domingo, 19 de julho de 2020

Museu a céu aberto: obras de arte nas ruas de São Paulo formam um rico acervo, OESP

Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo

18 de julho de 2020 | 20h59

Andar por São Paulo e olhar para cima: uma prática comum entre turistas, mas talvez pouco valorizada pelos que caminham pelas mesmas ruas todos os dias. Mas, ao mesmo tempo e sob diversas perspectivas, a cidade construiu em si mesma ao longo dos últimos 60 anos uma oferta ampla de obras referenciais, projetos arquitetônicos únicos, murais – e, claro, sem se esquecer do grafite, processo efêmero que encontra na contínua renovação a força estética que hoje é parte integrante da cidade.

Uma das artistas com mais obras marcantes na cidade é Maria Bonomi, italiana radicada no Brasil, autora de murais e esculturas. Aos 85 anos recém-completados, a artista está em isolamento no interior, dedicando-se à arte e à leitura.

“O ambiente pede por obras de arte, principalmente em uma cidade tão estabanada quanto São Paulo, na qual não conseguimos manter uma urbanização organizada. É necessário um tratamento visual, até para consertar certas tragédias que vemos por aí. Uma empena (parede lateral de um edifício, sem abertura) enorme vazia, em que não se fez nada, é um desperdício”, diz Bonomi, por telefone.

Arte Fora do Museu
‘Plexus’. Escultura de Maria Bonomi fica na Praça Oswaldo Cruz, no bairro do Paraíso  Foto: Daniel Teixeira/Estadão

A artista explica que as obras em prédios, por exemplo, sempre são mais ricas quando planejadas de maneira conjunta com a construção. “Os custos são muito relativos. Cobrir uma grande empena com lajotas é tão ou mais caro do que fazer um painel”, conta. O importante, para ela, é como a obra de arte vai se relacionar com o ambiente ao seu redor. “A obra é pensada e criada para o lugar. Estudamos a luz, o movimento das pessoas, o espírito da região, a cosmogonia local, e aí se pensa o DNA que o trabalho terá de ter para estar naquele lugar.”

Ela conta que recentemente uma mulher entrou em contato perguntando se ela sabia das intervenções realizadas na fachada do edifício Jorge Rizkallah Jorge, na Rua Bela Cintra, um mural seu. “Eu havia sido consultada, mas achei um bom indicativo de como as pessoas se ligam nessas coisas, de como é importante para a cidade. Existe um convívio diário com a obra, o que cria uma percepção e até um alívio. As pessoas passam a criar referências com a arte, e não com shopping. Não temos em São Paulo ruínas históricas, mas temos milhares de obras.”

NaLata Festival Internacional de Arte Urbana, acontecendo agora em vários pontos da capital, pretende contribuir na discussão. Os grafites e as atividades ocorrem nos arredores do Largo da Batata. Entre os artistas convidados, estão Pri Barbosa, Alex Senna, Enivo e a colombiana Gleo.

Um bom guia para quem está buscando novas visões sobre as obras espalhadas pela cidade é o site Arte Fora do Museu, agora reformulado. Quando os jornalistas André Deak e Felipe Lavignatti criaram o projeto há cerca de 10 anos, a ideia era montar um catálogo com 100 obras na cidade de São Paulo. Com a pandemia e o fechamento temporário de museus e galerias, o site (arteforadomuseu.com.br) ganha mais uma camada ao permitir a visitação virtual de cerca de 2 mil obras em ruas, feitas por mais de 500 artistas.

Ali, o internauta vai encontrar diversos guias e roteiros, como alguns dos sugeridos abaixo, com murais, esculturas, projetos arquitetônicos, e claro, o grafite. Lavignatti conta que o que começou como uma catalogação foi ganhando outras funções, de maneira orgânica. “O nome é auto explicativo: existe arte fora do museu para ser acessada. É muito comum passar em frente a uma escultura e não saber o que ela representa. A gente traz essa camada de informação e a deixa visível no mundo digital. Imaginando que a cidade é um museu a céu aberto, o site é o guia desse acervo. São informações que apuramos e que também têm um esforço colaborativo,” explica.

O curador percebeu que é “impossível” ir de um ponto a outro da cidade sem passar por uma obra de arte. “Uma cidade desse tamanho, montada em concreto, é cenário de iniciativas arquitetônicas e intervenções importantes de grandes nomes, como a própria Bonomi, mas também Artacho Jurado, Niemeyer, Rino Levi, Paulo Mendes da Rocha. Uma cidade em crescimento é bom terreno para se criar essas obras.” 

A discussão do momento nesse assunto, sobre as estátuas que ocupam o espaço público com homenagens a escravocratas, também pode se beneficiar do Arte Fora do Museu, que provê contexto para os monumentos. “Existe toda uma logística, mas acredito que hoje essas obras caberiam mais em um museu que em uma homenagem a céu aberto”, diz Lavignatti.

ARTE PRODUZIDA NA QUARENTENA

 

  • 1. ‘Quando tudo isso passar a gente volta a se abraçar’: Nova imagem (foto) do artista Bueno fica na Escola Etelvina de Goes Marcucci, próxima a Paraisópolis, zona sul de SP.
  • 2. ‘Plantas Tropicas 8’: Trabalho de Gui Mancini fica na Rua Fernandes Moreira, 1.394, Chácara Santo Antônio.
  • 3. ‘Ishtar e Nereidas’: A artista Carola Trimano desenvolveu dois murais de arte de rua em Pinheiros, na altura da Rua Cônego Eugênio Leite, 1.045.
  • 4. NaLata Festival: Nos arredores do Largo da Batata, em Pinheiros, o evento promete montar o “maior museu a céu aberto” da América Latina, com o trabalho de mais de uma dezena de artistas, nos prédios.
  • 5. ‘Como será o amanhã?’: O questionamento do artista Walter Nomura, o Tinho, é ilustrado em parede na Vila Maria, zona norte da capital (foto).

MURAIS

Maria Bonomi
Maria Bonomi. Mural na Rua Bela Cintra foi reformado  Foto: André Deak/Arte Fora do Museu (http://www.arteforadomuseu.com.br)
  • 1. Fachada do edifício Jorge Rizkallah Jorge: Maria Bonomi criou nos anos 1970 esse painel que faz referência aos sulcos da gravura. Fica na Rua Bela Cintra, 1.149.
  • 2. Avenida Angélica, 2.016: Assinado por Claudio Tozzi, o painel de 36 metros de altura foi construído com 1,5 milhão de pastilhas vítreas em uma área de 600 m².
  • 3. Avenida Higienópolis, 375: Projetado pelos arquitetos Ermanno Siffredi e Maria Bardelli, o prédio possui painéis com grafismos criados por Bramante Buffoni, entusiasta da pop art nos anos 50.
  • 4. Epopeia Paulista: Outro mural de Bonomi, feito a partir de objetos encontrados na seção de achados e perdidos da Estação da Luz, onde está.
  • 5. Rua Cruzeiro, 851, Barra Funda: O mural (foto) do paulista Alex Senna, visível de longe, foi feito com tinta látex.

 

 

FORA DO TEMPO?

Largo da Memória
Largo da Memória, na Consolação. Um dos pontos mais movimentados de SP  Foto: DORNICKE/WIKIMEDIA COMMONS

História
História. Ponto de tráfico de pessoas escravizadas  Foto: MILITÃO AUGUSTO DE AZEVEDO - 1862
  • 1. Obelisco do Piques: O obelisco foi erguido ao lado de um mercado em que negros eram traficados. Na época, ele foi dedicado à “memória do zelo do bem público”. No Largo da Memória, no centro.
  • 2. ‘Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo’: O monumento em homenagem à criação da cidade, no Pátio do Colégio, mostra indígenas em trabalho braçal, sob as ordens de um padre.
  • 3. ‘Monumento ao Anhanguera’: A estátua na Av. Paulista faz tributo ao bandeirante, o “espírito do mal”, conhecido por escravizar índios.
  • 4. ‘Monumento às Bandeiras’: Victor Brecheret buscou inspirações europeias para apresentar o projeto na Semana de 1922, montado em 1953.
  • 5. ‘Borba Gato’: Com 12,5 metros de altura, a obra já foi objeto de protestos por glorificar período de violência histórica.

Eliane Cantanhêde Platô no vírus e na política, OESP

O presidente Jair Bolsonaro continua sendo uma fonte de instabilidade e temos dois milhões de contaminados e perto de 80 mil mortos pela covid-19, mas o Brasil conteve a dupla escalada e – ainda que em patamares desesperadores – vai chegando a um platô na política e no vírus e é hora de deslanchar o pós-pandemia e prestigiar a força das instituições e da sociedade civil. A imagem do País esfarela mundo afora, mas é preciso reconhecer a incrível capacidade de resistência a ameaças e bravatas. 

Com Bolsonaro em fase de trégua e de quarentena, o Judiciário em recesso e o Legislativo trazendo as reformas estruturais de volta à pauta do País, vem essa sensação de platô político e de volta à normalidade, reforçada por indicadores ainda frágeis, mas em viés de alta, na economia. A situação da pandemia ainda é macabra, sem prazo para terminar, mas constrói-se união para minimizar os danos colaterais e tratar as feridas: quebradeira de empresas, milhões a mais de desempregados e o aprofundamento da miséria. 

Esse debate é possível depois da fantástica resistência aos ataques contra as instituições, a ciência e a inteligência. O Supremo liderou esse processo e, mesmo atuando no limite, às vezes balançando perigosamente para o excesso, deu a sustentação indispensável para uma reação que brotou de todos os lados e cristalizou a certeza de que o Brasil não é o melhor dos mundos, mas sabe sustentar a democracia. 

Mesmo antes de pegar a covid-19 (o que ele buscou fervorosamente), Bolsonaro já tinha parado de disparar insultos diários, atiçar as hordas golpistas, avalizar a guerra da internet contra tudo e todos, reabrindo o diálogo e as relações com os poderes. O vírus fez o resto e, com o presidente devidamente recolhido, o País passou a respirar melhor, a acordar sem tanto sobressalto. 

Antes tarde do que nunca, o governo passou a ouvir o grito estridente, ensurdecedor, dos que defendem o Meio Ambiente, descobrindo com enorme surpresa que a gritaria pela preservação não é só de ONGs, conselhos, Igreja Católica e esquerdistas. Ela veio forte de fundos de investimento internacionais, bancos e grandes empresas nacionais, ex-ministros da economia e ex-presidentes do Banco Central. 

Esse movimento estabelece, enfim, uma distinção entre a direita moderna, culta e pragmática e essa direita instalada no poder, atrasada, ignorante, com um discurso ideológico incompreensível. Pior: no ataque, agressiva, endeusando armas, guerras imaginárias, inimigos fantasmas e desmanchando tudo sem construir nada. Isso não é ser “de direita”. A direita entendeu e obrigou Bolsonaro a começar a entender. 

Assim surge a novidade: o debate sobre saídas para o País. O Congresso se reúne em torno da reforma tributária, o governo entrega na terça-feira sua proposta de simplificação de impostos, grupos e entidades civis participam do processo. Exemplo: a Liderança Pública (CLP), coordenada pelo cientista político Luiz Felipe D’Ávila, apadrinha 28 projetos essenciais, a começar das reformas. O Brasil demonstra que tem instituições, sociedade ativa, imprensa livre, e que ninguém e nenhum poder consegue impor pensamento único e ideias estapafúrdias. 

Aí entramos na Saúde. As posições de Bolsonaro sobre isolamento social, aglomerações, máscaras e cloroquina deixaram de ser só chocantes para cair num terreno onde perigo e ridículo se misturam. Os militares, se reagiram mal ao uso da expressão “genocídio”, sabem que o ministro do STF Gilmar Mendes tem razão ao alertar para a associação da imagem das Forças Armadas com uma política que custa vidas e é recriminada no mundo inteiro. É preciso bater em retirada de uma guerra perdida – e que não é sua – para a covid-19. Enquanto é tempo. 

Viver na ponte, Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo

Manter a serena alegria em dias bons e a sabedoria tranquila em dias piores é o desafio

18 de julho de 2020 | 20h59

Este ano será memorável, daqueles que gerações debaterão. A maioria de nós foi afetada diretamente pela pandemia. Pela doença em si ou pela crise que adveio das drásticas mudanças de vida, consumo e sociabilidade que tivemos de adotar para contê-la. Em meio ao pandemônio, houve momentos em que, humano que sou, preenchi-me de esperança, de uma certeza de que tudo passaria, que havia chance de sermos regenerados pelo trauma coletivo. Em dias assim, fluía o exercício físico, o trabalho doméstico e o formal, lia e escrevia muito. Apenas para, no dia seguinte, acordar mais pesaroso, ler os jornais e me desesperar com uma notícia mais ou menos temida, e andar pelo apartamento com pesos nos pés e na alma. Tinha certeza de que o mundo era assim, como na Peste de Camus. O mal está em nós ainda que nos livrássemos do coronavírus. Desesperado, ainda assim, tinha de trabalhar, mas o gosto era menor. A frase de Kafka em conversa célebre me martelava: “Há esperança suficiente, infinita – mas não para nós”. Em dias assim, lia compulsivamente e escrevia ainda mais. Muito do que a tela do meu computador viu surgir em dias de esperança e desespero nunca verá os olhos de outro leitor que não os meus.

Chico Buarque escreveu Pedro Pedreiro e explorou a ideia de que esperança e desesperar têm a ver com o radical esperar. Quem espera algo ou se frustra ou se locupleta. O Pedro da canção termina “esperando enfim nada mais que além / que a esperança aflita, bendita, infinita do apito do trem”, que o levaria para longe, de volta ao passado, para um sonho de vida melhor, ou simplesmente para casa depois de mais um dia de trabalho. Talvez seja condição humana, logo, como viver sem esperar? Como não se desesperar por vezes e não se curvar com a frustração; ou não sentir a esperança lufar como vento em vela de navio, enchendo o peito de confiança?

Os franceses costumavam dizer que “tudo passa, satura, quebra e... é trocado” (Tout passe, tout lasse, tout casse et tout se remplace). Ou seja, a transitoriedade é a tônica de nossa existência. Nada durará para sempre, o problema incontornável de hoje será esquecido ou se apequenará diante do desafio de amanhã. A alegria passará pelo mesmo efeito. Isso não é maldição, mas bênção. Imaginem se uma tragédia se eternizasse? Ou se uma felicidade fosse perene? Como apreciar a felicidade se ela fosse imorredoura? Como ter perspectiva na crise se ela fosse imutável? Ou seja, La Rochefoucauld não estava equivocado em nos lembrar de que a desesperança é uma gêmea siamesa da expectativa, do otimismo. Tampouco a Bíblia deixou passar essa constatação e o Eclesiastes (9,4) registra: “Ora, para aquele que está entre os vivos há esperança (porque melhor é o cão vivo do que o leão morto)”. O mesmo texto atribuído ao rei Salomão afirma uma espécie de solução logo adiante: “Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vaidade; porque esta é a tua porção nesta vida, e no teu trabalho, que tu fizeste debaixo do sol”. Trata-se de um otimismo realista, de uma virtude de consciência do fim e de necessidade de vivenciar as coisas boas por enquanto. O autor parece ter lido o “jogo do contente de Poliana” e Schopenhauer em igual proporção. É um Pangloss melancólico. Ora, se tudo passa, aproveite enquanto não passa. Se tudo cansará ou quebrará, retomando o ditado francófono, vamos viver agora. Por fim, enquanto não sou substituído, vivo as alegrias da função.

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O desafio está na literatura e na filosofia. Encontramos em existencialistas e nos escritores sagrados. O mesmo e velho debate que irei sintetizar. Os dramas se repetem para sempre. Sobreviveu à epidemia atual? Outra lhe aguarda. Resolveu a questão econômica no momento atual? O vazamento financeiro encontrará outro ponto frágil no dique da sua resolução. Um filho foi bem agora? Outro trará uma péssima notícia. São esses caminhos que nos irmanam com Macbeth e a vida se torna cheia de som e de fúria e sem significado. Tal seria o polo pessimista. O outro é das pessoas, por vezes irritantes, que despertam sempre felizes, saudando o sol (ou o dia chuvoso) e sempre observam só o lado bom. Ao entrar no escritório, assemelham-se a um trio elétrico no circuito Barra-Ondina de Salvador. Só alegria! Só purpurina! Tudo é radioso! Tal como os urubus pessimistas, os pavões otimistas conseguem ser chatos.

O bom caminho poderia ser um otimismo realista, aquele indicado pela Bíblia. As coisas podem estar ruins e devem ser levadas em conta. A consciência da finitude deve provocar desapego e não dor, pois o apego ao impossível eterno de tudo só faz sangrar a pele frágil do otimista. Talvez nem tanto desapego como estimulavam estoicos, quase seres fora do mundo em que vivemos. Porém, aceitar um pouco da oscilação como inevitável, e manter a serena alegria em dias bons e a sabedoria tranquila em dias piores. Sem oscilações inteiramente dependentes do que ocorre e sem desligamento do real. Entre os dois polos, temos música, temos amores, temos arte e literatura e, eventualmente, vinho. São divinas pontes para que não caiamos na tentação de obter cidadania permanente na ilha da depressão ou na da euforia. Nenhuma é nossa, de fato. Somos cidadãos da ponte, sempre. Com a realista esperança infinita, sujeitos ao carnaval (no máximo um por ano) e alguma furtiva lágrima. Boa semana aos cidadãos da ponte. 

 

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Leandro Karnal