domingo, 9 de fevereiro de 2020

Se Deus não mente, a evolução é um fato, caro presidente da Capes, FSP

Pluralidade de pensamento é ótimo, mas é também dever do cristão procurar a Verdade com V maiúsculo

  • 17
Caro professor Benedito,
Confesso que fiquei preocupado com sua nomeação para a presidência da Capes, um dos principais órgãos de fomento à ciência no Brasil.
E não foi por causa da sua posição como homem de fé. Nesse ponto, gostaria de acreditar que o senhor e eu temos muito em comum, como evangélico e católico, respectivamente. (Foi-se o tempo em que papistas e calvinistas cortavam as gargantas uns dos outros por causa de questiúnculas teológicas, graças a Deus –embora haja gente por aí que adoraria ver esses dias retornarem.)
O que me preocupa mesmo são duas outras coisas: seu histórico de defesa do chamado Design Inteligente —um criacionismo repaginado— como alternativa à teoria da evolução e, o que me soou pior ainda, o tom do texto publicado no site da Capes assim que o senhor assumiu suas novas atribuições, sob muitas críticas.
O texto fala, em seu nome, da importância da “pluralidade de pensamento” e da “liberdade de cátedra”. Quem poderia ser contra essas coisas, não é mesmo? Dizem, porém, que o Diabo mora nos detalhes –ou, nesse caso, no subtexto do que está sendo dito.
Pluralidade de pensamento é ótimo, mas é também dever do cristão (e de todo ser humano) procurar a Verdade com V maiúsculo. E isso me leva a Galileu Galilei (1564-1642).
O sábio italiano, em seu diálogo (e, mais tarde, confronto) com as autoridades religiosas, refinou a metáfora medieval dos dois grandes Livros que nos guiam –as Escrituras, de um lado, e o Livro da Natureza, de outro. A premissa por trás dessa ideia é que Deus não é mentiroso (nisso decerto concordamos, mais uma vez), nem é mentirosa a nossa razão quando buscamos ler ambos os livros de coração aberto.
Benedito Guimarães Aguiar Neto, reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, escolhido agora novo presidente da Capes (05/11/2019) - Reinaldo Canato / Folhapress
Portanto, se os Livros parecem estar se opondo, o problema não está neles, mas na incapacidade humana de interpretá-los. Bem, os últimos séculos de trabalho científico cuidadoso e abnegado, realizado tanto por homens de fé quanto por não crentes, mostraram duas coisas:
1)Os relatos das Escrituras sobre a criação do Universo e dos seres vivos não são manuais precisos de cosmologia, geologia e biologia (até porque se contradizem), mas foram compostos para explicar o significado da relação do Cosmos e do homem com Deus para o povo de Israel;
2)A seleção natural e outros mecanismos explicam de modo convincente como as formas de vida surgiram e se diversificaram por meio de leis naturais;
3)É perfeitamente possível crer que tais leis derivam, em última instância, do Deus que os antigos israelitas adoravam como Criador. Mas essa hipótese não é passível de teste empírico: o que nossos sentidos e nossa razão podem observar são as leis naturais. E elas não exigem um Deus “engenheiro”, que teria precisado enfiar porcas e parafusos na dupla hélice do DNA para que ela funcionasse.
É seu direito acreditar no que quiser, professor. Mas a defesa do neocriacionismo parece trair certa incapacidade de seguir as evidências aonde quer que elas levem —vale dizer, de crer na veracidade do Livro da Natureza.
O que me perturba é que outros evangélicos alçados a posições de comando pelo atual governo parecem manifestar o mesmo problema. O Livro da Natureza costuma ser implacável com quem se recusa a lê-lo. Vêm-me à cabeça as palavras terríveis de Estevão diante da multidão em Jerusalém: agir assim é coisa de “homens de dura cerviz, incircuncisos de coração e de ouvidos”. E isso há de lhes ser cobrado.
Reinaldo José Lopes
Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Geringonça, construção improvável, FSP

Livro conta a história da coalizão de esquerda que governa Portugal

  • 4
A moeda única promoveu fortíssima queda do custo de capital na periferia da Europa. Grego, espanhol e português passaram a pagar juro de alemão.
A queda do custo do capital gerou um ciclo de crédito e de endividamento público e privado na periferia da Europa. A crise na região na década de 2010 obrigou a um forte ajuste fiscal nesses países.
As dificuldades econômicas dos países da periferia do euro e o sinal de que não havia inflação na Europa fizeram com que, em julho de 2012, o então presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, se comprometesse a prover toda a liquidez necessária para salvar a união monetária.
A mudança da política monetária e o ajuste fiscal na periferia reduziram o prêmio de risco pago pelos títulos de dívida desses países.
Em Portugal, o governo conservador do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho pilotou o ajuste fiscal e arrumou a casa que o socialista José Sócrates, que o antecedeu, deixara bem desarrumada.

Passos assumiu com a economia já em queda. De 2011 a 2015, o desempenho da economia portuguesa foi ruim. A taxa média de crescimento foi de -1% ao ano. No entanto, em 2015 os sinais de recuperação eram claros: crescimento de 1,8%. O deserto havia sido transposto.
O primeiro-ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho - Rafael Marchante - 4.mai.2014/Reuters
Nas eleições legislativas de final de 2015, a coalizão conservadora, que liderou o país no ajuste, teve a maior votação: 36%, ante 32% do Partido Socialista (PS). Caminhava-se para que a coalizão conservadora continuasse a governar o país.
No entanto, a esquerda fez maioria. O PS, o Partido Comunista Português (PCP), e o bloco de esquerda (BE), espécie de PSOL lusitano, somaram 122 cadeiras no Parlamento de 230.
A extrema esquerda portuguesa, PCP e BE, é contrária ao capitalismo, à união monetária, à União Europeia e mesmo à participação de Portugal na Otan. O PCP e o BE não eram considerados parceiros sérios para compor um governo.
O PCP iniciou um processo de mudança. Aparentemente, em razão da necessidade de participar 
de um governo, dados o enfraquecimento dos movimentos sindicais e a necessidade de cargos para a sua burocracia, houve um aggiornamento do velho partido comunista.
O líder socialista António Costa enxergou a oportunidade que os sinais da liderança comunista emitiam e se formou essa inesperada coalização, por isso “geringonça”, que governa Portugal e que foi renovada 
nas eleições do ano passado.
Apesar de fazer concessões ao corporativismo dos servidores públicos —salários foram elevados e a jornada de trabalho foi reduzida—, o ajuste fiscal foi mantido. Evidentemente, comprometeu-se a capacidade de investimento do Estado português.
António Costa, durante campanha eleitoral em 2015 - Francisco Leong-27.set.2015/AFP

António Costa operou muito bem e não se furtou ao exercício da política. Sempre que a esquerda radical exagerava, contava com a direita para manter o ajuste.

O momento crítico de seu governo foi em março de 2019, quando o Congresso iria votar a incorporação de inúmeros benefícios aos professores. Essa medida quebraria o Estado.
A direita resolveu jogar para a plateia e se juntou à extrema esquerda no apoiou à pauta-bomba.

O PS acompanhou o primeiro-ministro na manutenção da estabilidade fiscal. O primeiro-ministro, em discurso à nação, afirmou que, se a medida fosse aprovada, o gabinete cairia.
O povo português percebeu a importância de manter o equilíbrio fiscal e apoiou o primeiro-ministro. A direita recuou e saiu bem chamuscada do evento. Logo ela que tinha arrumado a casa.
A história está contada no volume “A Geringonça”, de Inês Serra Lopes. Há edição para Kindle.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.