quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Brasil Bipolar, Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo


24 Outubro 2018 | 02h00

Estamos afogados na polarização. O maniqueísmo é uma heresia no catolicismo, mas se transformou em virtude no maior país católico do mundo. São escassos os argumentos e abundantes as opiniões. Coaxam os adeptos polarizados de forma monocórdica no pântano raso das redes sociais. Robôs ladram e a caravana não passa, emperrada em palavrões. Pena que tantos jovens tenham descoberto o território da política como o aniquilamento do outro. Alienação e agressividade política são armas perigosas. Sufocar um campo tão importante pela falta ou pelo excesso é um desastre.
Nunca se viu algo assim? Vivemos os tempos derradeiros e, após o processo de eleição, veremos os quatro cavaleiros do apocalipse cavalgando por sobre o Congresso? O fim do meu mundo nunca é o fim do mundo e precisamos da perspectiva histórica.
O Brasil tem tradição de violência e polarização. A agressividade da nossa história é forte e salta aos olhos dos documentos coloniais, imperiais e republicanos. A morte dada a Zumbi dos Palmares com o castigo final de cortar o pênis do líder do quilombo e costurá-lo na boca é um indício de como a Terra de Santa Cruz não era a fazenda bucólica de flores de certas correntes sobre o passado. A sanha de ódio (e de medo) levou a três séculos de punições públicas e exemplares de escravos.
O desembarque de centenas de milhares de seres humanos no cais do Valongo do Rio era a estetização trágica de um mundo muito agressivo. Sociedades de tradição escravocrata costumam ser historicamente agressivas, pois a destruição pública de muitos contamina o tecido social. 
Canudos sofreu quatro expedições militares e final dramático, um genocídio de sertanejos. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul virou um festival hediondo de degolas e estupros. Cangaceiros violentos como Lampião foram punidos com o corte das cabeças. Fizeram uma foto macabra do evento como registro e comemoração. Criminosos fluminenses punem desvios colocando a vítima dentro de pneus e tocando fogo, ato batizado de “colocar no micro-ondas”. Se pudesse optar, Joana D’Arc teria preferido sua fogueira de 1431 ou os pneus? 
Nosso tema não é a violência, porém como ela aflora em momentos polarizados. Violência existe diariamente. De quando em vez, ela se torna política em polarização. Em 1935, o País estava partido ao meio entre as propostas da Aliança Nacional Libertadora de esquerda e instituições alinhadas à direita, como a Ação Integralista Brasileira. Como é frequente, aproveitando-se do clima de insegurança gerado pela polarização, Getúlio Vargas destruiu a frágil democracia inaugurada pela Constituição de 1934. Resolveu-se a polarização pela repressão, entregando Olga Prestes aos nazistas e encarcerando, entre tantos, Graciliano Ramos. O curioso é que os mesmos socialistas que, com razão, gritavam contra os porões da ditadura no Brasil, no exterior, apoiavam campos de concentração soviéticos, ou fingiam que não viam para maior conveniência política. Talvez por isso sejam inóspitos os polos: ambos costumam ser marcados pela cegueira seletiva. A lógica é sempre a mesma: o meu inferno é mais gostoso do que os outros. 
Entre 1961 e 1968, recrudesceu a polarização política. Os campos da esquerda e da direita se enfrentavam em campanhas marcantes e regidos por uma gramática de respostas mútuas: Comício da Central do Brasil (13 de março de 1964) versus Marcha da Família com Deus e pela Liberdade (19 de março, seguida de mais de 40 marchas em outras cidades). Mais uma vez eliminamos a polarização pela repressão. A solução para que o Brasil melhorasse e evitasse os males da violência do golpe civil-militar de 1964 seria o sufocante AI-5? Qual a solução para sair da ditadura que matava, torturava e concentrava renda? Deveríamos seguir os modelos ditatoriais de Cuba para alguns, ou a ditadura maoista na China ou até, pasmem, a mais primitiva e retrógrada ditadura europeia do pós-Segunda Guerra: a Albânia? Nem toda a direita brasileira era golpista e nem toda a esquerda defendia ditaduras. Generalizações são pouco científicas. O ano de 1964 foi o final do enfrentamento entre duas propostas dominantemente autoritárias. A direita duvidava que o mundo do voto pluripartidário e da liberdade de imprensa conseguiria impedir o risco do avanço comunista. A esquerda usava slogans como o da UNE: “De que adianta democracia se a panela está vazia?” Venceu a proposta que estava mais armada com os óbvios resultados trágicos. Havia muitos projetos para salvar o Brasil em 1964, poucos eram comprometidos com a ideia clássica de sociedade aberta. Ambos, claro, eram os representantes mais legítimos das profundas aspirações do povo brasileiro, que deixava de ser muito consultado a partir de então. Para que voto se eu posso conduzir o proletariado ou as senhoras com rosários e panelas ao Paraíso? 
Os anos de chumbo terminaram com inflação passando de 200% e desemprego alto. O Brasil encerrou o período de exceção ajoelhado diante do FMI. Raiou o glorioso sol democrático. Curioso: o novo governo Tancredo-Sarney era tão legítimo como o de Geisel, pois chegou ao poder pelo mesmo sistema indireto de colégio eleitoral. Porém, como sempre, poder de quem eu simpatizo é legal e repressão contra quem eu detesto é um mal necessário. 
Só aqui em Macondo é que pode terminar um ciclo ditatorial com o poder entregue ao líder do partido durante a ditadura: Sarney. Tradição mantida: independência proclamada pelo herdeiro do trono português, República feita a golpes de sabre por um monarquista, revolução contra as oligarquias de 1930 liderada por um oligarca, Getúlio Vargas. Sarney foi a farsa de tragédias anteriores. 
A Constituição de 1988 vinha selar o alvorecer democrático com seus direitos amplos e propostas de cidadania plena. Apenas um exemplo, em um país de maioria negra, finalmente, uma lei que criminalizava o racismo. Lembro-me de ter chorado ao ver Ulysses Guimarães promulgá-la há trinta anos. Era um dia histórico e eu tinha 25 anos, sonhos, cabelos e esperança. 
Novo ciclo de divisão: o cenário Collor e Lula. As ideologias se enfrentavam com a atenuante de não existirem redes sociais. Que saudade da polarização expressa em artigos de jornal. Parece-me hoje uma Belle Époque comparada ao padrão digital de 2018. Bom voto a todos. Acho que minha fé na democracia é como a fé em Deus de muitos: eu não vejo, mas sinto que seria bom. Tal como tantos, eu também espero um milagre. É preciso ter esperança. 

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