quinta-feira, 12 de março de 2020

No debate do Fundeb, não faz sentido congelar a Constituição em um só modelo, FSP

Garantia de direitos não é sinônimo de gestão estatal de serviços

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O debate em torno do Fundeb está em pauta no Congresso. Ele não diz apenas respeito ao financiamento da educação brasileira, mas também à definição sobre como se fará a gestão de nossas escolas. Isto é: como se fará para garantir que o direito à educação básica, inscrito na Constituição, seja efetivo.
Há temas que mereceriam especial atenção no parecer apresentado pela deputada Professora Dorinha, relatora da PEC do Fundeb. Um deles é a determinação de que no mínimo 70% dos recursos do fundo sejam aplicados, nos estados e municípios, no pagamento de “profissionais da educação em efetivo exercício”.
Escola na zona rural de Monteiro Lobato (SP)
Escola na zona rural de Monteiro Lobato (SP) - Rafael Hupsel - 17.ago.18/Folhapress
Mais do que criar um engessamento impróprio para um país continental e diverso como o Brasil (como saber se daqui a dez anos, nos 5.570 municípios brasileiros, será esse o percentual requerido?), a redação parte da premissa, que parece implícita no projeto, de que a oferta da educação básica será necessariamente estatal.
Caso aprovada, teríamos uma contradição com o artigo 213 da Constituição, que trata do uso dos recursos públicos para a educação. O parecer sugere que o referido artigo trata a gestão via parcerias com o setor publico não estatal (escolas filantrópicas, confessionais e comunitárias) como “exceção”, e não como uma possibilidade aberta aos gestores das redes públicas de educação.
Há um claro equívoco aí. As restrições estabelecidas pelo constituinte para esse tipo de gestão por contratos são bastante precisas e dizem respeito à natureza filantrópica, isto é, sem fins lucrativos, das instituições. A condicionante mencionada no parecer, relativa à falta de vagas nas redes públicas, diz respeito ao mecanismo de oferta de bolsas de estudo.
De modo resumido, a Constituição determina que modelos de bolsas (ou “voucher”) são excepcionalidades. Parcerias e contratos de gestão com instituições sem finalidade lucrativa são uma opção aberta aos gestores públicos.
É este o sentido dado pelo artigo 213: recursos serão destinados ao sistema A, podendo ser dirigidos ao sistema B. Fosse o contrário, o constituinte o teria explicitado. Como ocorreu com a saúde pública. O artigo 199 da Constituição prevê que as instituições privadas poderão participar “de forma complementar” do Sistema Único de Saúde.
No âmbito da educação, o modelo é misto, estatal ou não estatal, desde que com escolas sem fins lucrativos. A questão central é saber como essa escolha será feita. É com isso que deveríamos nos preocupar. Em saber o que funciona, a partir do que a Constituição faculta, em vez de tentar fixar a qualquer custo o monopólio deste ou daquele modelo de gestão.
Modelos de gestão evoluem através do tempo. O Brasil é exemplo disso. Após a Constituição de 88, criamos a lei das concessões, em 1995; das organizações sociais, em 1998; das PPPs, em 2004, e ainda recentemente instituímos o novo marco da sociedade civil, com a lei 13.019/14, que permite um amplo espaço de colaboração entre setor público e o terceiro setor.
Ou seja, o próprio ordenamento legal brasileiro evoluiu, ao longo das últimas três décadas, gerando novas alternativas de gestão. Essas alternativas são usadas hoje na saúde pública, área ambiental, social, saneamento básico e virtualmente em todas as atividades que não integram as chamadas funções exclusivas de estado.
Por que essas alternativas deveria ser excluídas, prima facie, da educação? Com base em que evidência empírica? Não me parece que elas viriam dos ótimos resultados que nosso modelo de monopólio estatal vem apresentando, não é mesmo?
Congelar um modelo de gestão da educação pública no texto da Constituição é um equívoco para o país. Garantia de direitos não é sinônimo de execução estatal de serviços, nem o seu contrário. Precisamos estar abertos ao que se passa no mundo, saber o que funciona, observar dados empíricos não apenas na teoria, mas na prática.
Reescrever desse jeito a Constituição brasileira é uma enorme precipitação. O Congresso deveria refletir sobre isso.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Desmistificando o debate sobre o DPVAT, FSP

Chega a ser criminoso abrir mão de um mercado já estabelecido

Aos trancos e barrancos, havíamos conseguido distribuir amplamente na sociedade um seguro da mais alta relevância. Fomos vitoriosos na criação de um formidável sistema de solidarização entre os proprietários de veículos automotores e as vítimas dos acidentes de trânsito, como se sabe uma das principais causas de mortalidade no país.
Essa proeza foi obtida ao longo de quatro décadas graças ao conhecido seguro obrigatório de danos pessoais causados por veículos automotores de vias terrestres, o DPVAT. Não faltavam críticas aos abusos imensos que inúmeras entidades e pessoas cometiam, desviando os recursos financeiros formados por esse seguro.
O advogado Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) - Raquel Cunha - 21.ago.14/Folhapress
Entidades representativas do setor segurador, dos corretores de seguro e a própria autarquia federal responsável por vigiar as operações de seguro (Susep) aproveitaram da viúva. Vendo a torneira aberta, o próprio Estado transformou-se em Robin Hood e cuidou de pegar um pouco para financiar o sistema de saúde pública. Era realmente urgente colocar ordem na casa.
Estranhamente, a nova administração da Susep, de quem se esperava buscar a mais ampla proteção da sociedade ou, no mínimo, o aproveitamento da distribuição promovida pelo DPVAT, com a redução dos custos de transação —um dos dogmas mais importantes para o liberalismo econômico— tentou enterrar esse seguro. Quase conseguiu, falta a pá de cal. Não se sabe se o argumento ingênuo utilizado pela Susep —a corrupção interna do DPVAT, que distribuía altas remunerações a advogados e fatias para entidades estranhas ao negócio— foi realmente o motivo da tentativa de extinção do seguro, ou se o governo apenas buscou apropriar-se dos fundos bilionários de reservas e provisões. Afinal, de quem apenas quer matar a erva daninha não se espera que derrube a árvore toda.
Os consumidores do DPVAT estavam acostumados a adquirir a cobertura. A compra do seguro capaz de proteger as vítimas do trânsito já se tornara um negócio socialmente aceito para os milhões de proprietários de veículos do país. Ninguém ficou mais feliz ou aliviado porque passou a economizar míseros R$ 10 por ano.
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Seria muito mais justo para a sociedade e lucrativo para os empresários do seguro que o governo matasse a erva daninha e aproveitasse a deixa para tornar frondosa a árvore combalida, passando a oferecer indenizações muitas vezes superiores aos míseros R$ 15 mil pagos por uma morte e adotado medidas para recuperar parte dos saques escandalosos que haviam sido feitos.
O fato mais importante, porém, é que as autoridades estão perdendo a chance de aproveitar o mercado já desenvolvido, estão jogando fora a valiosíssima aceitação social da contribuição para o fundo de prêmios que pode garantir as vítimas dos acidentes viários.
Isso chega a ser criminoso num país em que nem há costume de comprar seguros facultativos de responsabilidade civil, cujas coberturas oferecidas são caras e pífias, além de sujeitar os segurados e as vítimas a discussões casuísticas que só terminam depois de muitos anos no abarrotado Judiciário.
Ernesto Tzirulnik
Advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e coordenador da comissão de juristas e técnicos que elaborou o anteprojeto da Lei de Contrato de Seguro (PLC 29/2017)
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