sábado, 8 de fevereiro de 2020

Se houvesse justiça, Adam Sandler ganharia o Oscar por 'Joias Brutas', João Pereira Coutinho, FSP


Mais uma vez, o maior evento de cinema do mundo esqueceu os melhores filmes do ano



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É uma tradição que se repete: quando o Oscar aparece no radar, os melhores filmes do ano não são indicados a categoria de melhor filme do ano.
Em 2019, a Academia deixou de fora “The Mule”, colheita madura de Clint Eastwood, e premiou... eu poderia ir consultar no Google, mas o mais curioso é que, de cabeça, sem ajudas, não me recordo do melhor filme. Pausa. Foi “Green Book – O Guia”. Risadas? 
Em 2020, repetição do crime. Em dose dupla. Sim, “O Irlandês” é o melhor Scorsese dos últimos, digamos, 25 anos (desde “Cassino”). Mas onde estão “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick, e o absurdamente genial “Joias Brutas”, dos irmãos Benny e Josh Safdie? 
Sobre Malick, prometo escrever em breve, quando o filme estrear no Brasil (dia 27 de fevereiro, leitor; anote na agenda). 
Sobre “Joias Brutas”, disponível na Netflix, escrevo agora, ainda em transe, depois de assistir a esse filme igualmente em transe. 
É a história de Howard Ratner (Adam Sandler), um negociante de joias em Nova York. A primeira vez que o vemos, ele está em posição fetal numa colonoscopia. Não é o melhor cartão de visitas, mas a mensagem, de dez segundos, é eficaz: eis o homem. Ou melhor dizendo, eis o vira-lata que todo mundo agride e ofende, porque Howard também não ajuda na própria reputação. 
A vida dele é uma espécie de esquema Ponzi em movimento, com empréstimos que cobrem empréstimos para cobrir outros empréstimos –um labirinto onde ele vai entranhando e perdendo. 
O mesmo na vida pessoal: o casamento já não funciona, mas ele quer que funcione. A amante funciona, mas ele quer que não funcione, antes de mudar de opinião. 
E ainda existe um familiar e dois jagunços que passam todo filme a tentar quebrar cada osso do seu corpo fugitivo. Querem o dinheiro que Howard lhes deve, mas o protagonista persiste em fazer apostas com o dinheiro dos outros. São apostas certeiras, que nunca verdadeiramente acertam no alvo. 
Felizmente, Howard tem um plano para se salvar do caos paradoxal e existencial: vender uma joia que ele adquiriu, por métodos clandestinos, na Etiópia profunda. 
A joia chega a Nova York na barriga de um peixe e Howard acredita que, em leilão, a preciosidade irá ultrapassar o milhão de dólares que ele necessita para pagar aos credores e, como se diz nas novelas, começar uma nova vida. A sorte protege os audazes, certo?! 
Sem dúvida. Mas esse pensamento, provavelmente do romano Virgílio, não se aplica a um judeu como Howard –e o filme dos irmãos Safdie é judaico até ao tutano. 
Quando assistia à odisseia cômica, não pude deixar de pensar em George Steiner, que morreu dias atrás e deixou uma observação primorosa sobre a grande diferença entre esquerda e direita. 
A esquerda, dizia Steiner, não acomoda o trágico; todas as suas ações são postas ao serviço da esperança –somos nós, pelos nossos esforços racionais, que podemos construir o paraíso na Terra. 
A direita, pelo contrário, sabe que a dimensão trágica da vida é inexpugnável. Porque haverá sempre uma margem de contingência que não controlamos –a sorte que não temos, a complexidade do mundo que não abarcamos, os atos imprevistos de terceiros etc– e que podem subverter as nossas melhores intenções. 
É uma boa observação, repito, mas que também pode ser aplicada ao mundo gêntio e ao judaico. Nesse sentido, Howard comporta-se como um gêntio–, indo de desastre a desastre, sem nunca perder o entusiasmo, como dizia Churchill na sua imbatível definição de sucesso. 
Mas a realidade é judaica. O destino, sempre jocoso, terá sempre a última palavra. 
Se houvesse justiça no mundo, “Joias Brutas” seria celebrado como um dos mais importantes filmes do cinema contemporâneo. E Adam Sandler, já agora, teria o que não teve em 2002, com “Punch-Drunk Love”: o Oscar de melhor ator. 
Mas isso seria pedir que o mundo fosse perfeito. Depois de assistir a “Joias Brutas”, só acredita nessa fantasia quem sofre do otimismo incurável de Howard.  
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Celso Ming American Factory’: mais do que choque de culturas, OESP

Celso Ming, O Estado de S.Paulo
07 de fevereiro de 2020 | 18h45

Se tratasse apenas dos enormes conflitos entre as culturas dos Estados Unidos e da China, o longa-metragem American Factory, veiculado pela Netflix, forte candidato ao Oscar na categoria de Melhor Documentário, já seria excelente testemunho das forças mais profundas que movem os dois maiores países do mundo. Mas é mais do que isso. É testemunha do admirável mundo novo que envolve as relações de trabalho num ambiente global de mudanças alucinantes.
Primeira produção do gênero do casal Obama, o documentário é também uma fusão de dois filmes. Começa em dezembro de 2008 com um The End, com as cenas que mostram a produção do último veículo a sair da linha de montagem de uma fábrica da GM na cidade de Moraine, Ohio, Estados Unidos. É um ambiente confrangedor que deixará 2,4 mil desempregados, registrado num curta-metragem editado em 2009, The last truck: Closing of a GM Plant.
As instalações dessa planta permaneceram fechadas por seis anos, até serem compradas em 2016 pela chinesa Fuyao, destinadas então à produção de peças de vidro para veículos. O novo empreendimento foi festejado pela população local como salvador de milhares de empregos. E, assim, as cenas do curta, aproveitadas pelos diretores Julia Reichert e Steven Bognar, emendam na narrativa do que se segue no segundo filme.
Os conflitos não demoram a aparecer. Os operários americanos não conseguem acompanhar o ritmo de produção dos chineses. Em vez de lucro, a fábrica começa a dar prejuízo, para contrariedade do presidente do grupo, o milionário chinês Cao Dewang, um cara ambicioso, tão hábil quanto sincero. Um dos diretores de confiança do chairman dá lá suas explicações pelos contratempos, pela perda de materiais e pelos novos problemas com a têmpera dos vidros: operário americano tem dedos grossos, quando criança é mimado demais, quer direitos demais, faz o que quer, estranha quando a atividade exige dedicação e disciplina.
Cena do documentário American Factory
Cena do documentário 'American Factory' Foto: Netflix
Quando é levado a visitar as instalações da matriz na China, o grupo de americanos acompanha com perplexidade o jeito de trabalhar dos chineses, o envolvimento dos operários com o cumprimento das metas e a emoção com que cantam perfilados o hino da firma.
Logo, o entusiasmo dos americanos, manifestado com a volta dos empregos, vai sendo substituído por desencanto. A mobilização pela criação de um sindicato que se encarregue de batalhar pela observância de direitos e obrigações sociais da empresa acaba frustrada até mesmo por uma votação interna dos assalariados.
Mas, lá pelas tantas, sobrevém inesperado fato novo que se mostra capaz de engolir os conflitos de cultura e a movimentação por reivindicações trabalhistas. Trata-se da automação, que despede três funcionários onde trabalham quatro.
O filme é mais do que o relato de um choque cultural entre duas maneiras de enfrentar a economia e a vida. Amplia sua visão para a grande revolução do mercado do trabalho que ajuda, sim, a explicar o ressentimento das classes médias ao redor do mundo, a eleição do presidente Trump e a guerra comercial entre Estados Unidos e China. Mas vai além. Avisa que as relações de produção terão de enfrentar o que vem depois da robotização pura e simples, cujas consequências mal estão sendo imaginadas.
Ninguém conseguirá parar a automação, a indústria 4.0, a inteligência artificial, o impacto da impressora 3D, os algoritmos, o uso de aplicativos em profusão. São esquemas altamente poupadores de mão de obra, que não reivindicam nem férias, descanso semanal, participação nos lucros nem auxílio-maternidade.
(Perde o sentido, por exemplo – e isso não está no filme –, exigir vínculo trabalhista entre a Uber e os condutores dos veículos se a própria Uber já avisou que estão próximos os tempos em que seus veículos circularão sem motoristas.)
Importante foco de debates já é, por si só, a questão de como ficará tanta gente desempregada e sem ganha-pão. Mas não é preciso apelar para o lado social do novo arranjo. Pode-se perguntar até mesmo para gente de coração de pedra que mercado terão as empresas, mesmo as excelentemente administradas, se os consumidores não terão mais renda para comprar seus produtos.
Embora extrapole seu objetivo imediato, esse documentário rodado numa pequena cidade de Ohio acaba puxando para questões que envolvem o futuro do capitalismo e do sistema produtivo global.

Fábio Luís Lula da Silva e o peso de um sobrenome, FSP


Marco Aurélio de Carvalho
Poderia ser apenas a história de um garoto apaixonado por videogames, que precocemente é convidado a escrever sobre o assunto para jornais importantes, quando quase ninguém falava a respeito. Enquanto muitos outros não deram importância, ele percebeu o nascimento de uma poderosa indústria.
Cursou a faculdade. Decidiu empreender. Criou um programa de TV sobre o mundo dos jogos, que disputou, inclusive, o primeiro lugar no Ibope em seu segmento. Mudou-se para dentro da empresa, correu atrás de investidores para financiar os custos crescentes do negócio, fez empréstimos para comprar equipamentos.
O negócio prosperou. Chegou a ter 200 funcionários e clientes importantes como Microsoft, Sony, Hyundai, AMD, Sadia, Warner Games e Cinemark. A indústria de games é uma das que mais crescem no mundo e já é maior do que Hollywood.
Essa poderia ser apenas mais uma história de empreendedorismo, dessas que a mídia gosta de apresentar como exemplo de inspiração e perseverança. Mas o garoto em questão, hoje nos seus 40 anos, se chama Fábio Luís Lula da Silva. É filho do ex-presidente Lula.
Sua empresa, a Gamecorp, nunca foi apresentada como bom exemplo de nada. Vem sendo massacrada há mais de 15 anos, desde que a reportagem de uma revista a colocou no centro de um suposto esquema de favorecimentos. Era 2006, e Lula, o pai, disputava a reeleição presidencial como franco favorito.
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Visita do ex-presidente à sede do Grupo Gol, em 2011. Da esqueda para a direita: Lula, Kalil Bittar, Fernando Bittar (ao fundo), Lulinha e Jonas Suassuna.
Visita do ex-presidente à sede do Grupo Gol, em 2011. Da esqueda para a direita: Lula, Kalil Bittar, Fernando Bittar (ao fundo), Lulinha e Jonas Suassuna. - Divulgação
Diga-se desde logo que as acusações nunca foram provadas. Após uma devassa conduzida pelo Ministério Público Federal, o processo foi arquivado por falta de provas a pedido dos próprios procuradores federais.
Poderia ser um recomeço, um atestado de idoneidade. Poderia. Desde a reportagem original da revista, entretanto, considerando apenas os três mais importantes jornais de circulação nacional, a Gamecorp apareceu em mais de 600 notas e reportagens, uma por semana em média, quase sempre apresentada como “suspeita” ou “culpada”. Não há empreendimento no mundo que resista.
E agora começa tudo novamente. No final do ano passado, o Ministério Público voltou à carga em uma nova fase da Operação Lava Jato, que resultou na apreensão de documentos e computadores em endereços de sócios de Fábio Luís. O começo de uma nova devassa.
Pela lei, o material apreendido deveria ser mantido em sigilo, para preservar a investigação e a vida dos investigados ou pelo menos para que fosse devidamente analisado.
Segundo notícias recentes, os promotores “suspeitam” que o ex-executivo Otávio Azevedo tenha omitido informações em sua delação premiada sobre supostos pagamentos da Oi, empresa controlada pela Andrade Gutierrez, para viabilizar a compra do imóvel de Atibaia.
A própria Justiça confirmou, no entanto, que o verdadeiro dono do sítio, Fernando Bittar, o adquiriu com recursos provenientes de seu pai. Tudo devida e fartamente comprovado.
O mais curioso é que a delação de Otávio Azevedo foi apresentada pelo Ministério Público como uma das maiores conquistas da Lava Jato. É de se pensar o porquê, de só agora, anos depois, os aguerridos promotores ainda terem “suspeitas”, contra, inclusive, extensa documentação probatória em sentido contrário.
As torneiras estão abertas, irrigando as Redações. Neste momento, a mídia está sendo abastecida por uma nova safra de suspeitas. Fragmentos do material apreendido vêm sendo metodicamente vazados para os principais veículos de imprensa há quase três semanas, dia sim, dia não.
Já apareceram rabiscos sobre a ideia de um time de futebol em Cuba, rascunhos de um gibi, cópias de emails e até os comprovantes de um empréstimo regular, obtido junto ao BNDES numa linha de crédito para pequenos empresários.
De acordo com o site do próprio BNDES, existem centenas de milhares de empresas em situação similar. Trata-se de um crédito rotativo e pré-aprovado pelo banco emissor, para aquisição de produtos e serviços credenciados. As empresas beneficiárias, entre outros requisitos objetivos, devem estar em dia com INSS, FGTS, Rais e demais tributos.
O que chama atenção é que, no caso em questão, o crédito foi utilizado para compra de equipamentos para atividades de uma empresa cuja própria existência já foi questionada.
As operações do BNDES, é bom que se diga, foram submetidas, nos últimos anos, a duras auditorias, e nada de irregular foi apontado.
Relações negociais conhecidas por órgãos de fiscalização e controle, para as quais os “envolvidos” deram ampla e irrestrita publicidade, são vendidas nos jornais como extraordinárias ou incomuns. Se não fosse revoltante, poderia até ser engraçado. Cada fragmento é revelado como indício, prova, suspeita.
Segundo o advogado Fábio Tofic, respeitado e combativo criminalista responsável pela defesa de Fábio Luís Lula da Silva, “o que mais admira, na verdade, é que não se aponta um único ato ou um mero gesto de Fábio para defender interesses privados no governo. Nada, absolutamente nada. Os negócios celebrados pelas empresas em questão têm indiscutíveis propósitos negociais e inequívoco significado econômico”.
Segundo ele, “essa nova safra de suspeitas e ilações vazadas sugere uma estratégia clara da força-tarefa para requentar um caso encerrado, a fim de tentar fixar artificialmente sua competência para conduzir uma nova investigação”.
Com a arrogância típica dos salvadores da pátria, alguns promotores e juízes prometeram a “cura” para a corrupção. Para se esconder daquilo que jamais poderão entregar, precisaram criar uma máquina de marketing baseada em factoides e na intimidação. Tratam de manter o ar pesado, para validar sua prática de atirar primeiro e perguntar depois.
É estarrecedor notar que o modus operandi revelado pela Vaza Jato para envolver a mídia, transformar suspeitas em fatos e ameaçar investigados ainda esteja sendo usado com tanta naturalidade. A corrupção tem muitas formas e uma delas é subverter as regras do devido processo legal.
A defesa de Fábio Luís Lula da Silva está pronta para, mais uma vez, demonstrar sua idoneidade, com fatos e provas. Primeiro nos autos do processo e depois para a opinião pública. Dentro da lei.
Não pode, não obstante, aceitar que lhe seja dado tratamento diferente do que o que se deve dar a qualquer empresário ou cidadão.
Marco Aurélio de Carvalho
Advogado, atua na defesa de Fábio Luís Lula da Silva na área tributária
Marco Aurélio de Carvalho, advogado, atua na defesa de Fábio Luís da Silva