quinta-feira, 16 de julho de 2020

Presença chinesa e risco de guerra entram no radar militar do Brasil, FSP

SÃO PAULO

A presença da China na América do Sul, uma preocupação frequente dos Estados Unidos, entrou oficialmente no radar militar brasileiro. O risco de um confronto armado na região, também.

A atualização dos textos irmãos PDN (Política de Defesa Nacional) e END (Estratégia Nacional de Defesa), que será enviada ao Congresso no dia 22, mostra preocupação especial com os chamados "atores exógenos" no continente.

Teste do sistema de mísseis terra-terra Astros-2020, um dos programa estratégicos do Exército
Teste do sistema de mísseis terra-terra Astros-2020, um dos programa estratégicos do Exército - Marcelo Camargo - 21.jul.2011/Folhapress

Os chineses já colocaram, segundo conta do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, US$ 180 bilhões (R$ 964 bilhões) em programas de infraestrutura de países da região —muitos no sul do continente. Aderiram ao estratégico programa chinês Iniciativa Cinturão e Rota 25 das 31 nações latino-americanas.

Segundo o chefe do comando, almirante Craig Faller, a China abriu uma "armadilha econômica" para os empobrecidos países da América Latina.

Segundo o texto, "potências externas têm incrementado sua presença e influência nessa áreas", em referência à região amazônica e ao Atlântico Sul.

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Como já acontecia nas versões anteriores, a Amazônia é tratada como alvo de cobiça externa. Um documento preliminar sobre cenários para defesa até 2040, que a Folha revelou em fevereiro, mostrava que a França era vista como a maior ameaça estratégica ao país.

O país europeu está à frente de críticas à política ambiental do governo Jair Bolsonaro e faz fronteira física por meio da Guiana Francesa com a região —o que não a torna um "ator exógeno". A diplomacia de Paris considerou a hipótese de confronto delirante.

Como documento de Estado, a dupla PND/END não nomeia ameaças, apenas apresenta objetivos e como chegar a eles com os recursos disponíveis, que são inventariados num terceiro documento em atualização, o Livro Branco de Defesa Nacional.

A primeira PND é de 1996 e teve três atualizações até 2016. A END teve edições em 2008, 2012 e 2016. O Livro Branco terá sua primeira revisão desde 2012.

Mudanças geopolíticas, portanto, são esperadas, embora nada muito radical. O desapreço do governo Bolsonaro pelas instituições multilaterais não se reflete no texto: a Organização das Nações Unidas não surge como a vilã globalista pintada pelo Itamaraty atual, por exemplo.

Por outro lado, há realidades: a União das Nações Sul-Americanas e o Conselho Sul-Americano de Defesa, entidades criadas pelos governos de esquerda que dominaram o continente nos anos 2000-2010, desapareceram na prática.

Logo, não são mais louvadas como fórum de integração, como na versão da PND/END vigente, como foram no passado sob governos do PT.

Segundo pessoas envolvidas na confecção do documento, que ainda está sendo revisado e não tem versão final pronta, o alinhamento do Brasil aos EUA, preconizado por Bolsonaro, não se reflete nos textos.

Mas o texto afirma que o país deverá buscar cooperação com nações dispostas a partilhar tecnologia militar. Aí entram os EUA.

No ano passado, o Brasil virou aliado preferencial dos americanos fora do escopo da Otan (aliança militar ocidental) e assinou um importante acordo de cooperação tecnológica no setor. Mas, na prática, nada ainda aconteceu.

A posição brasileira de recusar a adesão a protocolos adicionais do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, algo que os americanos gostariam de ver assinada, deve ser mantida na atualização.

Além de Pequim, Moscou também chama a atenção das Forças Armadas devido a seu apoio explícito à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela, aí no campo mais exclusivamente militar —como "atores exógenos", os russos não têm nada do peso econômico chinês.

Daí surge, naturalmente sem nomes, a preocupação com o país ao norte da fronteira brasileira. Antes, o documento não antevia risco de conflitos na região, mas, como mostrou nesta quinta (16) o jornal O Estado de S. Paulo, a preocupação se faz presente.

No ano passado, os EUA coordenaram com Brasil e Colômbia reações à crise venezuelana, e num dado momento os militares brasileiros tiveram de intervir para evitar as tentações do Itamaraty de se chocar com Maduro.

A tensão, contudo, permanece, apesar de o ditador ter estabilizado relativamente seu poder.

O dito entorno estratégico inclui o Atlântico Sul, área em que o Brasil mira um reforço militar com a programada construção de novas fragatas leves.

Aqui a preocupação é a mesma apontada nas versões anteriores dos documentos: negar acesso a inimigos que possam bloquear o país e monitorar comportamentos marítimos suspeitos.

O texto pede, como a Folha mostrou na semana passada, regularidade orçamentária para os programas militares —muitos deles atrelados a compromissos internacionais, como no caso do caça sueco Gripen ou dos submarinos de origem francesa Scorpène.

O Ministério da Defesa pede 2% do Produto Interno Bruto para defesa de forma fixa, como educação (18%) e saúde (15%) são entronizadas na Constituição.

Esta é a meta da Otan, atingida apenas por 7 dos 29 membros do grupo, o que sempre gera tensão com o sócio majoritário, os Estados Unidos.

Hoje, o país gasta cerca de 1,3% do PIB com defesa. Em 2019, dos R$ 109,9 bilhões destinados ao setor, R$ 80 bilhões foram para pagamento de pessoal —dos quais R$ 47,7 bilhões destinados a inativos (reserva e pensionistas). A meta vigente da Otan não inclui inativos.

O país tem o 11º orçamento militar do mundo, na métrica do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres. Mas a distorção no dispêndio faz com que se invista pouco.

O ministro Fernando Azevedo (Defesa) disse na semana passada que as três Forças estão defasadas operacionalmente, apesar dos programas em curso.

Por outro lado, o setor militar foi o que mais expandiu gastos na Esplanada dos Ministérios em 2019, além de garantir a execução de seu orçamento. A crise decorrente da pandemia coloca essa trajetória em dúvida agora.

Brasil paga para ele trabalhar para mim, diz comandante americano sobre brigadeiro; veja vídeo, FSP

SÃO PAULO

"Os brasileiros estão pagando para ele vir para cá e trabalhar para mim." Foi assim que o chefe do Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos, almirante Craig Faller, apresentou o trabalho do brigadeiro do ar David Almeida Alcoforado ao presidente Donald Trump.

Isso para "fazer diferença para a segurança", segundo o comandante, que dispensou a mesma apresentação ao general de brigada Juan Carlos Correa, do Exército colombiano, também lotado no Comando Sul.

A frase foi dita em um contexto de elogio, com Faller chamando Alcoforado de "um dos mais destacados" das Forças Armadas brasileiras. Ele e Correa são chamados de "vencedores" e comparados a "melhores jogadores" trazidos para um time.

Mas o vídeo com o momento está circulando furiosamente entre militares e diplomatas como uma suposta prova de como os EUA tratam seus aliados —particularmente o governo de Jair Bolsonaro, que prega o alinhamento automático e que tem em Trump um ídolo político.

Talvez não seja para tanto, mas Faller enfatiza duas vezes na fala o "trabalham para mim". Ele acabara de citar a participação de aliados regionais em 70% das operações antinarcóticos conduzidas pelo comando.

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A referência ao fato de que os países de origem pagam sua estadia no Comando Sul remete à insistência de Trump para que outros governos paguem pela cooperação americana. "O presidente [colombiano, Iván] Duque manda o seu melhor e está pagando por isso", disse Faller sobre Correa.

A postura do presidente americano vale tanto nas cúpulas da Otan (aliança militar liderada por Washington) quanto em agressivos discursos em que exige que o México custeie o muro que visa segurar a imigração ilegal para os EUA.

As falas ocorreram em um evento sobre trabalho contra o narcotráfico empreendido pelo Comando Sul, no dia 10, na Flórida.

David, como é conhecido na Força Aérea, é chamado de "nossa nova adição ao quartel-general" por Faller. O brigadeiro de duas estrelas, dois postos antes do topo hierárquico, assumiu o posto em 23 de março, após passar dois anos como comandante da Academia da Força Aérea. Deve voltar ao Brasil em 2022.

Bolsonaro cumprimenta o almirante Faller, do Comando Sul, durante visita em março
Bolsonaro cumprimenta o almirante Faller, do Comando Sul, durante visita em março - Marco Bello - 8.mar.2020/Reuters

No Comando Sul, ele é vice-diretor do J5, departamento que cuida de estratégia, diretriz política e planos. O salário, como lembrou Faller, pago pelo contribuinte brasileiro, ganhou um bom incremento após sua ida aos EUA.

No Brasil, David ganhava R$ 29.101,70 brutos. Agora, seus proventos foram dolarizados: recebeu em abril US$ 9.535,46 (R$ 50,9 mil no câmbio desta quinta, 16). Além disso, naquele mês recebeu R$ 10.314,64 em verbas indenizatórias. Os dados são do Portal da Transparência.

David é o segundo oficial-general brasileiro, na história, a integrar o Comando Sul. O primeiro havia sido o general de brigada Alcides Valeriano de Faria Júnior, que virou subcomandante de Interoperabilidade no ano passado —num processo iniciado ainda no governo de Michel Temer (MDB).

A reportagem não localizou David. Em entrevista à Folha, Alcides, como é chamado no Exército, negou haver subordinação automática a ordens americanas.

Se houver "decisão soberana dos EUA [que] não esteja de acordo com a posição política nacional, o Brasil pode determinar meu regresso, e eu, como militar, funcionário de Estado, retorno imediatamente", disse na ocasião.

De lá para cá, o Brasil foi declarado por Trump um aliado preferencial fora da Otan, o que poderá render uma cooperação maior. Há divergências, também: em 2019 os EUA buscaram incitar Brasil e Colômbia a agir militarmente contra a ditadura da Venezuela, algo apoiado pelo Itamaraty sob Ernesto Araújo, mas descartado pelos militares.

Como os comentários irônicos ou irados nas redes que receberam o trecho do vídeo, disponível no site do Comando Sul, o episódio remonta às desconfianças históricas entre militares brasileiros acerca dos EUA.

Os países foram aliados na Segunda Guerra Mundial, fato lembrado por Faller, mas o Brasil sempre foi um anão militar ante o gigante do norte.

Os EUA apoiaram a ditadura instaurada em 1964, mas progressivamente o regime se afastou de Washington, e o ápice disso ocorreu com a política nacional-desenvolvimentista do governo Ernesto Geisel (1974-1979).

Após a redemocratização, o longo período do PT (2003-16) no poder aumentou a distância política, dada a orientação dita Sul-Sul do governo. A aproximação ensaiada sob Dilma Rousseff (PT), que previa até a compra de caças americanos, foi abortada pelo episódio da espionagem americana sobre a presidente.

Com Temer, houve um relaxamento, e Bolsonaro assumiu em 2019 prometendo uma relação próxima com os EUA. Os militares aprovam a ideia, mas, como no episódio da Venezuela, preferem manter o máximo de independência.