quarta-feira, 25 de março de 2020

A Fiesp expôs sua alma em reunião com Bolsonaro, Elio Gaspari, FSP

Na sexta-feira (20) da semana passada Jair Bolsonaro e três ministros participaram de um evento organizado pelo presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Numa videoconferência de uma hora, falaram 14 grandes empresários ligados à guilda. É um penoso documento histórico e está na rede.
Dez deles gastaram seu tempo com platitudes ou simples bajulações. Alguns disseram o óbvio: há o problema dos transportes, o mercado se contraiu e as empresas precisam de crédito.
Ofertas concretas e bem-vindas vieram de Jean Jereissati (Ambev) e de David Feffer (Suzano). Um contou que sua fábrica do Rio foi reciclada para produzir álcool que será doado à rede pública. O outro revelou que doará 500 mil máscaras.
Bolsonaro e ministros, em Brasília, participam de videoconferência com empresários da Fiesp
Bolsonaro e ministros, em Brasília, participam de videoconferência com empresários da Fiesp - Isac Nóbrega - 20.mar.20/Presidência da República
A reunião produziu três “Momentos Fiesp”. O primeiro aconteceu depois que Eugênio de Zagottis, falando pelas farmácias, pediu o razoável adiamento da remarcação de preços prevista para a semana que vem: “O Brasil não precisa dessa manchete”.
Deu-se uma saia justa. Carlos Sanchez, representante da indústria farmacêutica, retomou a palavra, dizendo que os aumentos para remédios relacionados com a Covid-19 poderiam ser adiados. Quanto aos demais só haveria dois caminhos, um dólar de R$ 4 para o seu setor ou uma redução de 5% na margem das farmácias, que deveria ser repassado à sua indústria. A proposta de Zagottis ficou no ar.
Num outro episódio, Rubens Ometto, o maior produtor de álcool neutro do país, trouxe uma agenda filosófica: “A gente precisa tomar muito cuidado com as promessas que têm sido feitas para a população, porque às vezes você pode quebrar uma cadeia dos serviços e dos negócios que são feitos, como a promessa de itens grátis, como água, como luz, como esse negócio todo. Vai se criando uma ideia de que não há necessidade de pagar”.
Tudo bem, mas tinha-se acabado de tratar, sem sucesso, da conveniência de se adiar um aumento de preços de remédios.
No terceiro episódio, Edson Queiroz Neto pediu que aviões da FAB fossem à China para buscar suas encomendas relacionadas com a epidemia. Tomou um contravapor do ministro da Casa Civil, Braga Netto, lembrando-lhe que a Vale fretou um avião para buscar o material que doará.
A Vale, que não estava na reunião, fechou na China a compra de 5 milhões de testes rápidos. A primeira remessa, de 1 milhão, deve chegar na próxima sexta-feira (27). Os 4 milhões restantes chegarão em meados de abril. Essa doação equivale à metade das unidades que o Ministério da Saúde estima necessitar. Tudo sem necessidade de pagar.
A Fiesp mostrou um rosto cenográfico e alguns grandes empresários mostraram-se pedestres e pedinchões. (Paulo Skaf, presidente da Fiesp, prometeu 5.000 leitos. Enquanto ele falava, o ministro Luiz Henrique Mandetta tamborilava com os dedos na mesa.)
No dia seguinte a essa cena espetaculosa e irrelevante, uma franquia da Domino’s, sem fanfarra, mandou umas 30 pizzas aos profissionais da saúde de um hospital público do centro do Rio, com o seguinte bilhete: “Com um toque de amor, em agradecimento a todos vocês que estão linha de frente, se sacrificando por nós”.
De vez em quando, surge a ideia de que o ato de pagar (e de receber) não é tudo na vida de um povo, de uma empresa ou até de uma pessoa.


Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

Recessão e desinflação, Antonio Delfim Netto, FSP

É preciso manter o enorme esforço em busca do equilíbrio fiscal

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Infelizmente, o presidente Bolsonaro começou muito mal o seu governo. Inventou a Casa Civil mais desajeitada e incompetente da história da República e criminalizou o exercício da política com uma indefinida “nova política”. Nunca entendeu que, eleito, podia muito, mas não podia tudo. Principalmente pela sua condição “superminoritária” no Congresso.
O ano de 2019 só não foi um desastre político porque o Congresso assumiu o protagonismo e aprovou a reforma da Previdência, com a oposição de Bolsonaro em relação aos militares. Iniciamos 2020 com a ameaça de uma grave crise política. Sob tensão crescente, o Congresso introjetou o fato de que Bolsonaro é incapaz de conformar-se com as limitações que lhe impõem a natureza de sua vitória e a Constituição. Ficou clara, então, a separação entre as suas prioridades e as do Congresso. Aí, a mesma Casa Civil, politicamente ingênua, assumiu uma estratégia salomônica, provavelmente sem a clara aprovação do presidente, e entregou “poder” ao Congresso. Quando ele acordou, era tarde. Praticamente toda a execução do Orçamento estava nas mãos do Congresso, que revela um flerte com o velho “parlamentarismo de ocasião”...
Foi sobre esse ambiente político conflagrado que se abateu a tremenda desgraça da Covid-19. Bolsonaro seguiu seu “guru” Trump na negativa do conhecimento científico e classificou-a como “histeria”. Felizmente, parece que a dimensão da crise devolveu algum bom senso ao Executivo e abalou as pretensões do Legislativo.
Estamos metidos num sério processo de queda da já minguada demanda global interna, associada à exigência insuperável de uma paralisação da produção imposta pelo combate ao coronavírus. Teremos, portanto, uma enorme queda da oferta global interna (e externa!). Desaguarão numa profunda recessão e em pressões desinflacionárias. É esse fato que exige a rápida superação das diferenças entre os Poderes e a construção de um programa comum, cuja execução deve ser delegada ao Executivo, dotando-o de um “fast-track” com prazo certo e sob o controle do Legislativo e do Judiciário.
Creio que começamos a fazer a coisa certa para enfrentar a calamidade. Podemos mitigá-la com as medidas de emergência já aprovadas e com as que, a cada dia, se imporão em resposta à evolução do fator epidemiológico, o que permitirá, talvez, enfrentar com sucesso o “pico” da crise. Os créditos extraordinários nos autorizarão a fazê-lo sem descontinuar o enorme esforço em busca do equilíbrio fiscal implícito na emenda constitucional do teto. Sem este, jamais teremos o crescimento robusto, equânime e estável de que precisamos.
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.