sexta-feira, 20 de março de 2020

Dilema na grande gripe, Ruy Castro, FSP


O acaso gerou um dilema na Folha de quarta última (18). Neste espaço, escrevi sobre a gripe espanhola, que, entre setembro e novembro de 1918, matou cerca de 50 milhões de pessoas no mundo. E aproveitei para esclarecer que o presidente Rodrigues Alves (1848-1919) não foi uma de suas vítimas. No mesmo caderno, o leitor se deliciou com a coluna de Elio Gaspari, em que ele simula uma carta de Rodrigues Alves a Jair Bolsonaro e, em certo momento, faz Alves dizer: "Eu deveria ter voltado à Presidência em 1918, mas peguei a gripe espanhola e morri". E agora?
Leitores escreveram perguntando quem tinha razão. Alguns tomaram partido por um ou outro colunista e uma ou outra versão. Afinal, segundo as enciclopédias e wikipédias, Rodrigues Alves morreu da gripe. Mas ouso discrepar.
Em 1916, Alves era governador de São Paulo quando a recorrência de um beribéri obrigou-o a passar o cargo para seu vice, o advogado Carlos Augusto Pereira Guimarães. Alves sabia de seu estado e já antevia o fim da carreira política, mas foi convencido por seu partido, o PRP (Partido Republicano Paulista), a disputar a Presidência. Elegeu-se em 1º de março de 1918 e preparou-se para a posse em 15 de novembro.
Seus problemas renais, respiratórios, gastrointestinais, musculares e de memória, consequências do beribéri, se agravaram durante o ano. Às vésperas da posse, muito debilitado, transferiu-a para seu vice, Delfim Moreira. Àquela altura, a espanhola já estava indo embora do Rio. Mas Alves contraiu uma gripe benigna, que piorou sua condição. Morreu em 19 de janeiro de 1919, quando a espanhola já desaparecera e a cidade, rediviva, se atirava freneticamente ao Carnaval.
Significa que tanto eu como Elio estávamos certos. Elio fez Alves dizer: "Peguei a espanhola e morri". Não disse que ele morreu DA espanhola. A espanhola matava em quatro dias —e Alves levou um ano para morrer.
O presidente Rodrigues Alves (1848-1919), que pegou a gripe espanhola e morreu - Palácio do Planalto/Divulgação
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Epidemia ou fiasco do século?, FSP



Em guerras, quase sempre vence quem tem as melhores informações.



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John Ioannidis é um epidemiologista de primeira, acostumado a nadar contra a corrente. O “paper” em que mostrou que a maioria das conclusões de artigos científicos está errada se tornou um clássico instantâneo.
Ioannidis acaba de publicar outro texto polêmico, agora sobre a Covid-19. Ele diz que podemos tanto estar diante da maior pandemia como do maior fiasco científico do século. Não temos informação suficiente para julgar.
Sabemos que o número de pessoas que foram infectadas está subestimado, mas não temos ideia da escala. Pode ser por um fator 3 ou 300 —e isso faz toda a diferença, não apenas para o cálculo de taxas realistas de letalidade e de complicações.


O jornal L'Eco di Bergamo publicou dez páginas com obituários na edição de 13 de março - Reprodução
A estratégia de enfrentar a epidemia com medidas duras de isolamento social faz todo o sentido se a virtual paralisação das atividades for por um período relativamente breve. Se paramos por dois ou três meses e o vírus sai de circulação ou a população já foi tão exposta ao contágio que a imunidade de rebanho aparece, vencemos. Mas, se isso não acontece, manter as curvas epidemiológicas achatadas para proteger os sistemas de saúde pode exigir vários meses ou anos de “shutdown”. Aí o remédio pode ter consequências piores do que a doença.
Acho que Ioannidis errou no tom do artigo. Um de seus argumentos é o de que a taxa real de letalidade da Covid-19 pode não ser maior do que a da influenza sazonal. Mas basta olhar para a Itália para ver que não estamos diante de uma gripe comum. A forma como as pessoas morrem faz diferença para a sociedade. Congestionamento de cadáveres é algo que não toleramos.
O autor, porém, tem razão em cobrar dados melhores, até porque são em tese fáceis de obter, com a realização de testes aleatórios (e não só em doentes) em amostras representativas da população dos países onde a epidemia está mais madura.
Em guerras, quase sempre vence quem tem as melhores informações.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

O QUE A FOLHA PENSA Negócio da China

Eduardo fomenta tensão diplomática enquanto se necessita de cooperação global

  • 20
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - Bruno Santos - 11.out.19/Folhapress
Entre as coisas de que o Brasil menos precisa neste momento de crise e incerteza é um entrevero com nosso maior parceiro comercial. Foi exatamente o que logrou produzir o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), ao veicular mensagens responsabilizando a China pela pandemia da Covid-19.
Na quarta (18), o parlamentar, filho do presidente da República e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, endossou a acusação de que a culpa pela disseminação global do novo coronavírus pertence ao Partido Comunista Chinês, comparando o caso ao acidente nuclear de Tchernóbil, ocorrido em 1986.
No dia seguinte, tentou dar nova interpretação a suas palavras, mas o problema já estava criado.
A resposta à fanfarronice foi drástica. Em tom de agressividade inusual na linguagem diplomática, o embaixador do país asiático declarou que as falas do deputado “são um insulto maléfico contra a China e o povo chinês”, que vai ferir a relação amistosa entre os dois países.
O vice-presidente, Hamilton Mourão, buscou aplacar o mal-estar afirmando que as declarações de um deputado não refletem a opinião do governo. Na contramão desse esforço, e certamente em busca de agradar ao chefe, o chanceler Ernesto Araújo divulgou nota em que pediu a retratação do embaixador chinês.
Publicadas no mesmo dia em que Jair Bolsonaro enfrentou protestos em diversas cidades do país, as mensagens do filho parecem ter o objetivo de excitar a militância bolsonarista das redes sociais, mirando um alvo também da predileção do americano Donald Trump.
Não que inexistam motivos para criticar o comportamento da China desde o surgimento do novo vírus. Parece claro que a ditadura agiu, no mínimo, de forma negligente nas primeiras semanas do surto, minimizando a importância da infecção e calando profissionais de saúde que alertavam para os perigos da doença.
Hoje, contudo, tendo controlado a epidemia, o país adquiriu um papel proeminente no auxílio a outras nações assoladas pela enfermidade —numa atitude em que não faltam pretensões geopolíticas.
Ao se comportar como parlamentar nanico, Eduardo Bolsonaro não só atrapalha uma parceria que proporcionou US$ 65 bilhões em exportações no ano passado como indispõe o Brasil com o governo chinês numa hora em que se necessita de cooperação global.