãe é hoje um dos 34 milhões de idosos que povoam o Brasil, um dos 2,3 milhões que habitam a cidade de São Paulo, um dos 16.700 que moram em Pinheiros – o terceiro distrito com população mais velha da capital. De uns tempos para cá, passou também a fazer parte dos 13% dos idosos do bairro que têm alguma incapacidade funcional – o que quer dizer que já se embananam para cumprir sozinhos tarefas básicas como tomar banho, trocar de roupas ou se alimentar. Também entrou para o grupo dos 6,4% dos idosos de Pinheiros que têm alguma deficiência motora, como a incapacidade de vencer degraus ou driblar as imensas falhas nas calçadas.

Jane Fonda tem 83 anos, a minha mãe também. Entre as duas, há uma diferença atitudinal e de estágios fisiológicos que desmoraliza todas as tentativas de encaixá-las em definições amplas sobre maturidade, envelhecimento, Terceira Idade, Quarta Idade. A velhice é a fase da vida para onde estamos indo em grandes manadas – seremos quase 30% da população brasileira daqui a trinta anos. Mas por causa da Jane Fonda, de um lado, e da minha mãe, do outro, é também a fase mais difícil de enquadrar em grandes sistemas de compreensão. A escadinha da infância, por exemplo, foi sistematizada em todos os seus degraus de aprendizado, desenvolvimento motor e consequentes mudanças de comportamento. A puberdade pode ser quase inteira entendida por meio daqueles furiosos vulcões hormonais. A velhice, não. É impossível enfiar na mesma gaveta comportamental pessoas em fases tão diferentes de envelhecimento físico e mental.

Mas existe uma régua única que acaba alcançando todos os idosos, do ageless ao raiz: a dependência. Não importa o quanto eles se cuidem. Em algum momento, eles não conseguirão existir sem contar com a ajuda de alguém em coisas básicas.

O que aconteceu com a minha mãe – e muito provavelmente acontecerá com a Jane Fonda, comigo e com você, se a gente chegar lá –, aparece muito bem condensado no livro Mortais – nós, a Medicina e o que Realmente Importa no Final, do médico Atul Gawande. Definida por Oliver Sacks como “perspicaz, profundamente comovente, inspiradora e essencial para os nossos tempos”, a obra traz o seguinte trecho: “Com sorte e determinados cuidados, as pessoas com frequência conseguem viver e administrar bem sua vida por um longo tempo. Porém, mais cedo ou mais tarde, as perdas se acumulam a tal ponto que as necessidades diárias da vida acabam indo além daquilo de que podemos dar conta sozinhos, física ou mentalmente. Conforme diminui o número de pessoas que morrem subitamente, aumentam as chances de que a maioria de nós vá passar períodos significativos de nossas vidas limitados e debilitados demais para viver de maneira independente. Não gostamos de pensar nessa possibilidade. Como resultado, a maioria de nós está despreparada para ela”.

Algum grau de dependência é uma inevitabilidade da velhice, é um destino biológico, é um saco.

Conforme diminui o número de pessoas que morrem subitamente, aumentam as chances de que a maioria de nós vá passar períodos significativos de nossas vidas limitados e debilitados

Por isso, grande parte dos idosos é muito boa em uma tática que, na verdade, também pretendo adotar, se a minha vez chegar. Eles escondem até o limite se não estão conseguindo se virar sozinhos. Na imensa maioria das vezes, os familiares só percebem quando chega a hora de entrar com toda a ajuda possível – um eufemismo para ingerência. A minha mãe, por exemplo, morre atirando. Hoje percorre a casa com ajuda de um andador, para não cair caso se enrole no cateter que manda oxigênio para seus pulmões. Ainda assim, de vez em quando dá uns piques e diz “eu vou sozinha, eu vou sozinha!”. Não consegue sair sem ajuda da imensa poltrona reclinável que lhe garante o ângulo ideal para uma boa oxigenação, mas sempre que é levantada dali repete: “olha como eu estou ficando boa!”. Quando chega um carregamento novo de fraldas geriátricas, comenta: “mas pra quê… eu não preciso disso!”.

A diminuição das capacidades físicas foi um evento gradativo, até que culminou num placar de 12 internações em seis anos, duas cirurgias, três quedas, três passeios de ambulância. Em cada ocorrência, um diagnóstico novo, mais um remédio e a nuvem da dependência avançando na nossa rotina familiar. Minha irmã e eu começamos a falar o tempo inteiro sobre como foi o dia dela, a tomar decisões sobre ela, a determinar as próximas mudanças na vida dela. Ela virou assunto frequente nas minhas conversas. Os amigos deram para iniciá-las quase sempre com um carinhoso: “como está a sua mãe?”. E eu dei de responder, em detalhes.

Assim como pais urbanos desconectados da vida coletiva das aldeias são despachados para outro planeta quando têm o primeiro bebê, os filhos adultos descobrem um mundo paralelo quando seus idosos chegam na fase da dependência.

ANGÉLICA SANTA CRUZ dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.


Ainda bem que não estamos em guerra!, Gonzalo Vecina, O Estado de S.Paulo


08 de janeiro de 2021 | 09h36

Quinta-feira, 07 de janeiro, foi dia de assistir às coletivas. A esperança, aquela em que depositamos as nossas últimas esperanças, me deu forças. Valeu a pena! Temos o reconhecimento da existência de vacinas suficientes produzidas no Brasil. Talvez existam ainda espaços vazios nas falas dos políticos e militares, mas parece que existe um grande acordo - vacinas do Butantã que demonstraram uma eficácia de 78% no geral e de 100% em prevenir casos graves deverão compor um volume da ordem de cerca de 140 milhões de doses em 2021, dependendo de como e de quem fala. 

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"O ministro general reclamou que já anunciou várias vezes a quantidade de vacinas que dispõe, mas não o ouvem."  Foto: Dida Sampaio/ESTADÃO

Na esfera federal, 100 milhões, na estadual, 140 milhões. Além disso, na Fiocruz, espera-se uma produção de 210 milhões de doses e mais 2 milhões, para começar, logo em janeiro, que talvez cheguem da Índia para aumentar o número de 10 milhões de doses da Sinovac já em São Paulo prontas para serem usadas. Total: 352 milhões de doses para vacinar 160 milhões (todos os brasileiros com mais de 18 anos, que são a população alvo) com duas doses cada um. Daria até para exportar um pouco. E sem falar a muito falada Covax Facilities da OMS, a qual o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, tem muito apreço.

A coletiva paulista foi cheia de respeitos e cuidados, muita emoção e até choros. Devidos provavelmente, à tenebrosa marca das 200 mil mortes, grande parte delas evitáveis se os governantes governassem. A federal também foi cheia de choros, mas por parte dos militares que reclamaram que não são compreendidos. Chororô. O ministro general reclamou que já anunciou várias vezes a quantidade de vacinas que dispõe, mas não o ouvem. Esquece que quando fala uma coisa e o capitão o manda desfalar - caso do trato com o Butantã - ele destrata e, portanto, o falado não valeu.

As duas vacinas disponíveis são seguras e eficazes e têm um volume suficiente para cobrir a população brasileira ao longo do ano de 2021. Poderiam ser mais concentradas no primeiro semestre? Sim, mas não é possível, e será ao longo do ano. Há a discussão de espaçar as duas doses e aumentar a cobertura em um primeiro momento? Sim, mas ainda não está definido e espero que quem defina sejam chamadas inteligências na área de imunização e não os luminares do MS.

A questão das seringas certamente será resolvida, não pela inteligência logística dos militares e sim pela capacidade de resposta da indústria nacional. Teremos ainda que resolver a questão do software de vacinação e da campanha de conscientização da população sobre a importância de vacinar. Isso será crítico. Como desmentir o capitão, seu superior, sobre o fato de que quem tomar a vacina não virará jacaré?

Foi muito confusa certa parte da coletiva em relação a obter mais vacinas, chegando a discutir sobre diluentes e vacinas liofilizadas - que, portanto, não necessitam ficar a menos oitenta graus - e sobre como as grandes farmacêuticas tem um comportamento predatório. Isto para se defender da paralisia que o MS viveu na maior parte do tempo.

Digo e repito: nossas autoridades federais terão que ser eternamente gratas aos servidores do Butantã e da Fiocruz, que fizeram a tarefa deles - acharam e viabilizaram as vacinas que permitirão que enfrentemos essa crise sanitária terrível marcada pelo desgoverno. Agora é hora de acordar da inércia e garantir que as vacinas cheguem ao povo.


A invasão do Congresso dos EUA e nós aqui, Celso Ming, O Estado de S.Paulo

07 de janeiro de 2021 | 19h20

A invasão do Capitólio, em Washington, pelos extremistas seguidores do presidente Trump, nessa quarta-feira, produzirá desdobramentos que ainda não se podem prever.

desfecho desse 6 de janeiro segue a lógica da política isolacionista, xenófoba, populista e antidemocrática adotada pelo governo dos Estados Unidos nestes últimos quatro anos.

Se não pode levar pelo voto, a eleição não serve. É invariavelmente “roubada”, quando os da turma são vencidos nas urnas. Numa primeira tentativa, vale apelar para a guerra judicial e, se não adiantar, a saída é o golpe. Se as forças institucionais, como as polícias e os militares, não aderirem, a solução é apelar para os movimentos de massa, para os agrupamentos armados e, assim, arrancar o poder com a invasão dos centros de exercício da democracia. Foi assim no nazismo, foi assim no fascismo e será assim nos regimes totalitários.

Como não poderá mais agasalhar esses movimentos antidemocráticos, sob pena de se esvaziar, o Partido Republicano dos Estados Unidos, o Great Old Party (GOP, na sigla em inglês), que já foi liderado por Abraham Lincoln, terá de se renovar, tarefa complicada, a ser precedida por expurgos.

Tiraram o megafone do Trump. No meio da confusão, as contas do presidente Trump no Twitter e no Facebook foram bloqueadas. O homem mais poderoso do mundo, que tem o botão da bomba à altura dos seus dedos, não pode mais usar as redes sociais para transmitir ordens e contraordens a seus comandados, como se o alcance à corneta fosse retirado do comandante no campo de batalha.

Congresso americano é invadido
Apoiadores do presidente Donald Trump invadiram o Congresso americano, em Washington, para impedir a certificação do presidente eleito Joe Biden Foto: Jim Lo Scalzo/EFE

Desse fato não se conclui apenas que, numa dimensão que importa, há poder maior do que o do presidente dos Estados Unidos. Conclui-se, também, que uma vez bloqueada a comunicação com suas massas de manobra, a capacidade de mobilização de um chefão autoritário perde substância. Questão subsequente consiste em saber quem, em última instância, manda nas redes sociais e como o acesso a elas pode ser controlado democraticamente.

A partir do que houve em Washington, é preciso saber por que o país mais dotado de instituições de segurança no mundo e por que o FBI, a CIA e outros organismos de inteligência que existem para defender as instituições não serviram para prever e prevenir as forças democráticas contra a invasão e a tentativa de golpe. 

A aglomeração começou desde a véspera, no dia 5. O presidente Trump havia feito pronunciamentos desesperados contundentes em que conclamou seus seguidores a agir pela força. E as intenções de invasão foram manifestadas a qualquer interessado. Por que, mesmo assim, tudo aconteceu como se viu?

Finalmente, vamos às implicações para o Brasil. A mesma lógica da política de Trump que desembocou onde desembocou se aplica ao atual governo brasileiro, para quem a democracia só tem serventia se ajudar na tomada do poder para sua turma. Quando as instituições e as regras do jogo se tornam obstáculos, então é preciso desmontá-las. 

Se o Supremo dispara sentenças desfavoráveis, é preciso destituí-lo. Para isso e para outras providências da mesma qualidade, sempre é melhor aproveitar a confusão da hora para “passar a boiada”. 

Se o Congresso atrapalhar, cumpre aliciar segmentos importantes que o compõem, como o Centrão, com benesses e favores políticos. Ao mesmo tempo, convém armar os seguidores e prepará-los para confrontos que possam se tornar inevitáveis. Criar e encorpar as milícias acaba sendo o passo seguinte.

Tudo isso é mera fantasia? Pois, ainda nesta quinta-feira, o presidente Bolsonaro não poderia ter sido mais claro do que foi: “A falta de confiança nas eleições levou a esse problema que aconteceu lá (nos Estados Unidos). Se tivermos voto eletrônico no Brasil em 2022, vai ser a mesma coisa. Ou vamos ter problema pior que nos Estados Unidos” – foi o que disse

 

PARA ENTENDER

O que está acontecendo com a democracia no mundo?

Ascensão de grupos extremistas, tentativas de golpes, eleições questionadas: como está o sistema democrático em diferentes países

Ou seja, eleição no sistema digital de votação faz sempre o “jogo deles”, não importando considerações de que tenha sido o instrumento que tenha levado Bolsonaro e seus seguidores aos cargos de governo.

Para eles, a eleição eletrônica é sujeita a roubo, não importando aí se a lisura do processo e a lisura nos seus resultados foram e continuam a ser assegurados pela Justiça Eleitoral. E se a Justiça Eleitoral opera sob essas e outras suspeitas, cabe derrubá-la, até que os objetivos pretendidos sejam alcançados.

*CELSO MING É COMENTARISTA DE ECONOMIA