terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Cristina Serra Constituição sob ataque, FSP

Em artigo nesta Folha, um dos expoentes do centrão e líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), voltou a alardear sua proposta de um plebiscito para que os brasileiros decidam se querem uma assembleia exclusiva para escrever uma nova Constituição.

O centrão aglutinou forças de centro e de direita no Congresso Constituinte de 1987-1988 com vários objetivos, entre eles garantir o mandato de cinco anos ao então presidente Sarney e barrar a adoção de avanços sociais na carta, como queriam lideranças e legendas mais à esquerda. Vem dessa época o mantra infame do fisiologismo: "é dando que se recebe". Do equilíbrio de forças resultante nasceu a Constituição cidadã, que, entre tantas conquistas, criou, por exemplo, o Sistema Único de Saúde, imprescindível na pandemia para evitar perdas ainda mais catastróficas aos brasileiros.

O centrão fragmentou-se em vários partidos, há uma nova geração de líderes, mas sua essência bolorenta é a mesma. Agora, agrupados na base de um governo de extrema direita com nível bastante razoável de apoio popular, veem uma oportunidade de substituir a carta que, na visão de Barros, assegura direitos em demasia e deveres de menos.

O deputado se queixa da amplitude do "poder fiscalizador" do Judiciário, do Ministério Público e da Receita Federal (este parece ser o eixo da sua proposta); aponta que a carta mantém "privilégios caros e desnecessários" a corporações do funcionalismo e que é preciso cortar despesas para investir na "área social".

Para ficar em apenas um ponto, é difícil acreditar na preocupação social de um governo que, na proposta de reforma administrativa, não alterou uma linha sequer das regalias da casta superior do serviço público.

O que está claro é que a Constituição está sob renovada barragem de artilharia, o que torna ainda mais crucial uma aliança para impedir a vitória de Arthur Lira (PP-AL) na Câmara dos Deputados. É preciso resistir às invasões bárbaras.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR) - Pedro Ladeira/Folhapress
Cristina Serra

Cristina Serra é paraense, jornalista e escritora. É autora dos livros “Tragédia em Mariana - a história do maior desastre ambiental do Brasil” e “A Mata Atlântica e o Mico-Leão-Dourado - uma história de conservação”.

 

Alvaro Costa e Silva A farra do vírus, FSP

 Para o bem ou para o mal, Ipanema não perde a majestade. Nos anos 60, o bairro era um segredo carioca, e a faixa de praia, um espaço livre de preconceitos. Mostrando o barrigão de grávida, Leila Diniz dinamitava os costumes. Ali funcionava um laboratório comportamental do que seriam as relações amorosas no Brasil moderno: um país sem culpa e resolvido no sexo, de mulheres liberadas e de homens que teriam de se reeducar para conviver com elas —um projeto de felicidade comum no qual se desconhecia o significado da palavra feminicídio.

Deu no que deu. Rebelde e ingênua, Ipanema foi engolida pela vanguarda do nosso atraso atual. Um primeiro alerta de que o sonho acabara sem começar se observou em 1984, quando os ônibus foram autorizados a cruzar o túnel Rebouças levando a galera da zona norte aos domínios da zona sul. "Que gente feia, hein!" foi o mais leve que se ouviu.

Para fugir das medidas que restringiram o acesso à orla na virada para 2021, centenas de pessoas se aglomeraram nas areias do bairro na noite de quarta (30), num réveillon antecipado, clandestino e sem máscara. Quase não havia mulheres. Na maioria, eram homens jovens e tatuados. Todos sem camisa, no que parece ser a única exigência da moda. Chamada, a PM agiu com delicadeza para encerrar a farra dos donzelos.

Banhistas na praia de Ipanema na tarde de 31/12 - Pilar Olivares/Reuters

Mas não sejamos injustos: Ipanema não esteve sozinha na cruzada a favor do vírus. Perto dos destinos mais badalados, para os quais é preciso pegar um jatinho, a festa no posto 9 entra na categoria coisa de pobre. O bicho comeu rico e solto em Mangaratiba, Angra dos Reis, Trancoso, Pipa, São Miguel do Gostoso. Daqui a duas semanas, a gente confere o resultado.

Pelas redes sociais, vi imagens dessas baladas de luxo. Faltaram uns telões com palavras de ordem: "Gripezinha", "Histórico de atleta", "Não sou coveiro", "Todos nós iremos morrer um dia", "E daí?".

Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Hélio Schwartsman Publique ou pereça, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

O lema "publish or perish" (publique ou pereça) nunca veio tanto a calhar. Os anúncios picotados e pouco rigorosos de diferentes taxas de eficácia para vacinas, feitos através de "press releases" em vez de por meio de trabalhos científicos, ainda poderão nos custar caro.

Inaugurou-se uma barafunda generalizada. As taxas anunciadas nessas ocasiões costumam ir de muito boas (mais de 80%) a soberbas (mais de 90%). Às vezes, escapa uma contradiçãozinha. Num dos muitos diferentes regimes apregoados, a vacina da AstraZeneca apresentava uma eficácia maior com uma única dose do que com as duas preconizadas pelo próprio fabricante.

Não creio que estejam mentindo. Os números propagandeados provavelmente correspondem a algum achado. Diferenças, às vezes significativas, entre os vários braços das pesquisas são esperadas. O problema é que, nessa divulgação selvagem, destacam-se os dados mais convenientes e escondem-se os menos.

Num trabalho científico revisado por especialistas, isso seria mais difícil de fazer. Os pesquisadores precisam dar conta da totalidade dos resultados, levantar hipóteses para eventuais discrepâncias, além de publicar tabelas completas e disponibilizar os microdados para interessados. São informações valiosas para a comunidade científica, as autoridades e, principalmente, para evitar ruídos na comunicação.

O problema não é para já. Agora e pelos próximos meses, haverá muito mais gente ávida para tomar a vacina do que doses disponíveis. Mas, à medida que a imunização avançar, será preciso convencer a população recalcitrante a também inocular-se, se quisermos reduzir substancialmente a circulação do vírus.

Aí, os números preocupam. Uma pesquisa francesa mostrou que apenas 40% dos conterrâneos de Louis Pasteur pretendem vacinar-se. Falhas de comunicação que contribuam para a desconfiança nas vacinas são um luxo ao qual não podemos nos dar.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".