sábado, 8 de fevereiro de 2020

Celso Ming American Factory’: mais do que choque de culturas, OESP

Celso Ming, O Estado de S.Paulo
07 de fevereiro de 2020 | 18h45

Se tratasse apenas dos enormes conflitos entre as culturas dos Estados Unidos e da China, o longa-metragem American Factory, veiculado pela Netflix, forte candidato ao Oscar na categoria de Melhor Documentário, já seria excelente testemunho das forças mais profundas que movem os dois maiores países do mundo. Mas é mais do que isso. É testemunha do admirável mundo novo que envolve as relações de trabalho num ambiente global de mudanças alucinantes.
Primeira produção do gênero do casal Obama, o documentário é também uma fusão de dois filmes. Começa em dezembro de 2008 com um The End, com as cenas que mostram a produção do último veículo a sair da linha de montagem de uma fábrica da GM na cidade de Moraine, Ohio, Estados Unidos. É um ambiente confrangedor que deixará 2,4 mil desempregados, registrado num curta-metragem editado em 2009, The last truck: Closing of a GM Plant.
As instalações dessa planta permaneceram fechadas por seis anos, até serem compradas em 2016 pela chinesa Fuyao, destinadas então à produção de peças de vidro para veículos. O novo empreendimento foi festejado pela população local como salvador de milhares de empregos. E, assim, as cenas do curta, aproveitadas pelos diretores Julia Reichert e Steven Bognar, emendam na narrativa do que se segue no segundo filme.
Os conflitos não demoram a aparecer. Os operários americanos não conseguem acompanhar o ritmo de produção dos chineses. Em vez de lucro, a fábrica começa a dar prejuízo, para contrariedade do presidente do grupo, o milionário chinês Cao Dewang, um cara ambicioso, tão hábil quanto sincero. Um dos diretores de confiança do chairman dá lá suas explicações pelos contratempos, pela perda de materiais e pelos novos problemas com a têmpera dos vidros: operário americano tem dedos grossos, quando criança é mimado demais, quer direitos demais, faz o que quer, estranha quando a atividade exige dedicação e disciplina.
Cena do documentário American Factory
Cena do documentário 'American Factory' Foto: Netflix
Quando é levado a visitar as instalações da matriz na China, o grupo de americanos acompanha com perplexidade o jeito de trabalhar dos chineses, o envolvimento dos operários com o cumprimento das metas e a emoção com que cantam perfilados o hino da firma.
Logo, o entusiasmo dos americanos, manifestado com a volta dos empregos, vai sendo substituído por desencanto. A mobilização pela criação de um sindicato que se encarregue de batalhar pela observância de direitos e obrigações sociais da empresa acaba frustrada até mesmo por uma votação interna dos assalariados.
Mas, lá pelas tantas, sobrevém inesperado fato novo que se mostra capaz de engolir os conflitos de cultura e a movimentação por reivindicações trabalhistas. Trata-se da automação, que despede três funcionários onde trabalham quatro.
O filme é mais do que o relato de um choque cultural entre duas maneiras de enfrentar a economia e a vida. Amplia sua visão para a grande revolução do mercado do trabalho que ajuda, sim, a explicar o ressentimento das classes médias ao redor do mundo, a eleição do presidente Trump e a guerra comercial entre Estados Unidos e China. Mas vai além. Avisa que as relações de produção terão de enfrentar o que vem depois da robotização pura e simples, cujas consequências mal estão sendo imaginadas.
Ninguém conseguirá parar a automação, a indústria 4.0, a inteligência artificial, o impacto da impressora 3D, os algoritmos, o uso de aplicativos em profusão. São esquemas altamente poupadores de mão de obra, que não reivindicam nem férias, descanso semanal, participação nos lucros nem auxílio-maternidade.
(Perde o sentido, por exemplo – e isso não está no filme –, exigir vínculo trabalhista entre a Uber e os condutores dos veículos se a própria Uber já avisou que estão próximos os tempos em que seus veículos circularão sem motoristas.)
Importante foco de debates já é, por si só, a questão de como ficará tanta gente desempregada e sem ganha-pão. Mas não é preciso apelar para o lado social do novo arranjo. Pode-se perguntar até mesmo para gente de coração de pedra que mercado terão as empresas, mesmo as excelentemente administradas, se os consumidores não terão mais renda para comprar seus produtos.
Embora extrapole seu objetivo imediato, esse documentário rodado numa pequena cidade de Ohio acaba puxando para questões que envolvem o futuro do capitalismo e do sistema produtivo global.

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