quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Melancolia, Antonio Delfim Netto ,FSP

O processo eleitoral —do qual dependerá a melhoria do bem-estar da sociedade brasileira— termina de maneira melancólica. Haddad refez o seu programa três vezes (e continua muito ruim). Bolsonaro não tem um programa: tem um desenho animado num Power Point ainda que sugira ter uma retaguarda de bons profissionais. 
Uma novidade é que, aparentemente, a nova seita dominante de economistas, se ele vencer a eleição, será da Universidade de Brasília e do Ipea, onde predomina uma forte inclinação empírica. 
Usam a boa teoria e pensam os problemas que têm impedido o país de reengrenar o seu desenvolvimento econômico, sem o qual a acomodação social é uma quimera. 
É difícil levar a sério algumas afirmações do programa de Haddad: “o povo brasileiro sabe de nossa capacidade de conduzir o Brasil como ocorreu com a liderança durante as crises de 2003 e 2008, por exemplo” e, logo a seguir, “nosso governo vai recuperar a capacidade de nossa indústria num amplo esforço de reindustrialização”. 
Por que esconder a tragédia do último quinquênio do governo do PT, de Dilma Rousseff? Não foi só o quinquênio em que registramos o menor crescimento do último século, mas no qual houve a maior queda da produção industrial brasileira, que comprometeu até os bons resultados do governo Lula. 
O nível da produção física da indústria brasileira é medido pelo IBGE. Pois bem. Fixada em 100 a média de 2003, ela atingiu seu máximo de 129 em julho de 2008. No segundo mandato de Dilma, voltou a 105! Treze anos perdidos e não achados no programa do PT.
Não é possível esquecer que, junto com a tragédia fiscal, houve uma enorme trapalhada nos registros contábeis (a contabilidade criativa). Um conjunto de competentes funcionários de carreira levou seis meses para pôr ordem nos números. 
No governo Temer, a melhoria da administração fiscal é visível a olho nu. Basta ver o comportamento do câmbio e do juro de longo prazo.
Este é um ponto da maior importância. Quem ganhar a eleição, se tiver um mínimo de inteligência e alguma grandeza, deveria convidá-los a permanecerem em seus postos (são funcionários públicos que obedecem à orientação política) e tentar seduzir os membros do Banco Central e estimulá-los a completar o excelente programa que vêm desenvolvendo e que vai terminar aumentando a competição financeira (sem a tolice de tributar o spread bancário). 
Suspeito que isso dará ao vencedor pelo menos um ano de tranquilidade no câmbio, nos juros e na inflação, o que produzirá algum crescimento e dará tempo para a organização de seu apoio no Congresso para as reformas.
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.
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Gols contra, Ruy Castro, FSP

Quando o 'núcleo duro' de Bolsonaro abre a boca, as instituições tremem

Bolsonaro vive sendo chamado a apagar incêndios
Bolsonaro vive sendo chamado a apagar incêndios - Mauro Pimentel/AFP
“A democracia é a ciência e a arte de administrar o circo a partir da jaula dos macacos.” A frase é do jornalista, escritor e polemista americano H. L. Mencken (1880-1956) —e olhe que ele não viveu para ver Donald Trump na Presidência dos EUA. 
Se a democracia mais sólida e experiente do mundo produziu Trump, era talvez inevitável que a nossa, tão jovem e ingênua, gerasse um Bolsonaro. A sorte dos americanos é que, em volta de Trump na Casa Branca, há homens dedicados a “esquecer-se” de cumprir suas ordens e esperar que ele também se esqueça —maneira discreta de neutralizar seu risco à paz mundial, ao comércio internacional, à defesa do ambiente e à própria democracia. Mas duvido que possa haver gente assim em volta de Bolsonaro no Planalto. 
Pelas amostras, o que teremos será justamente o contrário. Quando um dos membros de seu “núcleo duro” —os filhos, o general vice, o economista, o coordenador da campanha— abre a boca, as instituições tremem. Um ameaça fechar o Supremo, outro fala emautogolpe e em revogar o 13º salário, o terceiro ameaça com novos impostos e o último quer extinguir cargos que não existem. Ao ser avisado sobre esses disparates, é o próprio Bolsonaro que sai correndo para apagar o incêndio. Mas, se tivermos de contar com Bolsonaro para a casa se manter de pé, convém sair de baixo. Afinal, já sabemos suas opiniões sobre ditadura, tortura, estupro, desmatamento, armas, gays, negros e mulheres.   
Com tudo isso, Bolsonaro continua a ser levado a sério por empresários, economistas e militares supostamente responsáveis, para não falar na Regina Duarte e nas multidões que, bem provável, o elegerão neste domingo. Dali até 1º de janeiro, dia da posse, ele e seus conselheiros terão o direito de dizer e desdizer quantos absurdos quiserem. 
Mas, a partir daí, cada gol contra cometido por ele ou por um dos seus irá para o placar.    
 

Brasil Bipolar, Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo


24 Outubro 2018 | 02h00

Estamos afogados na polarização. O maniqueísmo é uma heresia no catolicismo, mas se transformou em virtude no maior país católico do mundo. São escassos os argumentos e abundantes as opiniões. Coaxam os adeptos polarizados de forma monocórdica no pântano raso das redes sociais. Robôs ladram e a caravana não passa, emperrada em palavrões. Pena que tantos jovens tenham descoberto o território da política como o aniquilamento do outro. Alienação e agressividade política são armas perigosas. Sufocar um campo tão importante pela falta ou pelo excesso é um desastre.
Nunca se viu algo assim? Vivemos os tempos derradeiros e, após o processo de eleição, veremos os quatro cavaleiros do apocalipse cavalgando por sobre o Congresso? O fim do meu mundo nunca é o fim do mundo e precisamos da perspectiva histórica.
O Brasil tem tradição de violência e polarização. A agressividade da nossa história é forte e salta aos olhos dos documentos coloniais, imperiais e republicanos. A morte dada a Zumbi dos Palmares com o castigo final de cortar o pênis do líder do quilombo e costurá-lo na boca é um indício de como a Terra de Santa Cruz não era a fazenda bucólica de flores de certas correntes sobre o passado. A sanha de ódio (e de medo) levou a três séculos de punições públicas e exemplares de escravos.
O desembarque de centenas de milhares de seres humanos no cais do Valongo do Rio era a estetização trágica de um mundo muito agressivo. Sociedades de tradição escravocrata costumam ser historicamente agressivas, pois a destruição pública de muitos contamina o tecido social. 
Canudos sofreu quatro expedições militares e final dramático, um genocídio de sertanejos. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul virou um festival hediondo de degolas e estupros. Cangaceiros violentos como Lampião foram punidos com o corte das cabeças. Fizeram uma foto macabra do evento como registro e comemoração. Criminosos fluminenses punem desvios colocando a vítima dentro de pneus e tocando fogo, ato batizado de “colocar no micro-ondas”. Se pudesse optar, Joana D’Arc teria preferido sua fogueira de 1431 ou os pneus? 
Nosso tema não é a violência, porém como ela aflora em momentos polarizados. Violência existe diariamente. De quando em vez, ela se torna política em polarização. Em 1935, o País estava partido ao meio entre as propostas da Aliança Nacional Libertadora de esquerda e instituições alinhadas à direita, como a Ação Integralista Brasileira. Como é frequente, aproveitando-se do clima de insegurança gerado pela polarização, Getúlio Vargas destruiu a frágil democracia inaugurada pela Constituição de 1934. Resolveu-se a polarização pela repressão, entregando Olga Prestes aos nazistas e encarcerando, entre tantos, Graciliano Ramos. O curioso é que os mesmos socialistas que, com razão, gritavam contra os porões da ditadura no Brasil, no exterior, apoiavam campos de concentração soviéticos, ou fingiam que não viam para maior conveniência política. Talvez por isso sejam inóspitos os polos: ambos costumam ser marcados pela cegueira seletiva. A lógica é sempre a mesma: o meu inferno é mais gostoso do que os outros. 
Entre 1961 e 1968, recrudesceu a polarização política. Os campos da esquerda e da direita se enfrentavam em campanhas marcantes e regidos por uma gramática de respostas mútuas: Comício da Central do Brasil (13 de março de 1964) versus Marcha da Família com Deus e pela Liberdade (19 de março, seguida de mais de 40 marchas em outras cidades). Mais uma vez eliminamos a polarização pela repressão. A solução para que o Brasil melhorasse e evitasse os males da violência do golpe civil-militar de 1964 seria o sufocante AI-5? Qual a solução para sair da ditadura que matava, torturava e concentrava renda? Deveríamos seguir os modelos ditatoriais de Cuba para alguns, ou a ditadura maoista na China ou até, pasmem, a mais primitiva e retrógrada ditadura europeia do pós-Segunda Guerra: a Albânia? Nem toda a direita brasileira era golpista e nem toda a esquerda defendia ditaduras. Generalizações são pouco científicas. O ano de 1964 foi o final do enfrentamento entre duas propostas dominantemente autoritárias. A direita duvidava que o mundo do voto pluripartidário e da liberdade de imprensa conseguiria impedir o risco do avanço comunista. A esquerda usava slogans como o da UNE: “De que adianta democracia se a panela está vazia?” Venceu a proposta que estava mais armada com os óbvios resultados trágicos. Havia muitos projetos para salvar o Brasil em 1964, poucos eram comprometidos com a ideia clássica de sociedade aberta. Ambos, claro, eram os representantes mais legítimos das profundas aspirações do povo brasileiro, que deixava de ser muito consultado a partir de então. Para que voto se eu posso conduzir o proletariado ou as senhoras com rosários e panelas ao Paraíso? 
Os anos de chumbo terminaram com inflação passando de 200% e desemprego alto. O Brasil encerrou o período de exceção ajoelhado diante do FMI. Raiou o glorioso sol democrático. Curioso: o novo governo Tancredo-Sarney era tão legítimo como o de Geisel, pois chegou ao poder pelo mesmo sistema indireto de colégio eleitoral. Porém, como sempre, poder de quem eu simpatizo é legal e repressão contra quem eu detesto é um mal necessário. 
Só aqui em Macondo é que pode terminar um ciclo ditatorial com o poder entregue ao líder do partido durante a ditadura: Sarney. Tradição mantida: independência proclamada pelo herdeiro do trono português, República feita a golpes de sabre por um monarquista, revolução contra as oligarquias de 1930 liderada por um oligarca, Getúlio Vargas. Sarney foi a farsa de tragédias anteriores. 
A Constituição de 1988 vinha selar o alvorecer democrático com seus direitos amplos e propostas de cidadania plena. Apenas um exemplo, em um país de maioria negra, finalmente, uma lei que criminalizava o racismo. Lembro-me de ter chorado ao ver Ulysses Guimarães promulgá-la há trinta anos. Era um dia histórico e eu tinha 25 anos, sonhos, cabelos e esperança. 
Novo ciclo de divisão: o cenário Collor e Lula. As ideologias se enfrentavam com a atenuante de não existirem redes sociais. Que saudade da polarização expressa em artigos de jornal. Parece-me hoje uma Belle Époque comparada ao padrão digital de 2018. Bom voto a todos. Acho que minha fé na democracia é como a fé em Deus de muitos: eu não vejo, mas sinto que seria bom. Tal como tantos, eu também espero um milagre. É preciso ter esperança.