domingo, 22 de setembro de 2019

Proposta de desindexação do Orçamento pouparia R$ 37 bi, FSP

Diante do desafio de fazer o ajuste, Guedes tenta rever estrutura de gastos

Fábio Pupo
BRASÍLIA
O governo estima que pode obter R$ 37 bilhões com a retirada do aumento pela inflação de diferentes despesas obrigatórias. A proposta que reforma o Orçamento pode alterar o mínimo destinado para saúde e educação, impedir o reajuste automático anual para servidores e ainda extinguir fundos públicos.
O plano do ministro Paulo Guedes (Economia) é desobrigar, desvincular e desindexar o Orçamento para reduzir as despesas obrigatórias por meio de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição). 
Os “3Ds” são considerados internamente como o grande plano do titular da pasta para o segundo semestre deste ano, mas já vêm encontrando resistências.
Os estudos são feitos depois das recentes pressões para se alterar o teto de gastos da União e do pedido do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para se encontre uma alternativa ao aperto nas contas públicas, de forma que o ajuste não prejudique o seu plano de tentar a reeleição em 2022. 
Ministro Paulo Guedes com terno e gravata azul clara
Paulo Guedes, ministro da Economia - Mauro Pimentel/AFP
A solução de Guedes, que é contrário a mudanças no teto de gastos, é liberar recursos para o governo ir reduzindo o patamar das despesas obrigatórias (que são definidas legalmente e o governo deve cumprir). 
A constatação é que elas crescem continuamente, o que resulta em menos espaço para as despesas discricionárias (aquelas sobre as quais o governo tem poder de decisão, o que inclui investimentos). 
O plano declarado por Guedes é desobrigar todas as despesas do Orçamento, mas a equipe econômica já reconhece que não é possível mexer em tudo. 
Isso ocorre porque há despesas consideradas impossíveis de serem eliminadas, como aposentadorias e salários de servidores (justamente as duas maiores despesas obrigatórias). Por isso, alguns integrantes da equipe econômica defendem a desindexação como a parte mais importante da proposta dos “3 Ds”. 
O instrumento permitiria ao governo reduzir o crescimento das despesas que não pode eliminar. Na desindexação, uma das ideias é alterar o piso para saúde e educação. 
Desde 2016, a emenda constitucional do teto de gastos estabelece que cada uma das duas áreas deve receber o mesmo valor do ano anterior mais a correção pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo). Antes do teto, o gasto mínimo era um percentual da receita corrente líquida.
O governo indicava no começo que poderia até eliminar o piso, mas a equipe econômica identificou que a proposta será contestada e que a aprovação pelo Congresso seria muito difícil. Dessa maneira, agora trabalha com a ideia de, pelo menos, remover a correção automática pela inflação das duas áreas. 
Mesmo assim, a equipe reconhece que encontrará resistências e argumentos já são reunidos para as alterações. 
O primeiro é que as mudanças não necessariamente reduziriam o volume destinado às áreas, mas dariam à classe política a possibilidade de definir os montantes ano a ano.
Além disso, o envelhecimento da população demandaria, na visão de técnicos, mais recursos para a saúde e menos para a educação.
Outra mudança avaliada é o reajuste para servidores, hoje previsto na Constituição. 
A Carta determina que haja uma revisão anual dos salários e, com base nisso, uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) confirma que deve haver reajuste anual. A corte decidiu recentemente também de forma contrária à redução de jornada e salários de servidores.
Outra desindexação que chegou a ser cogitada, e foi noticiada nos últimos dias, viria da retirada da Constituição da obrigação do reajuste do salário mínimo —que está previsto para aumentar dos atuais R$ 998 para R$ 1.039 no ano que vem. 
Nas contas do governo, cada R$ 1 a mais no salário mínimo aumenta a despesa da União em cerca de R$ 300 milhões ao ano. 
A Constituição determina que o salário mínimo tenha “reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo”. Nos últimos governos, a correção seguia o INPC (que mede a inflação de quem ganha de um a cinco salários mínimos) mais o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes. O governo Bolsonaro ainda não apresentou uma proposta, que foi prometida pela equipe econômica para dezembro. 
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No Congresso, a medida já foi atacada. “O congelamento do salário mínimo é algo inviável. A proposta sugerida pela equipe do governo não tem o nosso apoio”, disse Felipe Rigoni (PSB-ES), relator da PEC que altera a regra de ouro. 
A pasta desistiu da proposta. Em nota, o Ministério da Economia afirmou que “manterá o poder de compra do salário mínimo”.
Já na desvinculação, Guedes trabalha voltado principalmente aos fundos públicos. 
A avaliação é que eles retêm recursos e obrigam a destinação a uma lista específica, limitando as decisões do governo e do Congresso sobre o Orçamento. 
Também é apontado que a vinculação atrela os gastos de hoje a prioridades do passado, sem os números serem revistos para a necessidade de cada época.  
O exemplo mais comentado é o do Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), que prevê o repasses para Estados, Distrito Federal e municípios enquanto o Ministério da Justiça precisaria de outros tipos de aplicação na segurança pública. 
Outro exemplo citado internamente é o do Fnac (Fundo Nacional de Aviação Civil ), que prevê o uso de recursos para a aviação regional, enquanto o diagnóstico é que há necessidades mais amplas, como obras em rodovias e outros empreendimentos de infraestrutura. 
Levantamento do Ministério da Economia aponta que há mais de 200 fundos de diferentes tipos. Apesar do nome, alguns nem são fundos de fato. Caso do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), que é uma autarquia federal. 
Guedes menciona internamente que quer acabar com todos. Mas a mensagem é entendida pela equipe como eliminar todos os possíveis.  Além disso, estudos da equipe econômica sobre a execução orçamentária de exercícios anteriores apontam que os fundos não usam todo o dinheiro reservado a eles. 
Cerca de 20% usam menos de 10% dos recursos a que têm direito. Outros 50% usam menos da metade. Os que mais usam os recursos são os fundos ligados às áreas militares, como o Fundo Naval, o Fundo Aeronáutico e o Fundo do Exército. 
O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, afirma que hoje há 261 fundos, sendo que 93 deles estão ativos. A estimativa é que eles reúnam um valor de R$ 222 bilhões, considerando os números de 2017. 
“A gente precisa repensar e reformatar esses fundos. A melhoria de alocação vai permitir uma melhor gestão da dívida”, disse em entrevista à imprensa na sexta-feira. 
“A diretriz do ministro Guedes é olhar o resultado fiscal como um todo, não somente o primário. É melhorar o perfil da dívida, é desengessar o Orçamento. Essa é uma diretriz mais geral que atendemos. Temos grandes ganhos [a obter] nessa área”, disse Rodrigues.

QUAIS SÃO AS REGRAS DO GOVERNO PARA CONTROLAR O GASTO PÚBLICO

Temas em discussão na meta de desobrigar, desvincular e desindexar 
  • Remover a correção automática para saúde e educação, que pela regra do teto de gastos estabelece que cada uma das duas áreas deve receber o mesmo valor do ano anterior mais a correção pelo IPCA
  • Como encontrou resistência para rever o aumento do salário mínimo pela inflação, governo busca alternativas de para a nova regra de reajuste, que precisa ser apresentada até dezembro. Nos últimos governos, a correção seguia o INPC (inflação das famílias de baixa renda), mais o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes
  • Revisão de fundos públicos; existem mais de 200 com destinações consideradas inapropriadas ou que são subutilizados

Los Angeles vê aumento da população de rua em meio a crise de habitação, FSP

Leonardo Neiva
LOS ANGELES
Sob o sol forte do início de tarde em Los Angeles, a moradora de rua Julie Cinicieros, 41, se olha pelo retrovisor de um carro estacionado e mostra como faz para injetar heroína diariamente através de uma veia do pescoço.
“A heroína destruiu as veias dos meus braços, então agora preciso injetar pelo pescoço”, explica. Quando o pescoço também se torna inviável, usuários costumam passar para os pés ou para as pernas.
A barraca onde mora, que ela divide com um amigo, está montada em uma calçada do Skid Row, área de 54 quarteirões no centro de Los Angeles que concentra o maior número de sem-teto na cidade. Em pouco mais de 11 km², vivem atualmente 4.757 moradores de rua.
Para muitos, a região, que existe há mais de cem anos, simboliza hoje a crise pela qual passa a Califórnia, com aumento expressivo no número de moradores de rua.
Los Angeles, principal cidade do estado e segunda maior do país, está no epicentro do problema. Ali, o número de sem-teto aumentou 41% desde 2015, segundo dados da Lahsa (Autoridade de Serviços para os Sem-Teto em Los Angeles).
A cidade de 4 milhões de habitantes tem 36,2 mil moradores de rua. Para comparação, São Paulo (com 12,2 milhões de moradores) tinha 20 mil  moradores de rua em 2018, de acordo com a prefeitura.  
Alojada em barracas de camping que tomam as calçadas, boa parte dos moradores do Skid Row sobrevive do auxílio de organizações sociais que atuam na região. Como Julie, a maioria deles é usuária de algum tipo de droga.
Na quarta (18), dia em que a Folha esteve no local, Donald Trump realizava a poucos quilômetros dali um café da manhã de arrecadação de fundos para sua campanha à reeleição. Em sua ida à Califórnia, na terça (16), o presidente abordou a questão do aumento da população de rua.
“Temos pessoas vivendo em nossas melhores estradas, nossas melhores ruas, nossas melhores entradas de prédios, dentro dos quais as pessoas pagam impostos enormes”, afirmou o presidente americano, que tem feito críticas à forma como o problema está sendo abordado por governantes do estado, em sua maioria democratas.
Muitos dos cidadãos pagadores de impostos aos quais Trump se referiu não assistem passivos ao problema. No quarteirão em frente à calçada onde vive, Julie aponta para as pequenas instalações de metal colocadas no muro de uma loja de brinquedos.
“As pessoas costumavam montar suas barracas aqui. Agora, botaram sprinklers [dispositivos que disparam água] ao redor do prédio, que são ligados à noite para que ninguém durma. Em outros lugares, eles mandam os seguranças com mangueiras para jogar água enquanto estamos deitados.”
Em frente a um mapa de Los Angeles pontilhado de tachinhas coloridas —cada uma delas representa um caso de overdose—, Christian Diaz, que atende usuários de drogas em uma clínica de redução de danos na região, conta que novos prédios residenciais e a ação de comerciantes têm mantido os moradores de rua afastados.
Enquanto conversa com a reportagem, é interrompido com frequência por pessoas que vêm buscar kits de prevenção de overdose e trocar seringas usadas por novas. Segundo ele, ali são feitos cerca de 85 atendimentos por dia.
No núcleo do Skid Row, em meio a prédios abandonados, as calçadas são completamente tomadas por barracas e seus moradores. É raro encontrar pedestres que se arrisquem a passar por ali. Até quem dirige evita trafegar pela região.
“Tomem cuidado, não andem por aqui sem um policial”, aconselhou Diane, 39, depois de o fotógrafo que acompanhava a reportagem da Folha ver sua mochila quase ser roubada. Ela vive na região há 19 anos. “É perigoso demais, saiam daqui antes que escureça”.
Para o dinamarquês Peter Hansen, assistente social que veio a Los Angeles para atuar como conselheiro em organizações do Skid Row, o isolamento da região esconde a realidade da população.
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“Existe algo fundamentalmente errado com um país que permite que um lugar assim exista. Eu não sentiria a mesma coisa se visse isso na Índia ou na África, onde a pobreza é comum, mas não estamos no terceiro mundo.”
O especialista em serviços públicos da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) Zev Yaroslavsky diz que o fato de donos de lojas estarem expulsando moradores de rua de suas calçadas tem um lado positivo: dá maior visibilidade à questão.
“O assunto só ganhou projeção recentemente porque muitas dessas pessoas se dispersaram pela cidade e se tornaram visíveis em lugares onde antes não eram. Agora todos os bairros da cidade têm problemas com moradores de rua.”
A preocupação tem sido tanta que os moradores aceitaram inclusive mexer no próprio bolso para resolver o problema.
Em 2017, a população aprovou em votação a Medida H, taxa sobre operações comerciais cuja arrecadação vai para o combate à falta de moradia —cerca de US$ 355 milhões anuais (R$ 1,4 bilhão), durante um período de dez anos. Outro projeto, a Proposição HHH, deve destinar US$ 1,2 bilhão à construção de 10 mil unidades residenciais para moradores de rua, também com apoio popular.
Os resultados até agora, no entanto, estão aquém do esperado. Apesar de uma pequena queda na população de rua após a introdução dos projetos, entre 2017 e 2018, o número voltou a crescer em 2019.
Um dos fatores que mais contribuem para o agravamento da crise, de acordo com especialistas, são os altos preços de moradia. Segundo dados do censo americano, em 2013 Los Angeles era a cidade com o aluguel mais oneroso do país —em média, os moradores gastavam 47% de seus salários em despesas com habitação.
Segundo Stephany Campos, administradora-executiva da HHCLA, entidade de apoio à saúde dos moradores de rua, hoje há mais dinheiro do que nunca para lidar com o problema.
“Apesar disso, o público está cada vez menos contente com a forma como as coisas estão sendo administradas. Todos estamos trabalhando muito, mas os números continuam crescendo”, afirma.
No caso de Julie, que usa drogas desde os 11 anos de idade, o vício é o principal empecilho para tentar vaga em uma das habitações oferecidas pelo governo. Estar limpo ou demonstrar perspectiva de melhora são aspectos essenciais na hora da avaliação. “É difícil sair das ruas quando você é viciado. Eu estou nessa situação desde que tenho lembrança.”