Cientistas brasileiros podem fazer muito na luta contra coronavírus, mas precisam de recursos
Poucas identidades nacionais do mundo moderno são mais complicadas do que a brasileira, e poderíamos ficar aqui até amanhã citando os aspectos menos elogiáveis dela. Mas também é verdade que, em seus melhores momentos, os brasileiros são mestres em transformar os limões que a vida lhes dá em limonada. Clichês não são menos reais por serem clichês.
Foi mais ou menos isso que me veio à cabeça quando tive a oportunidade de ler um novo estudo na revista científica Molecular Therapy, assinado por Mayana Zatz, Carolini Kaid e outros colegas da USP. Partindo do princípio de que o vírus da zika tem predileção especial por invadir células do sistema nervoso que estão se multiplicando com rapidez (afinal, é assim que ele acaba causando danos cerebrais em fetos durante a gestação), as pesquisadores decidiram usá-lo para atacar tumores do cérebro, os quais são difíceis de tratar e se multiplicam rápido, tal como outros tipos de câncer.
Nessa pesquisa recente, a abordagem aumentou significativamente a expectativa (e a qualidade) de vida de cães já idosos, que tinham desenvolvido cânceres cerebrais de forma espontânea. A ação do vírus pareceu quase teleguiada, atacando os tumores e deixando os neurônios normais intactos. São resultados que podem guiar, no futuro, um teste da tática em seres humanos.
O estudo que acabo de descrever é apenas um dos muitos exemplos de como cientistas brasileiros reagiram com criatividade e perspicácia ao desafio representado pela zika. Diante de uma emergência de saúde pública que, a princípio, ninguém estava conseguindo entender direito, eles desvendaram as causas do problema, jogaram no lixo teorias da conspiração estapafúrdias (como a de que a doença seria causada por vacinas estragadas) e provavelmente salvaram um número considerável de vidas.
Tudo isso nos leva à pergunta mais óbvia de todas: onde está o esforço coordenado para financiar a geração de conhecimento sobre o novo coronavírus no Brasil? É indiscutível que os recursos emergenciais destinados às pesquisas sobre a zika surtiram efeito. Por que não replicar o modelo bem sucedido de anos atrás? Enquanto a pergunta fica no ar, novos cortes de bolsas atingem os pesquisadores brasileiros, num cenário que já conta com menos da metade do financiamento federal que existia em 2013.
Nas últimas décadas, antes que o estado de crise econômica se tornasse uma constante, o país formou muita gente qualificada para trabalhar com biologia molecular, justamente a área mais importante para enfrentar o desafio de um novo vírus. Provavelmente não seria viável transformar os laboratórios das universidades públicas em fábricas de diagnóstico do coronavírus – nem todos estão equipados a contento, e os padrões dos testes em escala industrial são diferentes dos da pesquisa básica. Mesmo assim, seria possível saber muito mais sobre o que o vírus faz e como ele se espalha se esse exército de cientistas de alto nível fosse convocado para a batalha de maneira coordenada. E, numa hora como esta, vale em dobro a máxima de que conhecimento é poder.
Falta dinheiro? Falta, mas falta ainda mais visão estratégica. Nióbio e grafeno, soja e boi, valem bem menos do que um bom biólogo nessas horas, e valerão ainda menos na economia do conhecimento que, cada vez mais, rege o mundo. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
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