quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Pornografias, FSP

Beijo gay de HQ não é obsceno, mas pistola automática em hospital é

“Pornografia é uma palavra que muita gente não entende direito. Beijar alguém do mesmo sexo não é pornografia. Exibir pistola automática em hospital é”, dizia um tuíte que publiquei na terça (10).
Por enunciar de forma sintética uma verdade que não é evidente para todos, o post merece desdobramento.
Primeiro é preciso recuar até o último e histórico fim de semana na Bienal do Livro do Rio.
Como se sabe, o prefeito Marcelo Crivella, com a ajuda da Justiça, armou uma tempestade oportunista no copo d’água de uma história em quadrinhos e acabou derrotado.
Muito já se falou do desespero de um péssimo político que se vê prestes a descer pelo ralo nas eleições e apela para o populismo descarado. No caso, invoca o pânico moral provocado em parte da população pela ideia de “pornografia”.
Que palavra é essa? Formada a partir do grego “porné” (prostituta), é jovem: nasceu no século 19 com a primeira acepção, em francês, de “estudo sobre a prostituição”. 
O sentido que vingou no puritanismo da Era Vitoriana, porém, foi o de arte erótica em geral e pintura licenciosa da antiguidade em particular.
Mulher distribui um dos 14.000 livros de temas LGBT comprados pelo youtuber brasileiro Felipe Neto e distribuídos livremente na feira em protesto ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, pela censura de uma revista em quadrinhos da Marvel
Mulher entrega um dos 14.000 livros de temas LGBT comprados pelo youtuber brasileiro Felipe Neto e distribuídos livremente na feira em protesto ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, pela censura de uma revista em quadrinhos da Marvel - 08.09.2019 - Fernando Souza/AFP
A palavra evoluiu daí para uma acepção de moralismo difuso: “reprodução grosseira e não artística de cenas sexuais que buscam excitar os baixos instintos do público”.
O pornográfico reivindicou parte da região até então pertencente ao erótico, território vasto demarcado por uma palavra que vinha de tempos remotos —do grego “erotikós”— e que incluía obras, tanto cabeludas quanto refinadas, nas quais eram retratados “amor, paixão ou desejo intenso”.
Desde então, o erótico vem sendo chamado cada vez mais a nomear apenas as terras altas da arte sensual. Os países baixos onde o pau come pertencem à pornografia.
O texto do Estatuto da Criança e do Adolescente favorece manobras de má-fé ao determinar no artigo 78 que seja vendido em embalagem lacrada todo “material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes”. 
A imprecisão de uma palavra como “impróprio” é imprópria ao texto de uma lei, e nesse escurinho se passou tudo: Crivella tramou inconstitucionalidades e um desembargador chegou a lhe dar razão, 
antes de ser corrigido pelo STF.
Logo adiante o ECA acende uma luz: determina que “as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”.
Pornográficas, pois é. Eis a palavra-chave que poderia dar fundamento à cruzada do pastor-prefeito. Só que o livro em questão, da série “Vingadores”, da Marvel, é zero pornográfico ou mesmo erótico.
A imagem de duas pessoas vestidas se beijando tem outro papel dramático, aliás banal e quase onipresente na ficção dos últimos séculos: o romântico.
Bingo! Para a parcela homofóbica da população, cujo obscurantismo Crivella ordenha de modo obsceno, romantismo gay é necessariamente erótico; e sendo gay e erótico, só pode ser pornográfico. 
É o elemento “gay” que vicia o juízo, transformando o que seria corriqueiro entre homem e mulher num perigo do qual devemos proteger nossos filhos com embalagens lacradas. 
O nome disso é homofobia. Quanto a posar no hospital ao lado do pai convalescente com uma pistola automática bem ostensiva na cintura, como fez o deputado Eduardo Bolsonaro, por que isso seria pornográfico? Porque a palavra evoluiu e hoje, mais do que imagens de nudez e atos sexuais, nomeia por analogia a exploração despudorada e crua de outros baixos instintos.
O presidente Jair Bolsonaro com o filho Eduardo Bolsonaro após cirurgia
O presidente Jair Bolsonaro com o filho Eduardo Bolsonaro, que carrega uma arma na cintura, no hospital após cirurgia - 09.09.2019 - Reprodução
Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

Solar - Coluna Painel FSP

Lá vem o sol Às vésperas da abertura de uma nova consulta pública para a revisão de resolução 482, da Aneel, que vai aprofundar a discussão sobre o subsídio a quem faz uso da energia solar, os lados opostos do debate se municiam de argumentos. 
Calor “Não é justo que só uma parcela de usuários usufrua. Com o subsídio, a rentabilidade dos projetos vai de 20% a 35% ao ano. Sem ele, que onera a tarifa dos demais consumidores, ficaria em 12% a 18%”, diz a Abradee (associação de distribuidores) contrária à permanência da ajuda.
Ligado O mercado de geração de energia para o próprio consumo em empresas e residências tem potencial para crescer 400 vezes até 2030, de US$ 600 milhões para US$ 240 bilhões, segundo Emmanuel Lagarrigue, da francesa Schneider Electric. Já a demanda de energia deve duplicar em 20 anos, estima o executivo.
De novo O lamento do setor de serviços com a PEC 45 da Câmara, da reforma tributária, ressuscitou frente parlamentar do setor nesta quarta (2). Ela existiu de 2011 a 2015, quando foi incorporada pelo grupo em defesa do comércio. As empresas temem que a unificação de tributos, como está proposta, eleve imposto.
com Filipe Oliveira e Mariana Grazini
Painel S.A.

Fernando Schüler - Normalidade à brasileira, FSP

O que falta ao governo Bolsonaro é exatamente um 'projeto nacional'

Dias atrás fiz uma análise do discurso de Bolsonaro na ONU e recebi um comentário interessante. O sujeito dizia que minha avaliação estava OK, mas tinha um problema.
Eu parecia supor que o Brasil vivia uma situação de “normalidade democrática”. Terminava dizendo achar completamente “anormal” qualquer pessoa que havia gostado daquele discurso.
Curiosa visão de pluralismo político contida nesta ideia: quem discorda de mim não é apenas alguém que pensa e defende valores diferentes dos meus. É simplesmente anormal.
O que poderia ser apenas mais uma besteira, típica da internet, me pareceu um sintoma do Brasil atual. Na outra semana, escrevi algo sobre as relações entre Executivo e Congresso e fui repreendido, por um velho amigo, dizendo que o simples fato de fazer analise política, no Brasil de hoje, sem “denunciar e tomar posição”, era uma “rendição à barbárie”. Seria o mesmo que analisar o quadro partidário na Alemanha à época da ascensão do Führer, nos anos 1930.
É isso. Fácil, fácil, escorregamos para a mesmíssima intolerância que imaginamos combater. Nos tornamos uma peça do tribalismo vazio que marca nossas democracias. As guerras culturais dão o tom, o nível de participação dos cidadãos explodiu e com ele a organização de interesses e visões de mundo, no que antes chamávamos de “sociedade civil”.
O fato é que vivemos um dualismo. No mundo da retórica e das redes sociais, reina a fantasia sobre a crise brasileira. A própria palavra “crise”, de tão abusada, perdeu o sentido.
Há um pouco de tudo neste mundo curioso. Na recente decisão do STF disciplinando as alegações finais, em processos com réus delatores, li gente bacana dizendo que nossa Suprema Corte havia transformado o Brasil numa “ditadura dos delinquentes de todo tipo”.
De um teórico governista, li a provocação tola: “Ainda não será mesmo a hora de falar em um cabo e um soldado?”. Do lado que perdeu a eleição, o conteúdo é farto. Os teóricos do “risco democrático” cada vez mais torcem para que esqueçam suas previsões de que o nosso hino seria trocado pela Giovinezzi fascista e camisas negras desfilariam, ao cair da tarde, pela orla de Copacabana. 
No mundo real da política, o cenário é outro. Vivemos um quadro típico da normalidade à brasileira.
Vimos se formar uma maioria reformista, no Congresso Nacional, que desde a PEC do teto, em 2016, obteve vitórias sistemáticas que chegaram a 353 e 345 votos, na Câmara, nas recentes votações da reforma da Previdência e MP da Liberdade Econômica. Este é, por certo, nosso principal ativo político.
Mas há zonas de sombras à frente. Não avançamos nada no plano da reforma das instituições políticas.
Ainda em junho, o TSE entregou a Rodrigo Maia um projeto de reforma que previa a introdução do voto distrital já para as eleições de 2020.
Coordenado pelo ministro Luís Roberto Barroso, o projeto era inteligente e factível, mas ninguém deu bola. Estávamos todos preocupados com a “barbárie” do último tuíte não sei de quem, enquanto o Congresso aprovava um afrouxamento geral dos controles sobre o uso do dinheiro público nas eleições. 
Acho curioso quando escuto falar no “projeto bolsonarista” para o país. Imagina-se que frases soltas, ditas aqui e ali, possam funcionar como uma ideia de país. Confesso não ver nada disso.
Este é um governo de baixo consenso em relação a sua própria agenda econômica de liberalização, e isso fica claro com as indefinições quanto à reforma tributária, a inexistência de um projeto minimamente consistente de reforma do Estado, a falta de apetite político para aprovar pautas que o próprio governo apresentou, como a autonomia do Banco Central, e à lenta desidratação a que foi submetida a reforma da Previdência.
Talvez a cara verdadeira do Brasil de hoje seja mesmo esta: a de um país que depende de um leilão do pré-sal para fechar as contas, não irá investir virtualmente nada, ano que vem, e fala em fazer uma reforma tributária sem reduzir um centavo sequer da carga tributária de 35% do PIB. 
O que falta é exatamente um “projeto nacional” ao governo. A última vez que ensaiamos algo parecido com isso foi à época do programa de estabilização econômica e reforma do Estado, nos anos 1990.
Projeto por certo inconcluso. Imaginar que as orações da ministra Damares, os tuítes da turma palaciana e as palestras metafísicas de nosso chanceler-filósofo expressem um “projeto de país” não passa de uma fantasia divertida. Estamos muito longe disso, neste país em que a normalidade beira ao tédio.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação