A presença da China na América do Sul, uma preocupação frequente dos Estados Unidos, entrou oficialmente no radar militar brasileiro. O risco de um confronto armado na região, também.
A atualização dos textos irmãos PDN (Política de Defesa Nacional) e END (Estratégia Nacional de Defesa), que será enviada ao Congresso no dia 22, mostra preocupação especial com os chamados "atores exógenos" no continente.
Os chineses já colocaram, segundo conta do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, US$ 180 bilhões (R$ 964 bilhões) em programas de infraestrutura de países da região —muitos no sul do continente. Aderiram ao estratégico programa chinês Iniciativa Cinturão e Rota 25 das 31 nações latino-americanas.
Segundo o chefe do comando, almirante Craig Faller, a China abriu uma "armadilha econômica" para os empobrecidos países da América Latina.
Segundo o texto, "potências externas têm incrementado sua presença e influência nessa áreas", em referência à região amazônica e ao Atlântico Sul.
Como já acontecia nas versões anteriores, a Amazônia é tratada como alvo de cobiça externa. Um documento preliminar sobre cenários para defesa até 2040, que a Folha revelou em fevereiro, mostrava que a França era vista como a maior ameaça estratégica ao país.
O país europeu está à frente de críticas à política ambiental do governo Jair Bolsonaro e faz fronteira física por meio da Guiana Francesa com a região —o que não a torna um "ator exógeno". A diplomacia de Paris considerou a hipótese de confronto delirante.
Como documento de Estado, a dupla PND/END não nomeia ameaças, apenas apresenta objetivos e como chegar a eles com os recursos disponíveis, que são inventariados num terceiro documento em atualização, o Livro Branco de Defesa Nacional.
A primeira PND é de 1996 e teve três atualizações até 2016. A END teve edições em 2008, 2012 e 2016. O Livro Branco terá sua primeira revisão desde 2012.
Mudanças geopolíticas, portanto, são esperadas, embora nada muito radical. O desapreço do governo Bolsonaro pelas instituições multilaterais não se reflete no texto: a Organização das Nações Unidas não surge como a vilã globalista pintada pelo Itamaraty atual, por exemplo.
Por outro lado, há realidades: a União das Nações Sul-Americanas e o Conselho Sul-Americano de Defesa, entidades criadas pelos governos de esquerda que dominaram o continente nos anos 2000-2010, desapareceram na prática.
Logo, não são mais louvadas como fórum de integração, como na versão da PND/END vigente, como foram no passado sob governos do PT.
Segundo pessoas envolvidas na confecção do documento, que ainda está sendo revisado e não tem versão final pronta, o alinhamento do Brasil aos EUA, preconizado por Bolsonaro, não se reflete nos textos.
Mas o texto afirma que o país deverá buscar cooperação com nações dispostas a partilhar tecnologia militar. Aí entram os EUA.
No ano passado, o Brasil virou aliado preferencial dos americanos fora do escopo da Otan (aliança militar ocidental) e assinou um importante acordo de cooperação tecnológica no setor. Mas, na prática, nada ainda aconteceu.
A posição brasileira de recusar a adesão a protocolos adicionais do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, algo que os americanos gostariam de ver assinada, deve ser mantida na atualização.
Além de Pequim, Moscou também chama a atenção das Forças Armadas devido a seu apoio explícito à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela, aí no campo mais exclusivamente militar —como "atores exógenos", os russos não têm nada do peso econômico chinês.
Daí surge, naturalmente sem nomes, a preocupação com o país ao norte da fronteira brasileira. Antes, o documento não antevia risco de conflitos na região, mas, como mostrou nesta quinta (16) o jornal O Estado de S. Paulo, a preocupação se faz presente.
No ano passado, os EUA coordenaram com Brasil e Colômbia reações à crise venezuelana, e num dado momento os militares brasileiros tiveram de intervir para evitar as tentações do Itamaraty de se chocar com Maduro.
A tensão, contudo, permanece, apesar de o ditador ter estabilizado relativamente seu poder.
O dito entorno estratégico inclui o Atlântico Sul, área em que o Brasil mira um reforço militar com a programada construção de novas fragatas leves.
Aqui a preocupação é a mesma apontada nas versões anteriores dos documentos: negar acesso a inimigos que possam bloquear o país e monitorar comportamentos marítimos suspeitos.
O texto pede, como a Folha mostrou na semana passada, regularidade orçamentária para os programas militares —muitos deles atrelados a compromissos internacionais, como no caso do caça sueco Gripen ou dos submarinos de origem francesa Scorpène.
O Ministério da Defesa pede 2% do Produto Interno Bruto para defesa de forma fixa, como educação (18%) e saúde (15%) são entronizadas na Constituição.
Esta é a meta da Otan, atingida apenas por 7 dos 29 membros do grupo, o que sempre gera tensão com o sócio majoritário, os Estados Unidos.
Hoje, o país gasta cerca de 1,3% do PIB com defesa. Em 2019, dos R$ 109,9 bilhões destinados ao setor, R$ 80 bilhões foram para pagamento de pessoal —dos quais R$ 47,7 bilhões destinados a inativos (reserva e pensionistas). A meta vigente da Otan não inclui inativos.
O país tem o 11º orçamento militar do mundo, na métrica do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres. Mas a distorção no dispêndio faz com que se invista pouco.
O ministro Fernando Azevedo (Defesa) disse na semana passada que as três Forças estão defasadas operacionalmente, apesar dos programas em curso.
Por outro lado, o setor militar foi o que mais expandiu gastos na Esplanada dos Ministérios em 2019, além de garantir a execução de seu orçamento. A crise decorrente da pandemia coloca essa trajetória em dúvida agora.
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