Beijo gay de HQ não é obsceno, mas pistola automática em hospital é
“Pornografia é uma palavra que muita gente não entende direito. Beijar alguém do mesmo sexo não é pornografia. Exibir pistola automática em hospital é”, dizia um tuíte que publiquei na terça (10).
Por enunciar de forma sintética uma verdade que não é evidente para todos, o post merece desdobramento.
Primeiro é preciso recuar até o último e histórico fim de semana na Bienal do Livro do Rio.
Como se sabe, o prefeito Marcelo Crivella, com a ajuda da Justiça, armou uma tempestade oportunista no copo d’água de uma história em quadrinhos e acabou derrotado.
Muito já se falou do desespero de um péssimo político que se vê prestes a descer pelo ralo nas eleições e apela para o populismo descarado. No caso, invoca o pânico moral provocado em parte da população pela ideia de “pornografia”.
Que palavra é essa? Formada a partir do grego “porné” (prostituta), é jovem: nasceu no século 19 com a primeira acepção, em francês, de “estudo sobre a prostituição”.
O sentido que vingou no puritanismo da Era Vitoriana, porém, foi o de arte erótica em geral e pintura licenciosa da antiguidade em particular.
A palavra evoluiu daí para uma acepção de moralismo difuso: “reprodução grosseira e não artística de cenas sexuais que buscam excitar os baixos instintos do público”.
O pornográfico reivindicou parte da região até então pertencente ao erótico, território vasto demarcado por uma palavra que vinha de tempos remotos —do grego “erotikós”— e que incluía obras, tanto cabeludas quanto refinadas, nas quais eram retratados “amor, paixão ou desejo intenso”.
Desde então, o erótico vem sendo chamado cada vez mais a nomear apenas as terras altas da arte sensual. Os países baixos onde o pau come pertencem à pornografia.
O texto do Estatuto da Criança e do Adolescente favorece manobras de má-fé ao determinar no artigo 78 que seja vendido em embalagem lacrada todo “material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes”.
A imprecisão de uma palavra como “impróprio” é imprópria ao texto de uma lei, e nesse escurinho se passou tudo: Crivella tramou inconstitucionalidades e um desembargador chegou a lhe dar razão,
antes de ser corrigido pelo STF.
antes de ser corrigido pelo STF.
Logo adiante o ECA acende uma luz: determina que “as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”.
Pornográficas, pois é. Eis a palavra-chave que poderia dar fundamento à cruzada do pastor-prefeito. Só que o livro em questão, da série “Vingadores”, da Marvel, é zero pornográfico ou mesmo erótico.
A imagem de duas pessoas vestidas se beijando tem outro papel dramático, aliás banal e quase onipresente na ficção dos últimos séculos: o romântico.
Bingo! Para a parcela homofóbica da população, cujo obscurantismo Crivella ordenha de modo obsceno, romantismo gay é necessariamente erótico; e sendo gay e erótico, só pode ser pornográfico.
É o elemento “gay” que vicia o juízo, transformando o que seria corriqueiro entre homem e mulher num perigo do qual devemos proteger nossos filhos com embalagens lacradas.
O nome disso é homofobia. Quanto a posar no hospital ao lado do pai convalescente com uma pistola automática bem ostensiva na cintura, como fez o deputado Eduardo Bolsonaro, por que isso seria pornográfico? Porque a palavra evoluiu e hoje, mais do que imagens de nudez e atos sexuais, nomeia por analogia a exploração despudorada e crua de outros baixos instintos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário