terça-feira, 21 de julho de 2020

Pablo Ortellado Reforma de Guedes racionaliza sistema tributário, mas deixa conta com os mais pobres, FSP

O governo deve enviar ao Congresso nesta terça-feira (21) a primeira parte de uma ampla proposta de reforma tributária.

Ela busca simplificar e racionalizar a cobrança de impostos, mantendo a carga tributária global no nível atual. Além de não mexer com a carga total, não altera a distribuição do ônus tributário entre ricos e pobres, deixando o peso do Estado ainda apoiado sobre o ombro dos trabalhadores.

A primeira parte do projeto pretende unificar impostos federais como o PIS e a Cofins, uma abordagem muito menos ambiciosa que duas propostas que estão há mais tempo em discussão na Câmara e no Senado e que pretendem unificar até nove tributos (proposta do Senado).

A ideia de unificar tributos, desonerando a produção e simplificando a taxação, é antiga e, enquanto conceito, quase consensual. Mas uma possível elevação da tributação sobre o setor de serviços e disputas sobre a repartição do novo imposto com estados e municípios tornam a negociação difícil e demorada. A proposta minimalista do governo tenta escapar dessas dificuldades.

O ministro da Economia, Paulo Guedes - Pedro Ladeira - 15.jul.20/Folhapress

A segunda parte do projeto consiste em taxar lucros e dividendos, antiga reivindicação da esquerda, mas tendo como contrapartida uma redução do imposto de renda de pessoas jurídicas, de maneira a estimular investimentos.

[ x ]

O ministro Paulo Guedes pretende também acabar com deduções do imposto de renda de pessoas físicas (com gastos com saúde, por exemplo), mas compensar o fim de deduções com uma redução de alíquotas. De maneira geral, torna o sistema mais organizado e eficiente, mas num jogo de soma zero, aumentando de um lado, para tirar do outro.

A última parte da reforma traz a obsessão do governo com um imposto sobre pagamentos eletrônicos, uma proposta que por sua semelhança com a odiada CPMF é rejeitada pelo Congresso e pela sociedade, mas que o ministro Guedes gostaria que fosse introduzida para cobrir a desoneração da folha de pagamentos das empresas ou um Bolsa Família ampliado.

A proposta do governo não tem a menor preocupação com a abissal desigualdade brasileira. Se é verdade que precisamos simplificar o sistema e desonerar a produção e as folhas de pagamento, é muito mais urgente reduzir impostos sobre consumo, que pesam sobre os pobres, e ampliar a tributação sobre a renda e a propriedade, que incide sobre os ricos.

Depois de décadas de espera, inclusive durante os governos de esquerda, não é possível que façamos uma revisão ampla do nosso sistema tributário e deixemos que os mais pobres sigam pagando a conta, em um odioso sistema regressivo.

Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Vera Iaconelli Sofrimento não é doença, FSP ( fantástico, sobre o valor do silêncio)

A questão sobre como manter a saúde mental na pandemia é insistente, dada a importância do tema. Para além da demanda implícita por um "manual sobre como não pirar no isolamento", sua resposta passa por distinguirmos sofrer de adoecer e o efeito dessa distinção para nossas vidas.

A nos pautarmos pelas mídias, goza-se ininterruptamente, da manhã ao anoitecer, com picos de epifania durante as refeições, exercícios para enrijecimento do glúteo ou trocas de roupa no "tik tok". Durante a pandemia, o imperativo da felicidade pouco se constrangeu com as milhares de mortes, mas acabou revelando mais uma vez seu anacronismo.

O sofrimento correspondente aos acontecimentos disruptivos da vida — ou ao simples fato de sabermos de antemão que ela acabará — passa a ser interpretado como doença. O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), que não para de acrescentar síndromes a cada nova edição, tenta encobrir o fato de que a vida cobra seu preço e que cada um responde como pode à "insustentável leveza do ser". De quebra, recomenda a medicação correspondente ao mal suposto.

Se consideramos a felicidade o bem supremo a ser alcançado, como se alcança um platô, e acreditamos que isso seria possível ou sequer desejável, passamos a entender o sofrimento como um erro a ser eliminado.

O paradoxo é que a negação de que sofrer faz parte do pacote da vida — e é o que dá aos momentos de satisfação algum sentido —acaba por promover o adoecimento que tenta eliminar. O reconhecimento social e a possibilidade de criar narrativas sobre o viver são condições para lidarmos com o que nos oprime. Aqueles à nossa volta capazes de validar e acolher nossas questões — sem ficar muitos assustados achando que poderiam ou deveriam ter respostas — criam a oportunidade de ouro para que a "mensagem dentro da garrafa jogada no mar", que a dor pode revelar, seja finalmente lida[ x ]

Suportar nosso próprio desconforto diante da dor de quem amamos é necessário para que cuidemos uns dos outros. Altos e baixos da vida funcionam como silêncio e som, um não vai sem o outro. Alguma dúvida de que estamos desaprendendo a ficar no silêncio e, consequentemente, surdos?

A tirania da felicidade e os recursos para alcançá-la vão da produção de miragens do gozo alheio, à extrema indulgência com nossos prazeres, passando pelo consumismo, chegando à medicalização — lícita ou ilícita — e podendo descambar para violência, depressões e suicídios.

É possível passar pela pandemia sem sofrer? Depende do grau de alienação do sujeito em questão. Talvez alguém loucamente apaixonado, totalmente alheio ao mundo ou psicopata passe uma crise dessas em estado de graça. Mas fora a psicopatia, as outras situações não costumam se sustentar indefinidamente.

Estou há 4 meses dentro de casa dividindo meu tempo entre atendimentos online, estudos, escrita, entrevistas, família e faxina. Se servir de consolo para alguém, minha situação privilegiada na pandemia não me poupa de sentir tristeza, medo, raiva, indignação e angústia por estar privada do espaço público, da companhia de pessoas amadas e testemunhar uma catástrofe sanitária, política e econômica sendo gerida por um psicopata. Momentos felizes ou de tranquilidade? Sim, saboreados ao máximo, ainda que sob um fundo de apreensão — por mim e pelos outros.

Estou doente? Felizmente, não. Apenas vivendo a vida.

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.