terça-feira, 30 de outubro de 2018

Especialistas questionam eficiência da educação na gestão Bolsonaro, FSP

Flavia LimaJoana Cunha
SÃO PAULO
Os dois pilares do programa de educação do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL) —a expansão do ensino a distância para crianças a partir de seis anos e o uso de vouchers nas universidades—, geram dúvidas em relação aos custos e desconfiança quanto a possíveis conflitos de interesse de membros da campanha.
As propostas de Bolsonaro buscam responder às dificuldades orçamentárias e às restrições aos investimentos em educação, que, submetidos ao teto de gastos, não podem crescer acima da inflação.
Segundo o programa registrado no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a educação a distância "deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais, onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais".
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A prática do ensino a distância, mais conhecido como EaD, já vem sendo usada no ensino superior, especialmente no setor privado, como forma de reduzir as mensalidades e atrair alunos.
Na década passada, a modalidade explodiu, passando de 1,8% do total de matrículas do ensino superior privado em 2005 para cerca de 30% em 2017.
A EaD tem custos menores para a instituição porque o aluno realiza parte dos estudos em casa, desafogando despesas com infraestrutura da instituição e salário de professores.
No entanto, em locais onde a EaD é financiada pelo governo, como em alguns estados americanos, dados apontam que o modelo remoto não é necessariamente mais barato.
Estudo publicado pelo Centro Nacional de Política de Educação (NEPC), da Universidade do Colorado, mostra que, em 11 de 16 estados americanos, as escolas virtuais demandavam praticamente o mesmo volume de recursos das escolas físicas.
A redução de custo, quando ocorria, era entre 5% e 8%.
Para Allan Kenji, pesquisador da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), afora a discussão básica sobre a qualidade desse tipo de ensino na infância, que tende a deixar lacunas, é preciso considerar a viabilidade de implementação.
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Jair Bolsonaro (PSL) faz discurso para televisão após anunciada sua vitória nas eleições 2018 - Reprodução/TV Folha
Kenji reforça que o ensino a distância com crianças pressupõe ter um adulto em casa cuidando do menor, o que pode ter repercussões negativas sobre emprego e renda.
O voucher, por sua vez, funciona como uma bolsa para famílias de baixa renda escolherem a escola de seus filhos —algo semelhante ao ProUni.
A ideia, disse Paulo Guedes, é que aqueles que podem passem a pagar a universidade pública e que quem não pode leve o voucher.
O gasto por aluno no ensino superior gira em torno de R$ 9.700 ao ano. Se todos os recursos fossem usados no novo sistema e repartidos, cada aluno receberia R$ 800 mensais para bancar a graduação.
Para especialistas, a quantia é insuficiente para arcar com diversos cursos.
Como o objetivo é que os alunos de renda mais alta paguem mensalidade, o valor rateado entre os de menor renda poderia ser maior.
Se o voucher fosse ampliado para o ensino básico, o valor transferido ao estudante seria de R$ 530 mensais, considerando o atual gasto anual por aluno, segundo cálculos de Naercio Menezes, professor do Insper.
"A ideia de gerar concorrência no sistema escolar é interessante, mas o que escolher com R$ 500?", questiona.
Julia Dietrich, que cursa mestrado em educação na Universidade Federal do ABC, diz que a política de voucher foi adotada por alguns países latino-americanos, como o Chile, no início dos anos 1980.
A expectativa era que a competição entre escolas levaria a uma melhora da qualidade.
"Não deu certo. Dentre as famílias mais pobres, as que tinham condição financeira um pouco mais favorável escolhiam as escolas melhores. O resto ficou com escolas de formação duvidosa, exatamente o que se critica no Fies", afirma Dietrich.
Fies é o programa de financiamento estudantil do governo que atraiu estudantes para faculdades privadas com crédito barato a partir de 2010, mas foi enxugado em 2015 pelo corte no Orçamento.
Segundo William Klein, presidente da consultoria especializada Hoper Educação, ainda não está claro de onde viriam os recursos para o voucher.
"O Fies é diferente. É um financiamento estudantil, ou seja, mesmo que tenha uma quebra, com um percentual de alunos inadimplentes, esse fundo tem um retorno que dá sustentabilidade", diz Klein.
Outro ponto que preocupa especialistas é que os modelos defendidos durante a campanha de Bolsonaro beneficiam setores ligados a possíveis futuros integrantes do governo.
Stavros Xanthopoylos, conselheiro de Bolsonaro na área de educação e cotado para comandar a pasta, passou parte da carreira na defesa do segmento de ensino a distância.
Xanthopoylos já foi vice-presidente e hoje é diretor da Abed (Associação Brasileira de Educação a Distância), entidade que reúne empresas com atuação na área.
Entusiasta do ensino a distância, Guedes tem, ele mesmo, apostado no setor, por meio de sua Bozano Investimentos, que hoje conta com oito empresas de educação investidas no portfólio de fundos private equity e venture capital (que investem em empresas).
Entre eles estão a Wide, de soluções de EaD para companhias de educação, e a QMágico, plataforma online que conecta alunos a professores.
"Usar ensino a distância para crianças e alunos da zona rural, que mais precisam de acompanhamento, é rasgar dinheiro. Fora o conflito de interesses", diz José Marcelino, professor da USP em Ribeirão Preto.
Ele lembra que os maiores gargalos no Brasil estão nas creches e no ensino superior.
Carlos Monteiro, presidente da CM Consultoria, especializada em educação, estima que a implementação da EaD no ensino básico seria rápida.
"Em termos práticos, como já há ensino superior, eu penso que seria só descer essa legislação para o ensino fundamental e médio. Não é nada do outro mundo, não precisa passar pelo Congresso. Pode ser tratado na órbita do próprio Ministério da Educação."
Procurado, o MEC informa que não há nenhuma diretriz do Conselho Nacional da Educação sobre educação a distância na educação básica.
"A atual gestão do MEC entende que há várias possibilidades de aproveitamento das tecnologias educacionais, mas nunca em substituição ao professor em sala de aula."
Procurados, Abed e Bozano não se pronunciaram.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Esse jornal se acabou, diz Bolsonaro ao Jornal Nacional sobre a Folha, FSP

SÃO PAULO e BRASÍLIA


Durante entrevista ao Jornal Nacional, da Rede Globo, nesta segunda-feira (29), Jair Bolsonaro (PSL) voltou a atacar a Folha e afirmou que “por si só, esse jornal se acabou”.
As afirmações de Bolsonaro se deram em resposta a uma pergunta do jornalista William Bonner, apresentador e editor-chefe do Jornal Nacional.
Bonner questionou: “O senhor sempre se declara um defensor da liberdade de imprensa, mas, em determinados momentos, chegou a desejar que um jornal deixasse de existir. Vai continuar defendendo a liberdade de imprensa [enquanto presidente]?”.

Fachada da loja de açaí de Walderice Santos da Conceição, 49, em Mambucaba, Rio de Janeiro
Fachada da loja de açaí de Walderice Santos da Conceição, 49, em Mambucaba, Rio de Janeiro - Lucas Landau - 2.mai.2018/Folhapress
“[Sou] totalmente favorável à liberdade de imprensa”, respondeu Bolsonaro, “mas temos a questão da propaganda oficial de governo, que é outra coisa”, completou.
Em seguida, o presidente eleito citou o caso de Walderice dos Santos da Conceição, a Wal, ex-assessora dele na Câmara dos Deputados que vendia açaí e prestava serviços particulares ao deputado federal em Angra dos Reis (RJ), onde ele tem casa de veraneio.
“Aproveito o momento para fazer justiça no Brasil. Tem uma senhora de nome Walderice, uma mulher negra que tinha uma lojinha de açaí. O jornal Folha de S.Paulo foi lá e rotulou de forma injusta como ‘fantasma’. Ela estava de férias. Ações como essa por parte de uma imprensa que comete injustiça e não volta atrás, não posso considerar essa imprensa digna”, disse.
Bolsonaro prosseguiu: “Não quero que [a Folha] acabe. Mas, no que depender de mim, imprensa que se comportar dessa maneira indigna não terá recursos do governo federal”. O presidente eleito, depois, completou: “Por si só esse jornal se acabou”.
Em janeiro deste ano, a Folha revelou que Bolsonaro usava verba da Câmara para pagar Walderice. Ela figurava desde 2003 como funcionária do gabinete do deputado federal, recebendo salário de R$ 1,3 mil ao mês, mas vendia açaí em uma barraca vizinha à casa de veraneio dele em Mambucaba (RJ).
Walderice pediu demissão do gabinete de Bolsonaro após as reportagens da Folha.
Na sequência da entrevista à Globo, Bolsonaro fez nova acusação contra o jornal. “Inclusive teve uma última matéria, onde eu teria contratado empresários para espalhar mentiras sobre o PT. Mais uma ‘fake news’ do jornal Folha de S.Paulo invariavelmente”, afirmou.
O presidente eleito disse que a reportagem da Folha o acusa de ter contratado empresas no exterior, por meio de empresários, para enviar mensagens anti-PT por aplicativo.
Na verdade, a reportagem publicada no dia 18 de outubro afirma que empresários impulsionaram disparos por WhatsApp contra o PT.
O pagamento por empresas de ações que beneficiem a campanha de um candidato é proibido pela lei eleitoral.
Após as afirmações de Bolsonaro, Bonner pediu a palavra e fez um comentário.
"Como editor--chefe do Jornal Nacional, eu tenho um testemunho a fazer. Às vezes, eu mesmo achei que críticas que o jornal Folha de S.Paulo tenha feito ao Jornal Nacional me pareceram injustas. Isso aconteceu algumas vezes. Mas para ser justo do lado de cá, eu preciso dizer que o jornal sempre nos abriu a possibilidade de apresentar a nossa discordância, apresentar os nossos argumentos, aquilo que nós entendíamos ser a verdade."
O jornalista prosseguiu: "A Folha é um jornal sério, um jornal que cumpre um papel importantíssimo na democracia brasileira. É um papel que a imprensa profissional brasileira desempenha e a Folha faz parte desse grupo da imprensa profissional brasileira".
Bolsonaro apenas ouviu e não respondeu nada.
Diferentemente do que Bolsonaro afirmou na entrevista, a Folha não mentiu sobre a funcionária fantasma de seu gabinete. Desde a primeira reportagem, o agora presidente eleito vem dando diferentes e conflitantes versões sobre a assessora para tentar negar —todas elas não são condizentes com a realidade.
Ao Jornal Nacional, Bolsonaro disse que a assessora estava em férias quando o jornal visitou o local pela primeira vez, em janeiro.
Folha esteve na Vila Histórica de Mambucaba em duas oportunidades. A primeira, em janeiro, durante o recesso parlamentar, quando ouviu de moradores que Walderice não tinha ligação com a política, prestava serviços na casa do parlamentar e tinha como atividade principal a venda de açaí e cupuaçu. Segundo depoimentos colhidos da região, o marido dela, Edenilson, era caseiro de Bolsonaro.
Neste dia, a Folha se encontrou com Bolsonaro, por acaso, no local. Ele deu diversas explicações sobre Walderice, mas em nenhum momento disse que ela estava de férias —como falou meses depois.
Na segunda oportunidade, em 13 agosto, a Folha retornou à vila e comprou das mãos de Walderice um açaí e um cupuaçu, em horário de expediente da Câmara. À reportagem, ela afirmou trabalhar no local todas as tardes.
Minutos depois de a reportagem se identificar e deixar a cidade, ela ligou para a Sucursal da Folha em Brasília afirmando que ia se demitir do cargo.
A secretária figurou desde 2003 como um dos 14 funcionários do gabinete parlamentar de Bolsonaro, em Brasília. Seu último salário, foi, bruto R$ 1.416,33.

Malfadada tecnologia, Drauzio Varella , FSP

Já ouvi previsões equivocadas; como aquela, jamais.
Estávamos no fim da década de 1960. No centro acadêmico da faculdade, um grupo de intelectuais da USP discutia como lidar com o ócio no ano 2000, época em que a tecnologia estaria tão avançada que as pessoas trabalhariam apenas duas ou três horas por dia. Como evitar que se entregassem à bebida e à depressão?
Aconteceu o oposto: os avanços tecnológicos vieram para aumentar a carga de trabalho.
No início dos anos 1980, eu estava num hospital em Nova York quando chegou por fax um relatório médico enviado da Califórnia. Fiquei abismado.
Assim que voltei ao Brasil, comprei um aparelho. Custava os olhos da cara, mas valia. Os resultados dos exames que eu solicitava eram enviados diretamente para minha casa. Que maravilha, os pacientes não precisavam ir buscá-los no laboratório.
Um dia, ao acordar, o tapete da sala havia desaparecido. Estava encoberto pelos faxes que a maldita máquina vomitara sem trégua. Comecei a levantar mais cedo.
Depois, apareceu o email. Sensacional. Aposentei o fax, tecnologia obsoleta —o email resolveria meus problemas. Coisa mais civilizada, não gastava papel nem precisava perder tempo com preâmbulos ao telefone. Era o fim do "tudo bem com você, e as crianças? E o reumatismo da sua mãe? Sua irmã largou daquele imprestável?". Bastava escrever, clicar no envio e estávamos conversados.
Na euforia, não me ocorreu a possibilidade de que outros fizessem o mesmo. Em pouco tempo a caixa postal ficou abarrotada. No período de trabalho, não conseguia vencer a enxurrada de mensagens; mal recebia uma, entrava outra. Quando dei por mim, os emails invadiam as horas dedicadas à família e ao sono.
Lembro bem do dia em que uma paciente me trouxe um presente de Natal, embrulhado numa caixa com um laço de fita. Pelo tamanho, achei tratar-se de um par de sapatos. Era um telefone celular.
Naquela época, os pacientes se comunicavam com os médicos por meio de uma central que acionava o bip que carregávamos preso ao cinto da calça. Quando saíamos de casa, não podíamos esquecer as fichas telefônicas. Se bipassem, tínhamos que achar um orelhão, ligar para a central com papel e caneta na mão, prender com o queixo o telefone ao ombro, anotar o número da chamada e repetir a operação para falar com quem havia bipado. O perfume enjoativo impregnado no aparelho ficava no rosto da gente pelo resto do dia. Um colega teve problemas com a esposa ciumenta.
As companhias telefônicas fizeram de tudo para reduzir as dimensões dos celulares, de modo que coubessem no bolso, estratégia para deixá-los ao alcance da mão. Passamos a receber chamadas a toda hora, em qualquer lugar, inclusive nos instantes livres que ainda sobreviviam: no trânsito, no meio do jantar, na mesa do bar com os amigos, na privacidade do banheiro. A onipresença do celular tem o dom de criar tensão, mesmo quando ele não toca.
Naquela altura, Satanás, inconformado com a demora para receber nos quintos do inferno pecadores cada vez mais longevos, raciocinou: "Tem cabimento aguardar 80 anos para a chegada dos amaldiçoados, quando posso infernizá-los em vida?".
E assim, sob o comando de Lúcifer, o anjo da luz condenado ao fogo eterno por desafiar os desígnios de Deus, desenvolveram uma tela para o celular, de longe a mais diabólica das invenções humanas.
A tela conseguiu hipnotizar multidões de mulheres, crianças e homens mantidos online 24 horas. Antes, podíamos alegar não ter visto a mensagem enviada, por estarmos longe do computador. A tela jogou por terra essa possibilidade.
Não satisfeito, o Demônio criou o WhatsApp. Cinco minutos depois de enviar um email, o inimigo manda um WhatsApp para cobrar a resposta. Desafetos mais ansiosos executam as duas operações simultaneamente.
Para enlouquecer ainda mais, há sempre um desocupado sádico que inclui você num grupo. Se sair, vão dizer que ficou importante, que agora não liga para os parentes nem para os amigos do passado. Você acorda, está lá o famigerado gatinho numa paisagem cafona dando bom dia ao grupo.
Não se iluda com a tecnologia, prezado leitor, graças a ela nós nos tornamos mais competitivos e eficientes no trabalho. Nada virá para nos dar mais tempo livre, ao contrário, tudo o que surgir será para aumentar nossa produtividade. Vai ficar pior. Para regozijo do Coisa-Ruim.


Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.