Jane Fonda tinha uma certa dificuldade para manter o equilíbrio sempre que suas mãos eram presas em um par de algemas de plástico. E ficava aliviada quando percebia que era levada pelos policiais para um ônibus com degraus baixos, mais fácil de embarcar. Esses dois detalhes – a leve tontura, a torcida por uma viatura acessível – apareceram meio na diagonal em um artigo sobre a atriz publicado no The New York Times. Eram dados acessórios, mas foi a única informação do texto que fui capaz de reter. A atriz causou rebuliço planetário pouco antes da pandemia ao ser presa cinco vezes por fazer manifestações em Washington contra as mudanças climáticas, sempre usando um lindo casaco vermelho.
Tirando esses pequenos percalços que chamaram a minha atenção – e que, eu acho, se devem a uma queda da função do labirinto e à diminuição da força muscular que aparecem com a idade – não teve grandes limitações, encarou todas. A atriz foi um ícone pop da cultura jovem, agora é um ícone pop do envelhecimento. Como costuma acontecer com as celebridades, é também involuntariamente alçada a uma existência diáfana – virou uma nova expressão da velhice, um símbolo de uma maneira jovial de ser idosa.
O software da minha mãe é o oposto da Jane Fonda. Ela lembra a aconchegante Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, na versão ilustrada para o livro de receitas – tem os mesmos cabelos brancos e a mesma expressão naturalmente amigável da personagem gente boa do Sítio do Picapau Amarelo. Nos aniversários e nas noites de Natal, costumava optar por dar presentes antiquados, como camisolas, lencinhos de tecido, caixas de sabonetes, perfumes. Discorda das divisões dos humanos por faixa etária (“acontece que eu não acredito nisso!”, disse, certa vez), mas sempre recebeu os sinais de envelhecimento com uma serenidade admirável, considerando que foi de grande beleza na juventude.
Jane Fonda tem 83 anos, a minha mãe também. Entre as duas, há uma diferença atitudinal e de estágios fisiológicos que desmoraliza tentativas de encaixá-las em definições sobre maturidade
Mesmo vaidosa, nunca quis tingir os cabelos, jamais procurou tratamentos de rejuvenescimento facial. Rejeita os grupos de senhoras felizes que se juntam em atividades específicas para a Terceira Idade, como quem suspeita que a velhice não seja uma afinidade em si. Há alguns anos pensei que seria bom para ela fazer novas amizades e a levei em um grupo de idosas frequentadoras de uma paróquia. Ela saiu chocada: “Eu nunca gostei de jogo, agora vou jogar bingo com elas?”. Ficar em qualquer lugar, em qualquer circunstância, desde que perto das duas filhas, é sem dúvida a grande aventura que ela deseja.
A minha mãe é hoje um dos 34 milhões de idosos que povoam o Brasil, um dos 2,3 milhões que habitam a cidade de São Paulo, um dos 16.700 que moram em Pinheiros – o terceiro distrito com população mais velha da capital. De uns tempos para cá, passou também a fazer parte dos 13% dos idosos do bairro que têm alguma incapacidade funcional – o que quer dizer que já se embananam para cumprir sozinhos tarefas básicas como tomar banho, trocar de roupas ou se alimentar. Também entrou para o grupo dos 6,4% dos idosos de Pinheiros que têm alguma deficiência motora, como a incapacidade de vencer degraus ou driblar as imensas falhas nas calçadas.
Jane Fonda tem 83 anos, a minha mãe também. Entre as duas, há uma diferença atitudinal e de estágios fisiológicos que desmoraliza todas as tentativas de encaixá-las em definições amplas sobre maturidade, envelhecimento, Terceira Idade, Quarta Idade. A velhice é a fase da vida para onde estamos indo em grandes manadas – seremos quase 30% da população brasileira daqui a trinta anos. Mas por causa da Jane Fonda, de um lado, e da minha mãe, do outro, é também a fase mais difícil de enquadrar em grandes sistemas de compreensão. A escadinha da infância, por exemplo, foi sistematizada em todos os seus degraus de aprendizado, desenvolvimento motor e consequentes mudanças de comportamento. A puberdade pode ser quase inteira entendida por meio daqueles furiosos vulcões hormonais. A velhice, não. É impossível enfiar na mesma gaveta comportamental pessoas em fases tão diferentes de envelhecimento físico e mental.
Mas existe uma régua única que acaba alcançando todos os idosos, do ageless ao raiz: a dependência. Não importa o quanto eles se cuidem. Em algum momento, eles não conseguirão existir sem contar com a ajuda de alguém em coisas básicas.
O que aconteceu com a minha mãe – e muito provavelmente acontecerá com a Jane Fonda, comigo e com você, se a gente chegar lá –, aparece muito bem condensado no livro Mortais – nós, a Medicina e o que Realmente Importa no Final, do médico Atul Gawande. Definida por Oliver Sacks como “perspicaz, profundamente comovente, inspiradora e essencial para os nossos tempos”, a obra traz o seguinte trecho: “Com sorte e determinados cuidados, as pessoas com frequência conseguem viver e administrar bem sua vida por um longo tempo. Porém, mais cedo ou mais tarde, as perdas se acumulam a tal ponto que as necessidades diárias da vida acabam indo além daquilo de que podemos dar conta sozinhos, física ou mentalmente. Conforme diminui o número de pessoas que morrem subitamente, aumentam as chances de que a maioria de nós vá passar períodos significativos de nossas vidas limitados e debilitados demais para viver de maneira independente. Não gostamos de pensar nessa possibilidade. Como resultado, a maioria de nós está despreparada para ela”.
Algum grau de dependência é uma inevitabilidade da velhice, é um destino biológico, é um saco.
Conforme diminui o número de pessoas que morrem subitamente, aumentam as chances de que a maioria de nós vá passar períodos significativos de nossas vidas limitados e debilitados
Por isso, grande parte dos idosos é muito boa em uma tática que, na verdade, também pretendo adotar, se a minha vez chegar. Eles escondem até o limite se não estão conseguindo se virar sozinhos. Na imensa maioria das vezes, os familiares só percebem quando chega a hora de entrar com toda a ajuda possível – um eufemismo para ingerência. A minha mãe, por exemplo, morre atirando. Hoje percorre a casa com ajuda de um andador, para não cair caso se enrole no cateter que manda oxigênio para seus pulmões. Ainda assim, de vez em quando dá uns piques e diz “eu vou sozinha, eu vou sozinha!”. Não consegue sair sem ajuda da imensa poltrona reclinável que lhe garante o ângulo ideal para uma boa oxigenação, mas sempre que é levantada dali repete: “olha como eu estou ficando boa!”. Quando chega um carregamento novo de fraldas geriátricas, comenta: “mas pra quê… eu não preciso disso!”.
A diminuição das capacidades físicas foi um evento gradativo, até que culminou num placar de 12 internações em seis anos, duas cirurgias, três quedas, três passeios de ambulância. Em cada ocorrência, um diagnóstico novo, mais um remédio e a nuvem da dependência avançando na nossa rotina familiar. Minha irmã e eu começamos a falar o tempo inteiro sobre como foi o dia dela, a tomar decisões sobre ela, a determinar as próximas mudanças na vida dela. Ela virou assunto frequente nas minhas conversas. Os amigos deram para iniciá-las quase sempre com um carinhoso: “como está a sua mãe?”. E eu dei de responder, em detalhes.
Assim como pais urbanos desconectados da vida coletiva das aldeias são despachados para outro planeta quando têm o primeiro bebê, os filhos adultos descobrem um mundo paralelo quando seus idosos chegam na fase da dependência.
ANGÉLICA SANTA CRUZ dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.
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