segunda-feira, 14 de outubro de 2019

JERSON KELMAN E JOSÉ RENATO NALINI Confiabilidade das delações premiadas, FSP


Deve-se observar as limitações cognitivas do delator


Jerson KelmanJosé Renato Nalini
Num capítulo da série “Explicando - A Mente”, disponível na Netflix, ocorre o depoimento de uma mulher que foi vítima de estupro. Sentado a seu lado, o homem que não havia cometido o crime, como ficou comprovado por teste de DNA realizado 20 anos depois, mas que foi condenado e passou 11 anos numa penitenciária. Muito sem jeito, ela explica como a polícia a induziu na ocasião a “reconhecer” o inocente entre sete homens postados à sua frente.
Na sequência, vem a informação que, depois do advento do teste de DNA, centenas de condenações semelhantes foram revistas nos Estados Unidos, sendo que 70% delas haviam sido proferidas com base em testemunhos errados. Mas por que mentiram?
O surpreendente é que, em geral, não mentiram, apenas lembraram-se de forma imprecisa ou totalmente errada o que de fato havia ocorrido. Não por falha de caráter e sim porque o cérebro não funciona como um arquivo em que cada registro permanece trancado e inviolável. Ao contrário, no cérebro, cada recordação vai se modificando ao longo do tempo à medida que se acumulam novas informações, expectativas e conceitos éticos.

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O empresário Joesley Batista deixa a sede da Policia Federal, em São Paulo, após ser preso por violação do acordo de delação premiada - Leonardo Benassatto - 07.ago.18/Reuters
No Brasil, só recentemente se admitiu o uso de delações premiadas, com o cuidado de que ninguém pode ser condenado com base apenas nelas. Ou seja, é preciso acrescentar provas. Isso na teoria. Na prática, o que se vê é a supervalorização das delações, tanto pelo Ministério Público quanto pela mídia. A consequência é que, mesmo quando o acusado é absolvido, sua reputação é inescapavelmente condenada.
Tal vertente evidencia o quão acertada é a providência de se coibir excesso de protagonismo, que, até com as melhores intenções, causa manifesta injustiça. O conúbio entre alguns integrantes do Ministério Público e certas mídias faz com que a notícia de abertura de inquéritos civis e propositura de ações civis públicas cheguem ao noticiário antes de seu ingresso no Judiciário. 
Se ao Ministério Público se conferiu um status qualificado, que o converteu na instituição mais poderosa da República, é justificável que se reclame dele uma conduta ética irrepreensível. Não pode existir, numa democracia, uma instituição acima de qualquer espécie de controle.
Perante a sociedade, todo membro do Ministério Público reveste uma aura de legitimidade simbólica, no compreensível mimetismo de considerar toda apuração uma espécie de “nova Lava Jato”. Por isso é que, ao se avistar com o promotor, qualquer envolvido e toda testemunha já se apresenta numa evidente inferioridade. Além de temor reverencial, existe uma nítida intenção de colaborar, até às vezes com o propósito de “mudar de lado” e passar para a “banda saudável” da nacionalidade.
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Os advogados dos acusados no âmbito da Operação Lava Jato têm levantado a hipótese de que os delatores mentem para reduzir as respectivas penas. É possível. 
Porém, é também possível que falem a “sua verdade”, baseada numa memória que se adapta inconscientemente à versão que mais agrade ao Ministério Público. Sendo assim, é preciso não supervalorizar o conteúdo das delações. Por outro lado, muitas delações premiadas efetivamente revelam crimes e os seus respectivos autores.
O ineditismo da adoção dessa estratégia causa estranhamento em autorizadas vozes do direito penal pátrio. Repugna a alguns a utilização de uma tática inusual no sistema.
Outros enxergam com benevolência a introdução desse hibridismo: importar institutos da tradição anglo-saxã que possam servir para modernizar o vetusto sistema criminal brasileiro. Afinal, tem-se um Código Penal ainda estruturado na década de 1940 e um processo penal apenas um ano mais jovem.
A conclusão, ora submetida a debate, é que as delações premiadas devem ser mantidas em nosso sistema judicial, porém com pleno entendimento das limitações cognitivas a que estão submetidos os delatores.
Jerson Kelman
Professor da Coppe-UFRJ, ex-presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de SP - 2015 a 2018, governo Alckmin) e ex-diretor da ANA (Agência Nacional de Águas - 2001 a 2004, governos FHC e Lula)
José Renato Nalini
Reitor da Uniregistral, professor de pós-graduação na Uninove e ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (2014-15)
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Xangai: gentrificação do distrito de Pudong, artigo de José Eustáquio Diniz Alves, Ecodebate

[EcoDebate] O mundo tinha menos de 5% da população vivendo nas cidades em 1800. Em 2008, a população urbana ultrapassou a população rural (com cerca de 3,5 bilhões cada). Em 2030, serão mais de três quintos da população mundial vivendo nas cidades, sendo que a economia urbana concentra a a maior parte do PIB mundial. As cidades não cresceram apenas em termos de população. Houve também um processo de transformação do espaço urbano com o surgimento de nova dinâmica da organização dos municípios. Em várias cidades do mundo houve crescimento das favelas. Mas, em várias, também houve um processo de renovação urbana e naquelas que ascenderam na escala da riqueza houve um processo de “enobrecimento” de determinadas áreas, ou um processo de “gentrificação”.
O enobrecimento urbano, de acordo com algumas traduções, ou gentrificação, da expressão inglesa gentrification (um neologismo em português) consiste num conjunto de processos de transformação do espaço urbano que ocorre, com ou sem intervenção governamental, nas mais variadas cidades do mundo e diz respeito à retirada de moradias, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, de espaços urbanos que subitamente sofrem uma intervenção urbana, favorecendo o crescimento das cidades.
A expressão da língua inglesa gentrification foi usada pela primeira vez pela socióloga britânica Ruth Glass em 1964, ao analisar as transformações imobiliárias em determinados distritos londrinos. A gentrificação foi um fenômeno inicialmente observado no contexto urbano do mundo anglo-saxão, segundo os estudos mais clássicos – como os textos do geógrafo Neil Smith. Mais recentemente vários estudos acadêmicos consideram que a gentrification tenha se generalizado pelo mundo todo e seja uma das manifestações da globalização (ver Wikipedia). Numa visão mais crítica: “Gentrificação é o processo de encarecimento da vida, que torna regiões inteiras acessíveis para poucos” (Arquitetura da Gentrificação).
Xangai concentra a força econômica da China e o distrito de Pudong é o centro financeiro mais avançado da economia chinesa. O distrito de Pudong é um exemplo perfeito das transformações ocorridas na cidade e na país. Lá funciona o Xangai Transrapid, que é a primeira linha de trem de alta velocidade maglev (Magnetic levitation transport) comercial do mundo. Sua construção iniciou em março de 2001 e começou a operar em 1° de janeiro de 2004. O trem pode atingir uma velocidade de 350 km/h em apenas 2 minutos e uma velocidade máxima de 431 km/h. Faz um trajeto que vai da estação Longyang Road em Pudong até o Aeroporto Internacional de Xangai, em um percurso de aproximadamente 30 km, demorando menos de 8 minutos para fazer o percurso.
Xangai também se destaca no transporte coletivo de milhões de passageiros. No início de 2014, a cidade estabeleceu um novo recorde: passou a ter o primeiro sistema de metrô do mundo com comprimento total superior a 500 quilômetros. Tudo feito em cerca de 20 anos. Já o metrô de São Paulo, maior rede do Brasil, tem 74 quilômetros.
As transformações ocorridas na paisagem urbana de Xangai traduzem as transformações ocorridas na China nas últimas 3 décadas. Os avanços foram impressionantes. Mas existe um lado cinzento. Acompanhando o crescimento econômico houve aumento das desigualdades sociais e grande degradação do meio ambiente. Os desafios para manter o enriquecimento serão cada vez maiores, especialmente no que diz respeito ao controle da emissão de gases de efeito estufa e dos diversos tipos de poluição que tem se tornado um pesadelo para a população e os ecossistemas.
Referência:
The Atlantic. 26 Years of Growth: Shanghai Then and Now, Aug 7, 2013

O ROTEIRO INSTITUCIONAL DA CORRUPÇÃO NO BRASIL, Alvaro Rodrigues do Santos

O NINHO DA SERPENTE: ESTADO E GOVERNO, DUAS ENTIDADES DIFERENTES HOJE PROMISCUAMENTE CONFUNDIDAS
Se a atual polêmica que se trava no Brasil sobre a ética na administração pública contribuir para que se perceba que uma das principais raízes de nossos maiores males públicos está na cultural promiscuidade com que são entendidos e se relacionam no país Estado e Governo, já terá sido extremamente positiva em seus resultados educativos. Entendidos aqui o Governo como a expressão da vontade política maior da população para, renovada e periodicamente, definir e conduzir as políticas públicas inerentes ao desenvolvimento econômico e social do país e ao bem estar da sociedade, e o Estado como o aparelhamento técnico-administrativo-gerencial permanente envolvido na gestão e execução das mais diversas atividades e serviços públicos nos campos da Saúde, do Saneamento, da Educação, dos Transportes, das Telecomunicações, da Energia/Mineração, do Meio Ambiente, da Justiça, etc. Enfim, ministérios, secretarias estaduais e municipais, são governo, empresas públicas são estado. Exemplificando para firmar conceitos, Secretaria da Saúde é Governo, Hospital das Clínicas é Estado; Ministério de Minas e Energia e Secretarias afins são Governo, Furnas, CEPEL, Petrobrás, CPRM, são Estado; Ministério e Secretarias de Estado dos Transportes são Governo, Companha do Metrô é Estado, Ministério e Secretarias do Meio Ambiente são Governo, IBAMA, ICMBio, INEA, são Estado. Como são Estado Sudene, Codevasf, Correios, Infraero, Dataprev, Embrapa, Eletrobrás, IPT, SABESP, Universidades, Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES...
Como costume trágico e culturalmente arraigado, cada novo governo, seja em nível federal, estadual ou municipal, tem desgraçadamente todo o Estado à sua disposição para a acomodação das composições políticas e eleitorais que lhe dão sustentação. A cada novo mandato loteiam-se e mudam-se assim todas as direções e comandos dos instrumentos de Estado, seja na administração direta, seja na indireta. Conseqüência deletéria natural é a descontinuidade de programas, de estratégias de conduta, das políticas de curto, médio e longo prazos, a desimportância para com a competência técnica interna, o descompromisso pelo zelo ético nas licitações e nas relações institucionais. Enfim, esse tem sido o caminho histórico da entrega do estado brasileiro a interesses privados, sejam esses empresariais, sejam esses associados a grupos políticos regionais ou corporativos.
A propósito, o uso político do Estado brasileiro e as graves conseqüências na eficiência de sua gestão explicam em boa parte a perniciosa, e também cultural, dissociação de confiança entre Estado e Sociedade.
Operar essa “desassociação” entre Estado e Governo não será fácil, muitos a quem caberia essa tarefa sentiriam estar “cortando a própria carne”, para utilizarmos uma expressão da moda. Como em outras questões similares, somente mesmo a vontade manifesta da sociedade terá a força necessária para a mudança dos atuais costumes. A proposta de uma legislação que bem delimitasse os espaços entre Governo e Estado poderia constituir o oportuno mote para um profundo e politizador debate da matéria.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
• Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
• Foi Diretor Geral do DCET – Departamento de Ciência e Tecnologia do Governo do ESP
• Geólogo USP – Geologia, Geotecnia e Meio Ambiente