quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Feliz 2023!, Ilona Szabó de Carvalho, FSP

Depois de anos terríveis, o país começa a superar aquela polarização destrutiva

Chegamos a 2023. Ufa. Que alívio. Passamos por anos terríveis, mas finalmente começamos a superar a polarização que quase destruiu nossa nação. Uma nova força se aglutinou na sociedade. Não foi nada fácil, pois as relações pessoais foram muito abaladas com tanto ódio e desconfiança espalhados por máquinas de notícias falsas de lideranças políticas que só queriam o poder sem se importar com a destruição que causaram.
 
Mas o Brasil é muito importante para falhar. E o povo entendeu isso. Conseguimos deixar as diferenças de lado e focar nossos objetivos comuns. As batalhas mais difíceis foram na segurança, educação e meio ambiente. Os retrocessos e as perdas foram enormes, mas a sociedade despertou para uma cidadania ativa, não sem custo. Agora é correr atrás do tempo perdido e usar o conhecimento e a tecnologia para trazer nosso país para o século atual.
Os danos foram grandes. Só o discurso de apoio à licença para a polícia matar sem ser julgada —o excludente de ilicitude— fez o número de policiais mortos aumentar de forma assustadora no país, onde a polícia já era uma das que mais mata e morre no mundo. Os assassinatos de suspeitos quadruplicaram e as vítimas de "balas perdidas" explodiram. Essas mortes geraram processos em cortes nacionais e internacionais contra o governo e as lideranças responsáveis por essa tragédia. A medida foi declarada inconstitucional pelo STF, que sofreu ataques institucionais impensáveis no período.
liberação do porte de armas foi desastrosa. Cidadãos comuns se tornaram assassinos em brigas de rua e crimes passionais. Armas compradas legalmente abasteceram mais o crime por meio de desvios e roubos. O medo de andar nas ruas e de entrar em um táxi com motorista armado à noite gerou uma grande mobilização feminina, que tentou frear o derramamento de sangue em um país que, além de ser campeão em homicídios por arma de fogo, é líder em violência doméstica e abuso sexual de crianças e mulheres. O pouco controle e rastreamento de armas e munições foi por terra, prejudicando ainda mais investigações e esclarecimento de crimes.
O meio ambiente sofreu, o desmatamento cresceu e os indígenas foram muito maltratados. Vergonha e tristeza profundas. Mas o Brasil não saiu do acordo do clima, pois a Amazônia é patrimônio mundial. Milhões de crianças brasileiras e do mundo enviaram mensagens ao presidente pedindo que parasse de cortar as árvores e de matar o seu futuro.
Ativistas de todo o planeta se juntaram a nós. Tivemos medo. A censura e a intimidação imperaram. Mas a liberdade de expressão e a defesa de nossos direitos começaram a mobilizar em larga escala. Os ativistas, tão ameaçados, se fortaleceram e muitas novas vozes floresceram.
Na educação, o retrocesso foi inglório. Professores filmados em sala de aula se calaram sob o jugo de novos reitores de universidades comandados por um estado policial. Alunos se rebelaram contra mudanças curriculares que queriam deturpar nossa história, ignorar a ciência e ensinar preconceitos ao invés de diálogo e respeito às diversidades. As escolas públicas militares cresceram muito. Foco em disciplina e punição no lugar de pensamento crítico.
Caro leitor, este é o cenário otimista que posso conceber caso as previsões sobre o novo governo se confirmem domingo que vem. Mesmo a aposta em uma melhora sustentável na economia, pelo histórico do candidato e pela nova crise global que se anuncia, é bastante incerta. O arrependimento não trará vidas, florestas e os anos de atraso de volta. Pense bem antes de votar.
Ilona Szabó de Carvalho
Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

O que os perdedores revelam, Monica de Bolle, OESP

Os eleitores estão dispostos a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata

Monica De Bolle, O Estado de S.Paulo
24 Outubro 2018 | 05h00
Como parte de um ambicioso projeto de pesquisa com colegas do Peterson Institute for International Economics, tenho lido os programas de governo dos principais partidos políticos dos países que compõem o G-20 antes e depois da crise de 2008. Nosso interesse é identificar nas propostas partidárias indícios de políticas e diretrizes com maior conteúdo nacionalista no âmbito da economia, sobretudo no período pós-crise. A análise dessas plataformas acabou revelando mais do que pretendíamos em alguns casos.
As duas maiores economias latino-americanas, Brasil e México, já tiveram ou estão tendo eleições gerais este ano, assim como no período que antecedeu a crise de 2008: esses mesmos países elegeram novos presidentes, congressistas e governadores em 2006. Curioso é que, em 2006, dois candidatos que concorreram à presidência no Brasil e no México também concorreram em 2018. São eles Geraldo Alckmin do PSDB e Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO) no México. Como sabemos, AMLO obteve expressiva vitória nas urnas, derrotando o candidato do PRI, partido de centro-direita ao qual pertence o atual presidente. Em 2006, AMLO foi derrotado por Felipe Calderón do também centro-direitista PAN por margem estreitíssima, de manos de 1% dos votos totais.
As plataformas de AMLO em 2006 pelo PRD – partido de centro-esquerda do qual saiu em 2012 para lançar seu atual partido, o MORENA – e de AMLO em 2018 não foram muito distintas: o componente nacionalista está presente nas propostas de uma política industrial com forte presença do Estado, nas políticas comerciais que priorizam a promoção das exportações e a proteção de setores considerados importantes para a criação de empregos, e uma forte crítica às políticas neoliberais que “buscaram a estabilidade dos preços” em detrimento do crescimento e do desenvolvimento.
Nos dois períodos, 2006 e 2018, PAN e PRI pregaram a cartilha do liberalismo econômico sensato, aquele que defende uma política industrial horizontal, beneficiando todos os setores de igual maneira, a abertura comercial respeitando as regras internacionais, a prudência na condução da política macroeconômica sem deixar de lado políticas para a inclusão social. Em 2006, o liberalismo econômico com pitadas social-democratas chegou perto de ser derrotado. Em 2018, foi definitivamente derrotado com o auxílio de uma grande movimentação dos eleitores mexicanos contra a corrupção e em prol da renovação política. A partir de dezembro, o México terá novo governo marcado por claras diretrizes nacional-desenvolvimentistas e com maioria no Congresso.
Interessante é constatar que o PSDB sofreu destino semelhante ao do PRI e do PAN. Contrastando os programas do PSDB e do PT em 2006, tinha o do PT algum conteúdo nacionalista nas propostas de política industrial, embora não fossem muito distintos do programa do PSDB: ambos falavam em “priorizar setores que criam empregos melhores e mais bem remunerados, como a indústria de transformação”. Na área macroeconômica, ambos citavam como prioridade manter a estabilidade dos preços e a sustentabilidade fiscal. Na área comercial, o programa do PT era levemente mais protecionista do que o programa do PSDB. Portanto, é razoável afirmar que no quesito nacionalismo econômico, PT e PSDB tinham pitadas aqui e acolá.
Já em 2018, a diferença é brutal. O programa do PSDB apresentava medidas exatamente no ponto de neutralidade, isto é, a plataforma era uma proposta bem elaborada do consenso liberal ma non troppo que caracterizou as políticas econômicas nos países avançados até a eleição de Trump em 2016. Já o programa do PT foi para os extremos do nacionalismo econômico na política industrial, nas propostas para o comércio, nas diretrizes macroeconômicas. Como escrevi na semana passada, o programa do PSL de Bolsonaro é difícil de avaliar nessas dimensões, visto que não há diretrizes ou propostas, apenas frases vazias.
A conclusão a que chego é que nesse fim de década, os eleitores – quando se preocupam com propostas – estão mais inclinados a votar naquilo que não mais representa o consenso liberal social-democrata do pós-guerra, seja lá o que isso for. O México foi para o campo nacionalista. O Brasil está prestes a entregar cheque em branco, ainda que o nacionalismo econômico não tenha sido, de forma alguma, banido do imaginário nacional. Aos vencedores, as batatas quentes.
* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

DINÂMICA ENVIESADA "Brasileiros se acostumaram a ver privilégios como direitos", CONJUR

Direitos e privilégios se confundem na cultura brasileira desde, pelo menos, o governo de Getúlio Vargas na década de 1930, mas os problemas se intensificam com a Constituição de 1988. Pelo menos é o que defende o cientista político Bruno Garschagen, autor do livro Direitos máximos, deveres mínimos, recém-lançado pela editora Record.
Em entrevista ao podcast Rio Bravo, o autor ressalta as consequências dessa confusão para o ambiente político e a segurança jurídica no país.
Segundo Garschagen, “existe uma dinâmica que se expressa na ideia de que a sociedade brasileira tem direitos e não busca esses direitos”. Ao mesmo tempo, a noção de deveres, obrigações e de assumir responsabilidades “ficou de fora do debate público”.
Ouça o podcast:
Leia a entrevista:
Rio Bravo — Minha primeira pergunta tem a ver com a proposta do seu novo livro, Direitos máximos, deveres mínimos. De um modo geral, o público hoje é bastante ligado a séries de TV — você vai entender o paralelo. Fazendo uma relação com essas produções audiovisuais, dá para dizer que Direitos máximos, deveres mínimos é uma espécie de sequência de Pare de acreditar no governo?
Bruno Garschagen —
 De uma certa forma, sim, de outra, não, ou seja, não é uma sequência no sentido de que é uma continuação, mas pode ser vista como uma sequência porque são assuntos correlacionados. No primeiro livro, Pare de acreditar no governo, eu tentei fazer uma apresentação histórica com base no intervencionismo, ou seja, como é que o intervencionismo estatal, ao longo da nossa história, criou uma política intervencionista e uma mentalidade estatista, e nesse segundo livro, como eu trato de direitos e privilégios que são oriundos do Estado, ou seja, são direitos e privilégios positivados, convertidos em leis. E ambos os livros têm como o tema principal responsabilidade individual. No caso do primeiro livro, eu tentava mostrar que a saída para essa armadilha criada por essa mentalidade intervencionista e essa cultura política intervencionista a saída era assumir a responsabilidade individual, ou seja, todos nós assumirmos a parte que nos cabe nesse latifúndio. Neste segundo livro, também eu indico, eu sugiro a responsabilidade individual para sair desse pântano que é mergulhar numa sociedade que se torna uma nação de credores, ou seja, uma sociedade que baseia as suas ações e seu comportamento numa busca desenfreada por privilégios em razão dos incentivos que existem. E aí eu também explico no livro que buscar privilégios no Brasil é uma atitude racional, e não irracional, porque quando você vive numa sociedade em que até para se proteger ou subir etapas, conquistar algumas coisas, é preciso você recorrer a privilégios, tanto no âmbito do Estado quanto fora do Estado, então buscar privilégios não é um desvio de rota, é no fundo uma maneira que a sociedade encontra para poder conquistar algumas coisas que não conseguiria a não ser dessa forma.
Rio Bravo — Como é que a sua pesquisa te levou a esse tema dos direitos no Brasil?
Bruno Garschagen —
 Uma parte da pesquisa para o primeiro livro me apresentou esse problema, ou seja, essa dimensão de uma busca desenfreada por direitos, uma discussão pública que é quase toda pautada na busca por direitos, e aí você tem na imprensa, desde os anos 1990, ou seja, a partir da Constituição de 1988, uma dinâmica que se expressa na ideia de que a sociedade brasileira não tem direitos ou tem direitos e não busca esses direitos, então há sempre um discurso por parte da imprensa, dos especialistas, dos juristas de que a sociedade brasileira devia buscar mais direitos, e essa dimensão que é importantíssima para qualquer sociedade sadia, que é deveres, obrigações, assumir responsabilidades, isso ficou completamente alijado do debate público e da própria formação do indivíduo dentro de casa. Quer dizer, os pais, além de terceirizar a responsabilidade da educação dos filhos e por causa disso, não passaram para os filhos essa dimensão que é fundamental para o indivíduo na vida em comunidade, que é assumir o dever que lhe cabe. E aí no primeiro livro volta e meia essa dimensão habitava, mas antes mesmo de eu começar a pesquisar para o primeiro livro, que é o “Pare de acreditar no governo”, eu sempre tinha como preocupação essa dimensão da esfera da responsabilidade, do dever, da obrigação, porque era algo que eu tinha em casa, era algo que eu via em algumas famílias de amigos, de colegas, mas que eu não via em vários outros amigos, em vários outros colegas e quando eu cresci e comecei a me interessar por leitura, leitura de jornal e acompanhar o debate político etc, isso quase que esvaziou, ou seja, quando alguém tratava da responsabilidade dos deveres individuais, era sempre alguém de uma geração anterior, intelectuais mais velhos, com uma formação completamente distinta daquela que muita gente da minha geração teve e que muita gente das gerações posteriores não tiveram. E aí quando eu estava elaborando o novo livro, escolhendo o tema, eu falei: “Bom, eu tenho que tratar disso, porque esse tema também toca o assunto de responsabilidade individual, que também foi o grande tema do primeiro livro, e eu poderia pesquisar para entender e depois tentar explicar por que isso aconteceu, por que nós nos tornamos uma nação de credores”.
Rio Bravo: E qual é o papel da Constituição de 1988 pra gente ter esse estado de coisas de hoje em dia?
Bruno Garschagen —
 A Constituição de 1988 é, no fundo, a conjugação, ou seja, é o resultado final de um processo que começa não com ela, mas a partir da primeira Constituição Republicana. Nós temos até agora sete Constituições, a primeira de 1824, que é a Constituição ainda monárquica, e a seguir a primeira Constituição Republicana Presidencialista, começa já – embora nem tanto quantos as posteriores – a inserir alguns direitos e privilégios, mas, de acordo com a pesquisa que eu fiz, a vaca começa a ir para o brejo de verdade, como todo o resto – e no meu primeiro livro isso fica bastante evidente – com a Revolução de 1930, a partir de Vargas assumir o poder e 1937-1945, quando nós temos o Estado Novo... O governo Vargas de 1930 a 1945, as duas fases, o Varguismo, é um período fundamental para a gente entender o país que nós temos hoje. E aí as Constituições que sucederam, a começar por aquela que foi criada pelo governo Vargas... Ela insere na Constituição uma série de direitos sociais, que no fundo são privilégios, e as Constituições seguintes não romperam com essa visão Varguista e se aproveitaram dessa visão para inserir outros direitos, outros privilégios.
Rio Bravo — Todos são contemplados nessa questão dos direitos sociais?
Bruno Garschagen —
 O livro começa com isso. O primeiro capítulo tem uma parte histórica, mas depois eu apresento a distinção entre o que é direito e o que é privilégio. Eu me baseio, fundamento essa distinção na Teoria do Direito Natural, aí uso São Tomás de Aquino, um intelectual brasileiro, o José Pedro Galvão de Sousa, que também estudou muito tanto essa dinâmica do Estado Leviatã no Brasil quanto a importância do Direito Natural. E o que eu faço, baseado em alguns autores, é dizer que o direito é aquilo que na esfera jurídica, ou seja, por meio da lei, vale para todo mundo, independentemente de religião, cor, altura, sexo etc., e o privilégio é aquilo que atende a determinados grupos de interesse. É essa a grande divisão entre o que é direito e o que é privilégio. E aí o que a gente vai ver tanto nas Constituições que precedem quanto na atual em vigor, que é a de 1988, é que alguns desses direitos sociais, no fundo, são privilégios, porque só atendem uma parcela da sociedade brasileira e não todas elas. O que é curioso é que alguns direitos naturais que deveriam ser contemplados e preservados e protegidos pela Constituição de 1988 ou não são ou são relativizados. Dois dos mais flagrantes, dos mais evidentes, que é o direito à vida... A Constituição de 1988 garante, mas o Estado não cumpre e a gente chega a 2018 com mais de 60 mil homicídios por ano, o que significa mais do que cinco anos da guerra civil na Síria. A outra coisa, além do direito à vida, é o direito à propriedade, que também é um direito natural, mas que na Constituição de 1988 está condicionada à função social. O que é a função social da propriedade? No fundo, não é nada. É o que o Hayek fala de justiça social, que ele chama de “palavra-doninha”, ou seja, aquilo que vem depois, no caso ‘social’, esvazia o sentido primeiro da justiça e, no nosso caso aqui, da propriedade e aí quando a propriedade está condicionada à sua função social, no fundo ela está condicionada àquilo que o Estado define como sendo função social da propriedade, então se o Estado determinar que a sua propriedade não atende à função social, ele permite que a sua propriedade não seja preservada, ou seja, ou ele pode tomar ou permitir que alguém tome.
Rio Bravo — Existe uma percepção junto à opinião pública no país de que a desigualdade social é o principal problema do desenvolvimento socioeconômico no Brasil. O seu livro trata desse tema da desigualdade, mas a partir de uma outra perspectiva, que destaca exatamente a mão pesada do Estado. Comenta pra gente um pouco como é que isso funciona.
Bruno Garschagen —
 Apontar a desigualdade social no Brasil como sendo o problema principal é tanto fruto de uma ignorância política, combinada com uma estupidez econômica, porque, considerando a forma como o Estado brasileiro age para desestimular, desincentivar e prejudicar a atuação da iniciativa privada, o que a gente pode deduzir disso é que o problema da desigualdade nunca será resolvido, porque você só resolve o problema – que aí é sim é aquilo que poderia ser considerado o problema principal – da pobreza. Todas as sociedades, mesmo as desenvolvidas, enfrentam graus distintos de pobreza. O que eu quero dizer com isso? O pobre dos Estados Unidos ou da Inglaterra é um pobre numa situação melhor do que o pobre no Brasil. O pobre no Brasil tem uma situação melhor do que o pobre em Botswana ou em Moçambique. Todos eles são pobres. O que acontece é que não se pode combater um problema que é gerado pela pobreza – e a desigualdade social acaba sendo uma manifestação evidente da diferença entre a parcela da sociedade que consegue alguma prosperidade econômica com aquela que não consegue. Em vez de promover a prosperidade, ou seja, permitir por meio de limpar os obstáculos, o intervencionismo do Estado, que atrapalham que a sociedade brasileira prospere, a ideia de que se deve combater a desigualdade social sempre parte do princípio de que o Estado, continuando a atrapalhar a iniciativa privada, deve buscar mecanismos e instrumentos para redistribuir essa riqueza que é criada, e aí a gente entra num círculo vicioso, que é: o Estado continua intervindo e atrapalhando a prosperidade ao mesmo tempo que tira dessas pessoas que conseguem prosperar apesar de tudo uma parte da sua riqueza para distribuir para a população mais pobre. Aí advém um outro problema, que é: essa população mais pobre que é ajudada por essa redistribuição de renda via Bolsa Família, por exemplo, essas pessoas quando saem de uma situação de pobreza extrema não têm trabalho, dependendo da cidade onde residem, porque como a economia não é pulsante, como o Estado atrapalha a economia brasileira como um todo, essas pessoas se tornam no fundo eternamente dependentes de um programa social. O problema é do programa social? Não, é um problema que é externo e que justifica a manutenção do programa social, que é uma série de mecanismos e de incentivos econômicos perversos, criados pelo Estado brasileiro... Quando eu falo Estado brasileiro, eu estou considerando os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. A mentalidade anticapitalista no STF é gigantesca, então o STF também é um obstáculo à prosperidade econômica no Brasil. Então, quando você tem esse estado de coisas que atrapalha a iniciativa privada, atrapalha a sociedade brasileira a prosperar ainda mais do que consegue prosperar a despeito e apesar do Estado, ao mesmo tempo em que cria mecanismos de ajuda aos mais pobres com a justificativa de combater a desigualdade social, o que o Estado está fazendo é: com uma mão, ajudando esses pobres e com a outra mão, atrapalhando a iniciativa privada, mantendo esses pobres na pobreza e atrapalhando essas pessoas de prosperar ainda mais e criar emprego para essa população mais pobre. O problema do Brasil é a forma como o Estado, há décadas, atua como um obstáculo sério, grave, profundo à geração de riqueza e que faz com que uma parcela numerosa da população seja pobre e dependa da ajuda estatal.
Rio Bravo — Nessa discussão em torno dos direitos máximos, qual tem sido o papel do Judiciário? No livro, você toca bastante nessa questão ao apontar o Judiciário, de um modo geral, como um braço armado dessa ideia de justiça social.
Bruno Garschagen —
 O Judiciário nada mais é do que uma instituição estatal, ou seja, quando o Estado está envolvido em qualquer demanda jurídica ou qualquer discussão que transborda para a esfera da Justiça, fica do lado do Estado, não do cidadão. Para dar um exemplo de um dos capítulos em que eu falo da Saúde no Brasil. O Estado brasileiro representado pelo Poder Executivo cria um Sistema Único de Saúde que não funciona. A Constituição promete saúde para todos, universal, o que é uma loucura, porque se a gente ler o texto constitucional, o que que o texto promete é a saúde, não é um sistema de saúde. E o que eu brinco já há alguns anos é que, teoricamente, baseado naquilo que está escrito, qualquer um que sofrer de qualquer doença pode processar o Estado brasileiro, porque o Estado não garantiu àquela pessoa se manter sã, na sua saúde, porque o que está escrito, a letra da lei é a garantia ao direito à saúde, não ao SUS, a um tratamento. Isso é uma coisa. Então, o Estado não consegue prover uma saúde estatal tal qual a Constituição garante. Quando uma pessoa que não é atendida a contento no sistema de saúde estatal entra na Justiça para, por meio de uma decisão judicial, garantir um tratamento que existe ou garantir o acesso a um medicamento que o SUS sequer oferece para todo mundo, ao fazê-lo, um juiz, um desembargador, um juiz federal ou um ministro do STF, o que ele está fazendo é garantir um privilégio específico para aquela pessoa que entrou na Justiça e venceu aquela demanda. Ao mesmo tempo em que o Estado oferece um serviço supostamente universal, mas que é para um grupo da população, mas que o gasto é gigantesco, porque supostamente deveria atender todo mundo, e o Judiciário – que foi o mote da sua pergunta – age no sentido de garantir privilégios por meio de decisões judiciais para que pessoas específicas possam ter esse privilégio de ser atendido com medicamento ou tratamento, isso de fato cria um problema. A discussão que eu trato no livro e que é uma discussão que eu sei que é incômoda é: independentemente da razão pela qual uma pessoa entra na Justiça para garantir um tratamento médico, um medicamento ou qualquer outra coisa, é um privilégio, porque isso atende essa pessoa ou, se a gente considerar qualquer outra decisão judicial, vai atender um grupo da população. Isso não vai atender à sociedade brasileira inteira, que seria o caso de um direito.
Rio Bravo — Uma última pergunta, tem a ver com outro ponto sensível do livro. Vou reproduzir aqui um trecho que eu considero um dos mais fortes que você escreveu: “A CLT é um dos exemplos emblemáticos do festival de privilégios que assola o Brasil.” Como é que isso acontece?
Bruno Garschagen —
 A CLT, que é a Consolidação das Leis Trabalhistas, não foi criada totalmente, integralmente pelo governo Vargas. O governo Vargas criou uma série de leis trabalhistas, mas existiam algumas leis que foram criadas antes do Vargas. O que o governo Vargas fez foi consolidar, ou seja, reunir toda essa legislação que estava dispersa num código específico, que passou a ser chamado de CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Esse corpo de legislação criado foi para, nada mais nada menos, do que privilegiar o empregado, aquele que era contratado. Qual foi a grande justificativa que fundamentou toda essa legislação que beneficia, que privilegia o empregado? O fundamento era: o empregado é a parte mais frágil dessa relação com o empresário e o empreendedor e, portanto, cabe ao Estado, por meio da legislação, proteger o empregado. Pode ser uma justificativa muito bonita, mas do ponto de vista prático o que se faz se você atende apenas uma parcela da sociedade é criar privilégios. A legislação trabalhista está repleta de privilégios, que podem ser privilégios justificáveis em razão dessa diferença de forças, digamos assim, para usar uma linguagem marxista que permeia esse debate, mas mesmo aquilo que é justificável continua sendo privilégio. O problema é que há uma série de privilégios que são injustificáveis. Como é que se cria uma legislação que quando há qualquer tipo de demanda jurídica em que patrão e empregado, empresário e trabalhador entra, por alguma razão, na Justiça, ou seja, há uma ação judicial, por que mais de 90% dessas decisões são favoráveis aos trabalhadores? São porque a legislação permite que, juridicamente, esses juízes trabalhem, fundamentem as suas decisões beneficiando o trabalhador. Há na Justiça do Trabalho dois problemas: um é a Legislação extremamente protecionista que privilegia os empregados e há, por outro lado, uma mentalidade ideológica na Justiça do Trabalho que faz com que os juízes, de forma geral, peguem essa legislação que é possível usar para favorecer, privilegiar o empregador, mas usem essa legislação para canalizar, a partir de uma sentença judicial, aquela ideologia de esquerda, então, é o casamento perfeito entre duas coisas que no fundo favorecem esse festival de privilégios que assola o Brasil. O que é engraçado é o seguinte: o governo de Vargas é visto como sendo um governo de direita. Eu não vou entrar aqui na discussão se é de esquerda ou de direita, não é o caso, mas o fato é que em termos de agenda político/econômica, o intervencionismo estatal do Vargas na criação de leis, no favorecimento dos trabalhadores, na visão ideológica que ele tinha dos trabalhadores, da proteção é exatamente igual ou tem a mesma natureza ideológica das ideologias de esquerdas, tanto socialistas como comunistas, então é muito fácil entender por que o PT, quando no poder, fez tantos elogios ao Vargas e fez o que pode para aprofundar e aumentar tudo aquilo que o Vargas criou em termos jurídicos, políticos e institucionais, e aí, por essa razão, eu escrevi nesse capítulo específico que a CLT é um exemplo simbólico desse grande festival de privilégios que assola o Brasil.