domingo, 26 de julho de 2020

LUIZ FUX O silêncio dos humilhados, FSP

Vocalização dos vulneráveis é cara à democracia

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Luiz Fux

Ministro do Supremo Tribunal Federal

A liberdade de expressão ocupa uma posição destacada no sistema constitucional brasileiro, dela derivando as demais liberdades, como por exemplo as liberdades de manifestação do pensamento (art. 5º, inc. 4), de consciência e de crença (inc. 6), de expressão da ativida de intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inc. 9).

O Supremo Tribunal Federal, calcado nessas garantias pétreas, consagrou a liberdade de imprensa sem qualquer condicionante, ao não recepcionar a vetusta lei de imprensa, erigida exatamente no período em que as liberdades públicas estavam suprimidas. Encarta-se nesse argumento protetor da liberdade de expressão a “vedação de toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

O ministro Luiz Fux
O ministro Luiz Fux - Pedro Ladeira - 6.fev.18/Folhapress

Forçoso convir que a possibilidadede difusão de opiniões e de pontos de vista sobre os mais variados temas de interesse público é condição sine qua non para a subsistência de um regime democrático. Além de promover a dignidade e a autonomia individuais, também potencializa a tomada de decisões políticas em uma democracia.

Nos dizeres do professor alemão Konrad Hesse, “[a] liberdade de informação é pressuposto da publicidade democrática; somente o cidadão informado está em condições de formar um juízo próprio e de cooperar, na forma intentada pela Lei Fundamental, no processo democrático”. Ainda, Rui Barbosa destaca que “de todas as liberdades, a do pensamento é a maior e a mais alta. Dela decorrem todas as demais. Sem ela todas as demais deixam mutilada a personalidade humana, asfixiada a sociedade”.

Uma das questões mais caras numa democracia é a vocalização das pessoas vulneráveis. O ideário democrático pressupõe a existência de um espaço público robusto e dinâmico, em que os temas de interesse geral possam ser debatidos com franqueza e liberdade, que não se encerram apenas no exercício do direito de voto.

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Amartya Sen, laureado economista indiano, destaca que governos autoritários mundo afora têm conseguido gigantescas vitórias eleitorais, mesmo sem coerção evidente sobre o processo de votação, mas suprimindo a discussão pública e a liberdade de informação, o que evidencia o liame indissociável entre a liberdade de expressão e a democracia.

Deveras, como cediço, a democracia também não se restringe ao predomínio da vontade da maioria. Ela pressupõe que todas as pessoas, em especial os grupos minoritários, tenham vez e tenham voz no processo político por meio do exercício pleno das liberdades públicas —em especial a liberdade de expressão.

A democracia só se realiza através da inclusão no espaço público dos integrantes dos grupos tradicionalmente excluídos, aos quais também deve ser reconhecida a possibilidade de se autogovernarem. Nesse ponto, a Suprema Corte, como guardiã primeira dos direitos humanos encartados na Constituição, exerce nobre virtude perene: equilibra a participação democrática entre maiorias e minorias e impede o indesejável “silêncio dos humilhados”.

TENDÊNCIAS / DEBATES

Ruy Castro Sertanejos com sotaque, FSP


Ao escrever outro dia sobre a morte do ator Leonardo Vilar, comentei que o pungente papel de Zé do Burro no filme "O Pagador de Promessas" (1962) quase lhe escapou, porque o produtor preferia o cômico Mazzaroppi. Mas o diretor Anselmo Duarte insistiu em Vilar e o filme ganhou o Festival de Cannes, derrotando "O Eclipse", de Antonioni, "O Anjo Exterminador", de Buñuel, e "Os Inocentes", de Jack Clayton. Um leitor observou, no entanto, que, sendo "O Pagador de Promessas" ambientado na Bahia, soava falso o sotaque de Piracicaba do ator, nascido lá.

É verdade. E não só. Além desse, Vilar faria ainda o protagonista de dois outros filmes de sertão: "Lampião, Rei do Cangaço" (1962) e "A Hora e Vez de Augusto Matraga" (1965). Nunca Piracicaba foi tão longe.

O problema era antigo. No também premiado "O Cangaceiro" (1953), as estrelas eram o gaúcho Alberto Ruschel, a paulista Marisa Prado, o mineiro Milton Ribeiro, a carioca Vanja Orico e, pode crer, Adoniran Barbosa. Ninguém falava os RR dos cabras. Nem poderiam. O filme, passado na caatinga, foi rodado em Vargem Grande do Sul (SP), região cercada por estações de águas. E, em "Vidas Secas" (1963), o raquítico sertanejo flagelado da história era vivido pelo carioca Átila Iório, com seu físico de boxeur. Iório foi de novo um dos nordestinos de "Os Fuzis" (1964), ao lado do paulista Nelson Xavier e da querida Maria Gladys, idem, carioca.

O primeiro diretor a exigir alguma autenticidade nos sotaques foi Glauber Rocha, cujo "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) tinha os baianos Geraldo Del Rey e Othon Bastos –mas ao lado dos cariocas Mauricio do Valle e Yoná Magalhães.

Eu sei, ator é ator, e ninguém precisa cortar a perna para interpretar o capitão Ahab. Mas que o cinema do passado, inclusive o americano, não se preocupava muito com certo realismo vocal, é um fato. Ou Charlton Heston não teria sido Moisés.

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O ator Átila Iório em cena de 'Vidas Secas'
O ator Átila Iório em cena de 'Vidas Secas' - Divulgação
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Hélio Schwartsman A democracia tem futuro?, FSP

“Como diz um adágio polonês, ‘um pessimista não é senão um otimista bem informado’. Eu sou moderadamente pessimista em relação ao futuro. Não acredito que a sobrevivência da democracia esteja em risco na maioria dos países, mas não vejo o que possa nos tirar da presente onda de descontentamento. [...] A crise não é só política; ela tem raízes profundas na economia e na sociedade. É isso o que considero agourento.” Essas são as observações finais de Adam Przeworski em “Crises of Democracy”, seu mais recente livro.

Pelo lado otimista, vale destacar que Przeworski não compra a tese, cada vez mais popular, de que democracia está com os dias contados. Embora a comparação com o surgimento dos fascismos nos anos 20 e 30 na Europa seja frequente, o autor mostra que existem diferenças que tornam uma repetição da história improvável.

O cientista político polonês Adam Przeworski discursa durante seminário que celebra os 50 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) com o tema "Democracia", em São Paulo
O cientista político polonês Adam Przeworski discursa durante seminário que celebra os 50 anos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) com o tema "Democracia", em São Paulo - Marlene Bergamo - 14.mai.2019/Folhapress

Uma delas diz respeito à ideologia. No século passado, tanto a direita (nazistas e fascistas) como a esquerda (comunistas) eram contra a democracia. Hoje, não são mais. Mesmo a direita que nos assombra não pretende substituir as eleições por outro sistema de escolha de governantes. É uma direita que age contra as instituições, mas que não se opõe a ouvir população.

E isso nos leva para o lado pessimista. Para o autor, uma série de desenvolvimentos no campo econômico e na forma como nos relacionamos uns com os outros criaram essa situação em que pluralidades de eleitores escolhem líderes cujas políticas desgastam a democracia. Falamos aqui de fatores difíceis de mudar, como aumento da desigualdade, polarização e deterioração de sindicatos e partidos políticos.

E não venham com aquele papo de que devemos radicalizar a democracia para resolver tudo. Para Przeworski, a democracia não tem poderes mágicos. É apenas uma forma prática de resolver conflitos, que se realiza quando quem perde a eleição deixa o poder. Nem mais, nem menos.