domingo, 29 de setembro de 2019

Ugo Giorgetti Viva o tobogã!, OESP

Ugo Giorgetti, O Estado de S.Paulo
29 de setembro de 2019 | 04h00

Pensei em ir ao Pacaembu ver Palmeiras x CSA. Não só pelo jogo, mas para ver o tobogã. Não pude, infelizmente. Nunca fui adepto, muito menos admirador, dessa bizarra construção que tomou o lugar da bela Concha Acústica original, tão cara a mim desde tempos imemoriais. Parece estranha, portanto, minha intenção de ir ao estádio por causa dela. Explico: é que li recentemente que o Pacaembu está privatizado e nas mãos de uma empresa que, talvez por um acaso de fina ironia involuntária, se chama Patrimônio São Paulo
Como uma das formas de zelar pelo nosso patrimônio, essa empresa se propôs a demolir o tobogã, o que, de fato, não seria má ideia. Nosso patrimônio seria efetivamente respeitado, porém, se no lugar das futuras ruínas do tobogã fosse restaurada a antiga Concha Acústica em toda sua beleza. Isso sim, seria um ganho, no mínimo estético, para a cidade de São Paulo.
Ugo Giorgetti
Cineasta Ugo Giorgetti é colunista de Esportes do 'Estado' Foto: Estadão
As grandes cidades do mundo – o que São Paulo ambiciona ser – sempre privilegiaram a beleza como um de seus atributos. Por mais mercantil que fosse a cidade, nunca se deixou de usar o belo, pelo menos para atestar a pujança e o próprio poderio. Turistas vão até hoje a lugares que foram erigidos com o pensamento voltado para a beleza.
No nosso caso, no entanto, isso não está nas intenções dos novos proprietários do Pacaembu. Em lugar do horrível tobogã vão levantar algo mais feio ainda. O estádio ficará fechado entre a metade de 2020 e a metade de 2022, quando deverá estar pronto. A reforma mais importante é justamente a demolição do tobogã, única parte do estádio possível de ser destruída, já que era ela mesma uma intervenção espúria.
O resto do estádio, felizmente, está protegido por lei e é impossível destruí-lo, pelo menos completamente. A região do tobogã é a que será mais atingida pela reforma. Em seu lugar, como já foi anunciado, teremos um centro de convenções e escritórios para alugar. Há até no Google uma foto com a maquete do empreendimento, mas a rigor não precisava haver. Poderia prever, sem foto alguma, que seria mais um daqueles edifícios cheios de vidro, de branco, e de nada, com vista panorâmica para algum lugar. Nesse caso, para um deserto e abandonado gramado, onde se exibiram nossos mais talentosos artistas durante quase 80 anos.
“Centro de convenções” faz parte desse léxico de palavras vagas, inventadas para rotular atividades vagas e imprecisas. “Aluguel de escritórios” conhecemos o suficiente na cidade, como atestam as placas de “aluga-se”. Não sei se é pela construção do monstrengo, mas por alguma razão a ocupação do estádio, na improvável hipótese de ser usado para futebol, vai cair para 26 mil pessoas. No fundo é a propósito de pessoas que escrevo. É por causa delas que prefiro mil vezes o horrível tobogã ao edifício que vai substituí-lo. 
No tobogã ainda se veem pessoas, muito diferentes das que vão ocupar o futuro centro de convenções. As que hoje ainda vejo no tobogã jamais verei de novo. E estou certo de que essa multidão feia e desorganizada é mais rica e próxima da tradição do futebol como foi concebido do que as pessoas sérias, compenetradas, do centro de convenções. Essas também são pessoas, mas de uma categoria que um sociólogo americano, que ninguém lê mais, classificava como “robôs alegres”.
A troca vai favorecer ainda mais o que já acontece praticamente em todos os estádios de São Paulo, isto é, o afastamento obrigatório de todo um público indesejável de ser visto em regiões respeitáveis. Em duas palavras, exclusão social. É isso. Quem quiser ainda ter uma pálida ideia do que era um estádio de futebol na cidade que corra para o Pacaembu e fique de olhos fixos no tobogã, seja qual for o jogo. Terá até meados de 2020 para isso. Depois...

Gustavo H.B. Franco A mágica da confiança, OESP

A mágica da confiança

Estamos diante de um jeito diferente de engendrar desenvolvimento econômico

Gustavo Franco, O Estado de S. Paulo
29 de setembro de 2019 | 05h00
A recuperação da economia está muito lenta, e essa queixa vem da época do Temer.
É grave a situação, pois são 12 milhões de desempregados; metade dos quais, não vamos esquecer, empregos destruídos pela Nova Matriz, cujas viúvas andam agitadas pois, afinal, os clubes de futebol continuam trocando seus treinadores, achando que isso produz, ao menos no início, uma injeção de ânimo. Discutível, quando muito.
Mutirão do emprego
Fila em mutirão do emprego no centro de São Paulo. Foto: Felipe Rau/Estadão - 17/9/2019
Mas por que mesmo está demorando?
Acho que a melhor resposta considera que não estamos apenas diante de mais uma recuperação cíclica, mas testando algo como uma “mudança de modelo”, vale dizer, um jeito diferente de engendrar o desenvolvimento econômico, crescimento com responsabilidade fiscal.
Desde os tempos da hiperinflação, quando se dizia que estávamos diante da falência do modelo de desenvolvimento baseado no gasto público financiado pela fabricação de papel pintado. 
Mas na hora de mudar as coisas para valer é impressionante a dificuldade. Fica a impressão de que a Nova Matriz não foi apenas um delírio parnasiano de uns poucos professores da Unicamp; há fiéis escondidos por toda a parte. A vida era mais fácil quando não era preciso fazer conta na área pública.
Vamos aos fatos: o investimento público está morrendo, e por bons motivos.
De um lado, o dinheiro acabou, o que já seria motivo suficiente. De outro, a complexidade para se trabalhar com o governo atingiu um nível crítico. Segundo o TCU, cerca de 37% de todas as obras públicas estão paradas, o que seria sinal de incapacidade de execução, quando se trata de obras públicas. Nem Keynes seria keynesiano nessas condições.
A mudança de modelo de que falamos consiste em o investimento privado fazer o que antes se esperava que o investimento público fizesse. Não há como escapar disso, mas o problema é que, no Brasil, o inevitável pode demorar várias décadas.
Metade do problema tem de ver com dificuldades conhecidas de reduzir o gasto público; a outra, amiúde esquecida, é pertinente ao setor privado.
A formação bruta de capital fixo do setor privado, ou o Capex, para usar o jargão contábil-empresarial (os gastos de capital), é muito baixa há anos, e as empresas estão acomodadas nessa situação. 
Ninguém gosta de se alavancar, a aversão ao endividamento é um dos hábitos mais arraigados das empresas brasileiras, e por bom motivo: no país que é campeão mundial de juros, o recurso ao endividamento é como um doping que costuma matar o atleta antes de ele ganhar medalhas. 
Nossos tesoureiros são excelentes para aplicar dinheiro e otimizar o caixa, mas morrem de medo de tomar dinheiro emprestado, exceto quando se trata de crédito direcionado baratinho que só os amigos do governo conseguem obter. 
Ocorre que estamos migrando para um novo patamar de custo do capital, o que nos levaria a pensar que este é o momento para o setor privado se habituar a fazer mais gastos de capital com recursos de terceiros.
Faz sentido, mas é natural que as empresas não se sintam confortáveis para essa transição senão na presença de uma graça designada como “confiança”. Com ela, é possível imaginar um movimento virtuoso coordenado na direção de mais investimento, mas sem ela não dá nem para atravessar a rua.
O problema conceitual no combate à hiperinflação era semelhante: confiança era o que resolvia o problema de coordenação na raiz das dificuldades para o setor privado cooperar com a estabilização, segurando seus preços. 
Muitos “agentes econômicos” (como se falava antigamente) precisavam se mexer ao mesmo tempo, na mesma direção, uns com medo dos outros. Tudo na macroeconomia tem a ver com interdependência, decisões coletivas (tácitas ou não), consensos, combinações, coesão social, essas coisas.
E é nesse ponto que está empacada a nossa “mudança de modelo”, que deveria vir na forma de um bom plano de recuperação de empregos. Mas de que é feito um plano que produz “confiança”?
Se fosse apenas juntar bons economistas e elogiar publicamente suas ideias, o Plano Cruzado teria funcionado. 
Há componentes na mistura que não têm de ver com economia.

*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS 

O presidente mente, Marcelo Leite, FSP

Bolsonaro desconhece a busca pela verdade pois permanece escravo da ignorância, da soberba e de uma ideologia sinistra

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) gosta de recorrer às palavras de Jesus no Evangelho de São João (8, 32): “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Repetiu-as ao abrir os debates da Assembleia Geral da ONU na terça-feira (24), quando em realidade mentiu a torto e a direito.
 
Bolsonaro nunca cita o início do trecho citado, no versículo 31: “Se permanecerdes na minha palavra, sereis, em verdade, meus discípulos”.
 
O presidente parece confundir a libertação, que na Bíblia decorre de acatar a palavra divina, com o que ele (e não Ele) arbitrariamente dá por verdadeiro. Para o fiel cristão, a verdade de Jesus é. A de Bolsonaro, para a sociedade civil, discute-se.
 
O capitão exige lealdade absoluta —da família, dos ministros, dos generais, dos puxa-sacos, dos eleitores, dos empresários. Quem não rezar pelo seu credo que caia fora. Ame-o ou deixe-o.
Presidente da República, Jair Bolsonaro, discursa durante a abertura do Debate Geral da 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU)
Presidente da República, Jair Bolsonaro, discursa durante a abertura do Debate Geral da 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) - Alan Santos/PR

 
Há falsidades em muito do que ele profere como verdades absolutas, falsidades tomadas por verdadeiras por um oitavo da população brasileira que devota fé cega em sua palavra. Bolsonaro recita seus dogmas para correligionários, não cidadãos.
 
Nem o fato de discursar perante chefes de Estado teve o condão de inibir suas contrafações. O trabalho de verificar ou desmentir as batatadas presidenciais já foi realizado, com mais prontidão e acúmen, pelas agências Lupa e Aos Fatos; aqui se reproduzirão só as mentiras deslavadas.
 
O presidente mentiu na ONU quando afirmou que os cubanos do programa Mais Médicos teriam sido impedidos de trazer cônjuges e filhos ao Brasil. E, também, ao dizer que eles não tinham formação qualificada para exercer a medicina.
 
O presidente mentiu na ONU quando disse que seu governo tem compromisso com a preservação do meio ambiente. Sob seu jugo, o bilionário Fundo Amazônia foi esnobado; as verbas para pesquisa climática, reduzidas a 5%; o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), vilipendiado; seus dados de satélite sobre desmatamento, desqualificados como falsos.
 
O Ibama e o ICMBio foram manietados; as multas por infrações ambientais, rebaixadas ao menor montante em 11 anos; as queimadas, denegadas (mesmo após enviar tropas para apagá-las).
 
O presidente mentiu na ONU quando declarou que a Amazônia permanece praticamente intocada. Não faltam estudos, imagens, dados e registros oficiais mostrando que quase um quinto do bioma já virou fumaça.
 
O presidente mentiu na ONU quando se jactou de ser o Brasil um dos países que mais protegem o ambiente. Ranking das universidades Columbia e Yale com o Fórum Econômico Mundial, fundado em 24 indicadores, o relega à 69ª colocação entre 180 nações. Para o Banco Mundial, está em 32º lugar em preservação de florestas.
 
O presidente mentiu na ONU quando acusou a terra indígena Yanomami de abrigar 15 mil pessoas em área maior que Portugal. São mais de 25 mil.
 
Isso não é nem pouco nem muito, mas o que manda o art. 231 da Constituição: “São reconhecidos aos índios [...] os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
 
O presidente mentiu na ONU quando declarou que se usam aqui só 8% das terras para produzir alimentos. As pastagens onde ruminam vacas e bois cobrem outros 21% do território nacional.
 
O presidente mentiu na ONU quando encheu a boca para recitar João, 8, 32. Ele desconhece a busca pela verdade, pois despreza as evidências, e permanece escravo da ignorância, da soberba e de uma ideologia sinistra.
Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.