domingo, 19 de julho de 2020

A praga do arco-íris, Mario Vargas Llosa, O Estado de S.Paulo

Considero Anne Applebaum como uma das melhores jornalistas dos tempos atuais. Americana, casada com um polonês democrático e liberal, vive na Polônia. Seus livros e artigos sobre a desaparecida União Soviética (URSS) e dos países do Leste Europeu, publicados por The Atlantic, costumam ser magníficos, assim como bem investigados, escritos com ordem e elegância, geralmente imparciais.

Vi sua assinatura entre os 150 intelectuais, em sua maioria de esquerda, que criticam seus colegas mais radicais por derrubar estátuas e praticar o ódio e a censura, como se um bom número deles não os tivesse ensinado a ser assim. Mas, pelo menos no caso dela, acredito que seja compatível essa singularidade: o esquerdismo e a vocação democrática.

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Casa de loucos

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Duda
Presidente Andrzej Duda deu sinal verde para lei que proíbe afirmar que campos nazistas eram poloneses  Foto: REUTERS/Kacper Pempel

O último artigo de Anne Applebaum a respeito do segundo turno das eleições polonesas, no domingo passado, não tem nada que possa ser deixado de lado. Expõe a campanha contra os homossexuais que permitiu ao presidente da Polônia, Andrzej Duda, do partido Lei e Justiça, ganhar um novo mandato, por pouquíssimos votos, derrotando a Rafal Trzaskowski, prefeito de Varsóvia, que havia prometido apoio à comunidade gay e difundir aulas contra a discriminação e o bullying nas escolas.

Não tenho nada contra a Polônia, um dos países mais sofridos e ocupados por seus poderosos vizinhos ao longo de sua trágica história, mas, sim, uma enorme simpatia por sua alta cultura, suas magníficas livrarias e editoras e por seu cinema e teatro, onde, há alguns muitos anos, vi uma obra minha ser encenada com mais talento e originalidade do que em qualquer outro país. 

Mas, obviamente, preocupa-me a tendência cada vez mais reacionária, antiliberal e antidemocrática de um governo que, apoiado acima de tudo pela hierarquia da Igreja e pelos camponeses e cidadãos mais tradicionais, que seguem e praticam uma religião, está dissociando a cada dia mais a Polônia da Europa livre e moderna, retrocedendo-a a um passado autoritário.

Segundo o testemunho de Anne Applebaum, percebeu-se claramente como a sigla LGBT desempenhou uma função central nessa campanha eleitoral. O presidente Duda, que buscava a reeleição, declarou que “os LGBTs não são o povo; são uma ideologia mais destrutiva que o comunismo” e atacou seu adversário durante a campanha, acusando-o de querer “a sexualização das crianças” e “a destruição da família”. 

A hierarquia da Igreja Católica polonesa, aparentemente também muito conservadora, acredita, como João Paulo II, que os homossexuais são “a praga do arco-íris”, e a alegação de que os gays revolucionam a sociedade não é “polonesa”, mas sim alemã e judia, e uma das TVs estatais martelou os espectadores com essa pergunta racista e estúpida, mas que, a julgar pelo resultado da eleição, foi bastante eficaz: “Trzaskowski cumprirá as exigências judias?” 

E outro dos líderes do partido Lei e Justiça, Jaroslav Kaczynski, declarou que o atual prefeito de Varsóvia não tem “um coração polonês”, mas forasteiro. Portanto, o ódio aos gays desempenhou um papel importante nas eleições, como também duas velhas taras sanguinárias: o nacionalismo e o antissemitismo.

O catolicismo da população polonesa não é incompatível com a democracia, desde que, como tem acontecido em todas as democracias civilizadas – também existem as fanáticas e liberais –, a religião esteja livre de preconceitos, como na França, na Inglaterra e na Espanha, para dar apenas três exemplos que conheço de perto, de uma militância religiosa que não está manchada pelas taras nacionalistas ou pelos preconceitos racistas. 

É claro que, depois de ter sido humilhada, discriminada e atordoada pela propaganda marxista-leninista durante seu status de país-satélite da URSS por tantos anos, não surpreende que grande parte dos poloneses tenha optado pelo partido da ordem e da tradição, como é o Lei e Justiça. 

Mas os resultados da recente eleição, em que o prefeito Trzaskowski perdeu para o presidente Duda por uma diferença ínfima de votos, mostra que os atuais governantes já estão na corda bamba, que por qualquer excesso que cometam ao lidar com o poder, poderiam perdê-lo em uma nova eleição, que devolveria a Polônia à verdadeira democracia, como acontece com a grande maioria dos países pertencentes à União Europeia, o que não é o caso da Hungria, uma sociedade que, neste momento, é muito difícil continuar chamando de democrática.

Dia Internacional da Mulher
Manifestantes seguram uma faixa durante uma marcha de apoiadores e feministas pelos direitos das mulheres e sobre a emergência em Varsóvia, Polônia Foto: Wojtek Radwanski / AFP

Embora não siga nenhuma religião, estou convencido de que a maioria dos seres humanos, que teme a morte, precisa da religião para viver com certa confiança e calma, pois a ideia da extinção definitiva atordoa e atormenta as pessoas e as impede de viver e trabalhar em paz. Por isso, não é necessário acabar com a religião, feito que a história já declarou um sonho impossível, mas ela deve ser acomodada de tal maneira que não seja incompatível com a liberdade e a legalidade da ordem democrática, a única que representa, pelo menos em teoria, uma sociedade justa, diversa e solidária. Hoje, muitos países parecem ter alcançado essa homologação compatível de valores religiosos e democráticos.

Anne Applebaum pensa que isso seja possível na Polônia ou teme que ambas sejam impossíveis de coexistir nesse país ao qual é evidente que se sente muito próxima? Seu artigo, é claro, não se baseia em considerações imprecisas e ressalta que, provavelmente, após a vitória apertada, o partido Lei e Justiça fará o possível para acalmar os ânimos. 

Ela vê sintomas disso na filha do vencedor, Kinga Duda, que na noite do triunfo de seu pai fez um discurso dizendo “que ninguém em nosso país deve ter medo de sair de casa” em razão “daquilo em que acreditamos, pela cor de pele, pelos valores que defendemos, pelo candidato que apoiamos e gostamos”. Tomara que sejam essas as crenças arraigadas e não “sonhos de ópio”, como as chamava Valle Inclán.

Sem dúvida, alguns dos temores que expressa em seu artigo são profundamente preocupantes. Já não se trata mais de perseguir os gays ou atacá-los, como chegou a acontecer, mas também da mídia impressa e de imagem, que ainda é bastante independente e livre na Polônia. Mas, se as intenções de certos dirigentes do Lei e Justiça se realizarem, essa realidade poderia se transformar radicalmente. 

A independência da imprensa se deve, em grande parte, ao fato de seus proprietários serem empresários estrangeiros que foram, recentemente, perseguidos por inspeções fiscais ou investigações sobre supostas corrupções. Uma campanha nacionalista – a “polonização” da mídia – quis forçar a venda de jornais e TVs. É preciso que a UE intervenha de maneira decisiva dando fim a essa campanha, pois sem a existência de uma imprensa livre não há democracia que sobreviva. Os poloneses deveriam saber disso melhor do que ninguém.

O atual governo da Polônia, como todos os governos do mundo, tenta controlar a imprensa e se livrar dos porta-vozes que o vigiam, denunciam seus erros e travessuras reais ou inventadas e costumam estar nas mãos de seus opositores e de jornalistas honestos, fazendo desaparecer aqueles e a esses últimos calá-los ou comprá-los. 

O que acontece é que nos países com poderosas tradições isso não é possível, a própria sociedade o impede. Este é o ideal que, como o tempo, qualquer país pode alcançar. Toda democracia jovem ou recente será sempre imperfeita e talvez seja impossível alcançar a perfeição neste campo. O importante é manter viva uma imprensa livre, até que isso se torne um costume do qual a sociedade como um todo não deseja desistir. Essa já é uma grande vitória, apenas possível nos países que, acima de tudo, escolheram ser verdadeiramente livres. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Trabalhador enfrenta fila de espera para se tornar entregador em aplicativos. Idiana Tomazelli, O Estado de S. Paulo


19 de julho de 2020 | 12h24

BRASÍLIA - O aumento no desemprego por conta da crise provocada pela covid-19 levou uma legião de trabalhadores a buscar, em aplicativos de entrega, uma espécie de “plano B” para conseguir uma renda. Mas a procura intensa “entupiu” as empresas desses serviços com pedidos de cadastro. O resultado é uma enorme fila de espera em várias cidades do País. São brasileiros que aguardam meses a fio para conseguir acesso às plataformas e ganhar algum tostão que lhes ajude a sobreviver.

A falta de vagas para entregadores é a face mais perversa da lei da oferta e da procura. Com estabelecimentos fechados (temporária ou definitivamente) e consumidores gastando menos, é preciso calibrar o número de motoboys ou ciclistas nas ruas para assegurar que haja trabalho para todos. Se um contingente grande de entregadores é aceito nas plataformas, muitos ganham pouco e ninguém fica com o suficiente para pagar as próprias contas.

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Milhares de brasileiros esperam seu lugar ao sol para conseguir executar plano B de ter renda como entregador durante a pandemia Foto: Daniel Teixeira/Estadão

No iFood, a fila de espera de entregadores registrou seu pico nos últimos 60 dias. De março a junho deste ano, a plataforma recebeu 480 mil novos cadastros e não deu conta de absorver todo mundo. O número é mais de três vezes a quantidade de entregadores que estavam habilitados em fevereiro (131 mil), antes da pandemia. Em março, os entregadores passaram a 170 mil.

Rappi não divulgou sua quantidade de entregadores. Disse apenas ter registrado em abril um aumento de 128% no número ante igual mês de 2019, mas informou que em julho os números voltaram ao patamar anterior e que “neste momento não está com tempo de espera para ingressar na plataforma”. Procurado, o Uber não respondeu.

Nas redes sociais e em sites de atendimento ao consumidor, há inúmeros relatos de quem espera até mais de seis meses para começar a trabalhar como entregador. Na última semana de junho, o número de desempregados no Brasil chegou a 12,4 milhões, segundo o IBGE.

Longa espera

José Maria Ramos Neto, de 33 anos, atuava como porteiro em um hospital em Fortaleza quando foi demitido no início de março, na esteira dos cortes de custos motivados pela crise. Ele fez o cadastro para trabalhar como entregador no iFood, teve a documentação aprovada, mas está até hoje na fila de espera do aplicativo.

Sem conseguir outra fonte de renda, Neto também se inscreveu no Rappi e, após algumas semanas, conseguiu trabalho pelo aplicativo. “Não liberou de imediato, mas liberou. O problema é que entrei como entregador de alta demanda, no início era só sexta, sábado e domingo”, conta. De segunda a quinta, ele ficava impedido de buscar entregas no aplicativo.

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Desempregado, José Maria Ramos Neto, de 33 anos, está até hoje na lista de espera do iFood e precisou gastar a reserva financeira pra sobreviver Foto: Arquivo pessoal

Em meio à batalha para fazer algum dinheiro, Neto decidiu se mudar para São Paulo – onde, segundo ele, há mais chance de conseguir algum emprego após a crise – e aluga um quarto numa pensão por R$ 600 mensais. “Minha sorte é que a esposa tinha uma reserva financeira. Só que a reserva acabou”, afirma. Apenas recentemente ele conseguiu avançar no Rappi e conquistar o direito de trabalhar todos os dias da semana. Por dia, Neto consegue ganhar, em média, de R$ 35 a R$ 40.

As reclamações em relação ao tempo de espera se avolumam em várias cidades do Brasil. No site Reclame Aqui, trabalhadores de capitais como Rio de Janeiro e Belo Horizonte pediam explicações ao iFood para a demora. A empresa respondeu reconhecendo que em todas as regiões do País há “excesso de entregadores e poucas vagas em aberto”.

“Para nós é extremamente triste não poder dizer que todo mundo pode entrar. Todas as vezes que a gente não absorve 100% dos cadastros, eu sei que a pessoa não está auferindo a renda que está procurando. Mas a gente infelizmente tem um dilema. Temos a responsabilidade de manter um nível de renda. Caso contrário, se liberasse para todos entrarem, teria um preço muito mais baixo de entrega”, disse ao Estadão/Broadcast o vice-presidente de Estratégia e Finanças do iFood, Diego Barreto.

Segundo Barreto, a empresa entende como ideal a possibilidade de um entregador obter uma renda próxima a dois salários mínimos (o equivalente a R$ 2.090 mensais) trabalhando de cinco a seis dias por semana, de oito a dez horas por dia. Se a oferta de trabalhadores aumenta, essa renda média poderia cair, prejudicando os próprios trabalhadores.

Pico na crise

O presidente da Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O), Vitor Magnani, diz que houve um pico de procura pelas plataformas durante a crise, com crescimento de mais de 100% em relação ao período pré-pandemia. “As plataformas têm uma preocupação de não inflar a base sem a segurança de que vai conseguir um repasse médio ao entregador”, afirma. Segundo ele, muitos consumidores perderam poder de compra, e restaurantes e estabelecimentos comerciais precisaram fechar as portas, o que exigiu das empresas maior cautela para equilibrar as relações entre os “elos” do negócio.

Para o economista Pedro Nery, colunista do Estadão, que tem acompanhado as discussões sobre o trabalho nos aplicativos, as plataformas viraram fonte de renda na crise para muitas famílias que tiveram membros demitidos ou impossibilitados de trabalhar nas suas ocupações típicas. “Muito embora parte da opinião pública escolha chamar esse trabalhador de precarizado, a vulnerabilidade dele seria muito maior sem o aplicativo”, diz.

Mesmo com a fila de espera, Nery diz que as plataformas têm as vantagens e as desvantagens de serem muito dinâmicas. “Acho que ainda pode haver crescimento na retomada. Um motivo é a mudança de comportamento que deve persistir depois do pico da pandemia, mesmo quando atividades reabrirem”, afirma.

Barreto, do iFood, também aposta na “digitalização do ciclo de compra” dos brasileiros para que as plataformas continuem absorvendo trabalhadores durante a retomada da economia, reduzindo as filas.

Albert Fishlow Maravilhosa surpresa, OESP

Albert Fishlow, O Estado de S. Paulo

18 de julho de 2020 | 21h00

As questões pioraram nos Estados Unidos à medida que a pandemia do novo coronavírus explodiu, mas há sinais no Brasil de um compromisso maior, embora possivelmente apenas temporário, antes das próximas eleições.

Nesse ponto, os detalhes dos ataques diários de Trump e a insistência anticientífica em relação a qualquer medida para garantir uma recuperação econômica em formato de V são de conhecimento universal. Qualquer chance de reeleição depende do retorno ao crescimento econômico e da diminuição das preocupações com a desigualdade racial.

No Brasil, Bolsonaro tem voltado atrás nos esforços de ameaçar o uso da força militar para garantir a continuidade de sua rejeição a qualquer base científica para a epidemia. Em vez disso, se comprometeu a buscar crescimento econômico imediato, e o ministro Paulo Guedes voltou a conversar com o Congresso. O vice-presidente Hamilton Mourão presidiu um grupo concebido para evitar mais danos causados por incêndios na região amazônica. Cientistas esperam obter uma vacina nos próximos meses. Poucas vezes as agências de espionagem procuraram tão ansiosamente penetrar no sigilo da pesquisa em andamento em outros lugares. Todo país quer ser o primeiro a ter sucesso. Mas alguns já conseguiram se sair melhor do que EUA e Brasil em atenuar a pandemia e voltar à atividade econômica.

Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil os governos falharam em ter um papel positivo. Como as receitas federais diminuíram e o desemprego aumentou, as medidas compensatórias ocorreram tarde. A testagem adequada ficou bem atrás dos níveis necessários e, agora, até a distribuição de informações quanto aos casos foi impedida.

Quando a assistência federal ocorreu, foi direcionada a Estados governados por apoiadores. Pior, nos EUA, um governador proibiu que prefeitos exigissem o uso de máscaras, como um obstáculo à liberdade individual. Esse caso foi parar nos tribunais, que estão sob ataque nos dois países. Leis não são prioridades. Os resultados estritamente desejados, sim.

Há uma troca entre os esforços para buscar uma saúde pública eficaz e uma maior produção econômica. A primeira requer compromisso com a aquisição científica de informações e uma possível restrição à liberdade individual. A última busca a eficiência por meio de decisões baseadas principalmente no lucro. As sociedades devem escolher como ponderar as alternativas. As interpretações do direito constitucional permitem que sua importância relativa varie ao longo do tempo. Crises externas tornam as mudanças necessárias.

Vemos isso no crescente conflito interno que ocorre em todo o mundo. O papel diferencial da polícia é um componente essencial. Sua aplicação das leis não é mais considerada universalmente válida. Em vez disso, suas próprias ações desencadeiam oposição generalizada. Nos EUA, o assassinato de George Floyd foi o responsável pelo início de grandes manifestações. Essas se espalharam por outros países. 

À medida que o número de pessoas reunidas aumentou, o mesmo aconteceu com o de policiais. O que há de diferente agora é a universalidade da internet. As imagens mostram histórias de violência e a resposta da multidão é imediata. Por sua vez, a polícia responde e as questões rapidamente ficam fora de controle. Em vários países, a direita se mobilizou em favor de uma presença policial maior, já a esquerda demonstrou mais abundantemente sua oposição, e edifícios foram incendiados.

Nem direita nem esquerda tendem a moderar. Elas desenham fronteiras nítidas, buscando a lealdade dos seguidores. Na ausência de um centro político comprometido com o diálogo, a batalha se torna contínua e nociva. Mas há um resultado mais otimista. O que ocorreu é uma oportunidade especial de avanço ou regressão. A decisão final depende de uma geração mais jovem, capaz e disposta a participar mais ativamente. Para os EUA, o desaparecimento de Trump parece cada vez mais provável, preparando o terreno para o progresso em várias dimensões sociais. Para o Brasil, um futuro semelhante é possível.

Nesse caso, todas as consequências dessa pandemia podem ser uma surpresa maravilhosa. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

ECONOMISTA E CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR EMÉRITO NAS UNIVERSIDADES DE COLUMBIA E DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY. ESCREVE MENSALMENTE