Mais uma vez, o maior evento de cinema do mundo esqueceu os melhores filmes do ano
É uma tradição que se repete: quando o Oscar aparece no radar, os melhores filmes do ano não são indicados a categoria de melhor filme do ano.
Em 2019, a Academia deixou de fora “The Mule”, colheita madura de Clint Eastwood, e premiou... eu poderia ir consultar no Google, mas o mais curioso é que, de cabeça, sem ajudas, não me recordo do melhor filme. Pausa. Foi “Green Book – O Guia”. Risadas?
Em 2020, repetição do crime. Em dose dupla. Sim, “O Irlandês” é o melhor Scorsese dos últimos, digamos, 25 anos (desde “Cassino”). Mas onde estão “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick, e o absurdamente genial “Joias Brutas”, dos irmãos Benny e Josh Safdie?
Sobre Malick, prometo escrever em breve, quando o filme estrear no Brasil (dia 27 de fevereiro, leitor; anote na agenda).
Sobre “Joias Brutas”, disponível na Netflix, escrevo agora, ainda em transe, depois de assistir a esse filme igualmente em transe.
É a história de Howard Ratner (Adam Sandler), um negociante de joias em Nova York. A primeira vez que o vemos, ele está em posição fetal numa colonoscopia. Não é o melhor cartão de visitas, mas a mensagem, de dez segundos, é eficaz: eis o homem. Ou melhor dizendo, eis o vira-lata que todo mundo agride e ofende, porque Howard também não ajuda na própria reputação.
A vida dele é uma espécie de esquema Ponzi em movimento, com empréstimos que cobrem empréstimos para cobrir outros empréstimos –um labirinto onde ele vai entranhando e perdendo.
O mesmo na vida pessoal: o casamento já não funciona, mas ele quer que funcione. A amante funciona, mas ele quer que não funcione, antes de mudar de opinião.
E ainda existe um familiar e dois jagunços que passam todo filme a tentar quebrar cada osso do seu corpo fugitivo. Querem o dinheiro que Howard lhes deve, mas o protagonista persiste em fazer apostas com o dinheiro dos outros. São apostas certeiras, que nunca verdadeiramente acertam no alvo.
Felizmente, Howard tem um plano para se salvar do caos paradoxal e existencial: vender uma joia que ele adquiriu, por métodos clandestinos, na Etiópia profunda.
A joia chega a Nova York na barriga de um peixe e Howard acredita que, em leilão, a preciosidade irá ultrapassar o milhão de dólares que ele necessita para pagar aos credores e, como se diz nas novelas, começar uma nova vida. A sorte protege os audazes, certo?!
Sem dúvida. Mas esse pensamento, provavelmente do romano Virgílio, não se aplica a um judeu como Howard –e o filme dos irmãos Safdie é judaico até ao tutano.
Quando assistia à odisseia cômica, não pude deixar de pensar em George Steiner, que morreu dias atrás e deixou uma observação primorosa sobre a grande diferença entre esquerda e direita.
A esquerda, dizia Steiner, não acomoda o trágico; todas as suas ações são postas ao serviço da esperança –somos nós, pelos nossos esforços racionais, que podemos construir o paraíso na Terra.
A direita, pelo contrário, sabe que a dimensão trágica da vida é inexpugnável. Porque haverá sempre uma margem de contingência que não controlamos –a sorte que não temos, a complexidade do mundo que não abarcamos, os atos imprevistos de terceiros etc– e que podem subverter as nossas melhores intenções.
É uma boa observação, repito, mas que também pode ser aplicada ao mundo gêntio e ao judaico. Nesse sentido, Howard comporta-se como um gêntio–, indo de desastre a desastre, sem nunca perder o entusiasmo, como dizia Churchill na sua imbatível definição de sucesso.
Mas a realidade é judaica. O destino, sempre jocoso, terá sempre a última palavra.
Se houvesse justiça no mundo, “Joias Brutas” seria celebrado como um dos mais importantes filmes do cinema contemporâneo. E Adam Sandler, já agora, teria o que não teve em 2002, com “Punch-Drunk Love”: o Oscar de melhor ator.
Mas isso seria pedir que o mundo fosse perfeito. Depois de assistir a “Joias Brutas”, só acredita nessa fantasia quem sofre do otimismo incurável de Howard.
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