domingo, 22 de março de 2020

Reinaldo José Lopes O arsenal da ciência, FSP

Cientistas brasileiros podem fazer muito na luta contra coronavírus, mas precisam de recursos

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Poucas identidades nacionais do mundo moderno são mais complicadas do que a brasileira, e poderíamos ficar aqui até amanhã citando os aspectos menos elogiáveis dela. Mas também é verdade que, em seus melhores momentos, os brasileiros são mestres em transformar os limões que a vida lhes dá em limonada. Clichês não são menos reais por serem clichês.
Foi mais ou menos isso que me veio à cabeça quando tive a oportunidade de ler um novo estudo na revista científica Molecular Therapy, assinado por Mayana Zatz, Carolini Kaid e outros colegas da USP. Partindo do princípio de que o vírus da zika tem predileção especial por invadir células do sistema nervoso que estão se multiplicando com rapidez (afinal, é assim que ele acaba causando danos cerebrais em fetos durante a gestação), as pesquisadores decidiram usá-lo para atacar tumores do cérebro, os quais são difíceis de tratar e se multiplicam rápido, tal como outros tipos de câncer.
Nessa pesquisa recente, a abordagem aumentou significativamente a expectativa (e a qualidade) de vida de cães já idosos, que tinham desenvolvido cânceres cerebrais de forma espontânea. A ação do vírus pareceu quase teleguiada, atacando os tumores e deixando os neurônios normais intactos. São resultados que podem guiar, no futuro, um teste da tática em seres humanos.
Imagem do tecido tumoral de cão da raça dachshund após o tratamento, obtida por imunofluorescência. O vírus zika (em vermelho) pode ser observado infectando as células malignas (núcleo em azul) nas bordas do tumor
Imagem do tecido tumoral de cão da raça dachshund após o tratamento, obtida por imunofluorescência. O vírus zika (em vermelho) pode ser observado infectando as células malignas (núcleo em azul) nas bordas do tumor - Carolini Kaid/CEGH-CEL
O estudo que acabo de descrever é apenas um dos muitos exemplos de como cientistas brasileiros reagiram com criatividade e perspicácia ao desafio representado pela zika. Diante de uma emergência de saúde pública que, a princípio, ninguém estava conseguindo entender direito, eles desvendaram as causas do problema, jogaram no lixo teorias da conspiração estapafúrdias (como a de que a doença seria causada por vacinas estragadas) e provavelmente salvaram um número considerável de vidas.
Tudo isso nos leva à pergunta mais óbvia de todas: onde está o esforço coordenado para financiar a geração de conhecimento sobre o novo coronavírus no Brasil? É indiscutível que os recursos emergenciais destinados às pesquisas sobre a zika surtiram efeito. Por que não replicar o modelo bem sucedido de anos atrás? Enquanto a pergunta fica no ar, novos cortes de bolsas atingem os pesquisadores brasileiros, num cenário que já conta com menos da metade do financiamento federal que existia em 2013.
Nas últimas décadas, antes que o estado de crise econômica se tornasse uma constante, o país formou muita gente qualificada para trabalhar com biologia molecular, justamente a área mais importante para enfrentar o desafio de um novo vírus. Provavelmente não seria viável transformar os laboratórios das universidades públicas em fábricas de diagnóstico do coronavírus – nem todos estão equipados a contento, e os padrões dos testes em escala industrial são diferentes dos da pesquisa básica. Mesmo assim, seria possível saber muito mais sobre o que o vírus faz e como ele se espalha se esse exército de cientistas de alto nível fosse convocado para a batalha de maneira coordenada. E, numa hora como esta, vale em dobro a máxima de que conhecimento é poder.
Falta dinheiro? Falta, mas falta ainda mais visão estratégica. Nióbio e grafeno, soja e boi, valem bem menos do que um bom biólogo nessas horas, e valerão ainda menos na economia do conhecimento que, cada vez mais, rege o mundo. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Antonio Prata Pandemia da imbecilidade, FSP

Em que momento ficou decretado que o burro do fundão tinha mais autoridade do que a professora?

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Em que momento, exatamente, decidimos globalmente que ser legal não era legal? Em que ano, que mês, que dia, ficou decretado que o burro do fundão que bota tachinha na cadeira da professora tinha mais autoridade do que a professora? Que mecanismo esdrúxulo da psicologia social nos fez (e faz) crer que a busca pela paz, pelo respeito, pela tolerância, pela preservação do meio ambiente e contra a desigualdade são frescuras de gente fraca ou um complô comunista para destruir a sociedade?
Pois são estas distorções mentais que a ascensão de Trump, Bolsonaro, Orbán, Erdogan, Salvini e tantos outros ogros coroa, muito mais do que uma onda da direita. Bolsonaro foi eleito repetindo vez após outra que seu ídolo era o torturador Brilhante Ustra. Não Margaret Thatcher. Não Ronald Reagan. Não os economistas Mises ou Hayek.
Ustra. Um açougueiro que levou crianças de cinco anos para verem os pais destruídos após uma sessão de tortura. (O menino não reconheceu a própria mãe, desfigurada). Bolsonaro dedicou o voto do impeachment de Dilma ao torturador e declarou no programa Roda Viva que seu livro de cabeceira era a biografia do carrasco. Admiradores de ditaduras costumam mentir para esconder a selvageria. Bolsonaro, não: parece ter uma fixação justamente pelas sevícias. Fez da ação humana mais abjeta a sua bandeira —e foi eleito.
Adams Carvalho/Folhapress
Ilustração em estilo realista preta e branca. No primeiro plano, há um rato e, no fundo, uma roda de exercícios para roedores parada no chão.
Como toleramos tamanha excrescência? Admitir que uma pessoa que aplaude torturadores seja nosso presidente porque fará reformas econômicas necessárias é como levar os filhos num pediatra sabidamente pedófilo porque é um médico competente. “Abusou do meu filho? Sim, abusou, é o jeitão dele, mas a febre, ó, baixou que é uma beleza!”.
A maior crise que enfrentamos, globalmente, não é a pandemia de coronavírus e nem a recessão mundial que ela provavelmente trará, ambas passarão: é uma crise de valores. Valores estes que os próprios ostrogodos que nos desgovernam fingem defender. O sujeito que repete como um papagaio “Brasil acima de tudo” incentiva manifestações no meio de uma pandemia e mesmo estando em quarentena, sai do palácio e dá a mão para centenas de aduladores. Coloca em risco, assim, a vida de milhares de brasileiros. O mesmo sujeito que repete como um autômato “Deus acima de todos” rasga os evangelhos toda vez que abre a boca ou faz arminha com a mão.
Escrevi na última crônica que a quarentena, turbinada pelas redes sociais e suas fake news, iria mandar o mundo de vez para a cucuia. Depois de dez dias em casa, porém, a sensação tem sido outra. É cedo pra fazer qualquer previsão, as notícias mudam a cada hora e ninguém sabe o que nos aguarda, mas existe uma chance de ouro de que este circuit breaker global faça com que paremos de correr como ratinhos numa roda de egoísmo e imbecilidade e nos dediquemos a alguma reflexão.
Precisamos repensar profundamente a sociedade. Não falo aqui da idade mínima para aposentadoria de tal ou tal categoria ou das alíquotas de imposto de renda desta ou daquela faixa de remuneração. Tais discussões são importantes, é claro, mas antes delas temos que recriar uma linha entre o que é tolerável e o que é intolerável. Antes dos marcos regulatórios, temos que estabelecer os marcos civilizatórios.
Por tudo que nos ameaça, 2020 pode entrar para a história como o pior ano das nossas vidas. O que significa que, depois dele, as coisas devem melhorar. Não se trata de otimismo, mas de instinto de sobrevivência. Se não trocarmos o ódio e a violência pela esperança e pelo amor, já, a humanidade não chega até a esquina. Tá ok?
Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.