segunda-feira, 15 de outubro de 2018

'Não estou vendendo a minha alma ao diabo', diz FHC, OESP

Ex-presidente nega apoio automático a Haddad, critica o PT, diz que não votará em Bolsonaro e defende mudar partidos

Entrevista com
Fernando Henrique Cardoso
Pedro Venceslau, O Estado de S. Paulo
13 Outubro 2018 | 22h30
Alvo de ataques incessantes do PT por mais de duas décadas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) disse, em entrevista ao Estado, que não aceita "coação moral" dos que agora buscam seu apoio. "Quando você vê o que foi dito a respeito do meu governo, nada é bom. Tudo que fizeram é bom. Quem inventou o nós e eles foi o PT. Eu nunca entrei nessa onda." Segundo ele, "agora o PT cobra... diz que tem de (apoiar Haddad). Por que tem de apoiar automaticamente? Quando automaticamente o PT apoiou alguém? Só na vice-versa. Com que autoridade moral o PT diz: ou me apoia ou é de direita? Cresçam e apareçam. A história já está dada, a minha." E desabafou: "Agora é o momento de coação moral... Ah, vá para o inferno. Não preciso ser coagido moralmente por ninguém. Não estou vendendo a alma ao diabo". Apesar disso, ele diz que "há uma porta" com Fernando Haddad (PT), mas com o "outro (Jair BolsonaroPSL)", não. 
Como sr. vê o futuro do PSDB e avalia essa onda conservadora?
O PSDB, se quiser ter futuro, precisa se repensar. Depois de um terremoto, precisa reconstruir a casa. A onda conservadora é mundial. 
O PSDB tem mais identidade com quem neste segundo turno?
Pelo que eu vi das pesquisas, é quase meio a meio do ponto de vista do eleitorado. Em seis Estados, o PSDB ainda disputa eleição para governador. Os candidatos ficam olhando o eleitorado. Do meu ponto de vista pessoal, o Bolsonaro representa tudo que não gosto. Só ouvi a voz do Bolsonaro agora. Nunca tinha ouvido. Não creio que seja por influência do que ele diz ou pensa que votam nele. O voto é anti-PT. O eleitorado parece estar contra o PT. No olhar de uma boa parte dele, o PT é responsável pelo que aconteceu no Brasil, na economia, cumplicidade com a corrupção e etc. É possível que a maioria dos líderes do PSDB seja pró-Bolsonaro, mas não é o meu caso.
Fernando Henrique Cardoso
"Partido não deve abrir mão da democracia", diz Fernando Henrique Cardoso Foto: Leo Martins/Estadão
O sr. tem mais identidade com o Haddad?
Não posso dizer isso. Como pessoa é uma coisa, como partido é outra. A proposta que o PT representa não mudou nada. Quando fala em economia, é a nova matriz econômica. Incentivar o consumo? Tudo bem, mas como se faz isso sem investimento? Como se faz sem enfrentar a questão fiscal? O PT no poder sempre teve uma deterioração da visão do (Antonio) Gramsci da hegemonia. Aqui não é cultural, é hegemonia do comando efetivo. Quando você vê o que foi dito a respeito do meu governo, nada é bom. Tudo que fizeram é bom. Quem inventou o nós e eles foi o PT. Eu nunca entrei nessa onda. Agora o PT cobra... diz que tem de (apoiar). Por que tem de automaticamente apoiar? É discutível. (O PT) Não faz autocrítica nenhuma. As coisas que eles dizem a respeito do meu governo não correspondem às coisas que acho que fiz. Por que tenho que, para evitar o mal maior, apoiar o PT? Acho que temos de evitar o mal maior defendendo democracia, direitos humanos, liberdade, contra o racismo o tempo todo.
Nas encruzilhadas históricas, PSDB e PT se uniram. No caso de 2018 é diferente?
Não faço parte da direção do PSDB, que decidiu pela neutralidade. Cada um pode fazer o que quiser. Política não é boa intenção. Uma coisa é a minha apreciação como pessoa sobre outra pessoa. Isso não é política. Se vamos estar juntos, tem que discutir completamente. Nunca houve isso.
O PT não está colaborando para essa aproximação?
De forma alguma. O PT tem uma visão hegemônica e prepotente. Isso não é democracia. Democracia implica em abrir o jogo e aceitar a diversidade.
Já houve algum diálogo do PT com o senhor?
Não. Tenho relações pessoais e cordiais com o candidato Haddad, mas o que está em jogo é o que será feito com o Brasil. Minha preocupação não é comigo ou o PSDB, mas com o Brasil. Qual é a linha? Estão pensando que estamos nos anos 60 e 70 ou terá uma linha contemporânea? Aí não dá...
Se o PT fizesse autocrítica, seria possível apoiar Haddad?
Seria bom, mas o PT está propondo coisas inviáveis. 
O sr. vai declarar seu voto?
Quero ouvir primeiro. Não sei o que vão fazer com o Brasil. O Bolsonaro pelas razões políticas está excluído. O outro eu quero ver o que vai dizer.
Há porta aberta para Haddad?
Eu não diria aberta, mas há uma porta. O outro não tem porta. Um tem um muro, o outro uma porta. Figura por figura, eu me dou com Haddad. Nunca vi o Bolsonaro.
Haddad é diferente do PT?
Não adianta ser diferente. Haddad é a expressão do Lula. Ele usou uma máscara do Lula. Agora tirou e colocou uma bandeira verde e amarela.
Marconi Perillo foi preso. Antes foi o Beto Richa. O PSDB caiu na vala comum?
Você nunca ouviu de mim acusação contra o PT. O papel de acusar é da polícia; de julgar é da Justiça. É importante que as investigações prossigam. Você nunca ouviu uma palavra minha de defesa só porque é do PSDB. Quero que tenha direito de defesa.
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‘Não estou vendendo minha alma ao diabo’
O sr. conversou com Luciano Huck, que desistiu de concorrer. Se o PSDB tivesse lançado outro nome, talvez um outsider, a história seria diferente?
É difícil avaliar o que aconteceria com um candidato outsider. Sou amigo do Luciano Huck. É pessoa interessante, mas não sei o quanto tem habilidade para manejar os problemas do Estado. Espero que não desista. Nas circunstâncias atuais, dificilmente um candidato do PSDB, fosse quem fosse, estaria isento de sofrer as consequências do terremoto. Estamos assistindo a um terremoto. Não creio que seja o caso de culpar A, B ou C. Na situação que vivemos, você vai precisar de liderança forte, o que não significa autoritária. O governador de São Paulo tinha experiência e é uma pessoa correta, mas não teve apoio. Tentei juntar o centro antes. Ninguém quis. Não adianta ter ideia. Ideia é bom na universidade. Tem que ter capacidade de convencer. Agora, estão me cobrando: tem que fazer isso, aquilo. Tem carta, intelectual da Europa, dos EUA, amigos meus me pedem isso... Eles não conhecem o processo histórico. Nessas horas, a palavra de alguém some no ar. Cobram de mim para tomar posições. Mas eu digo: Por quê? Qual é a consequência?
Para a história, talvez?
Eu já fiz a minha história. Todo mundo sabe o que eu penso. Não preciso provar que sou democrático. Eu sou! O PSDB sabe o que eu penso. Todo mundo sabe. Alguém pode imaginar que eu vou sair por aí apoiando o Bolsonaro? Nunca.
Mas isso não significa que o sr. apoia Haddad?
Quando automaticamente o PT apoiou alguém? Só na vice-versa. Com que autoridade moral o PT diz: ou me apoia ou é de direita? Cresçam e apareçam. A história já está dada, a minha. Não vou no embalo. Não me venham pedir posição abstratamente moral. Política não é uma questão de boa vontade, é uma questão de poder. E poder depende de instrumentos e compromissos efetivos. Agora é o momento de coação moral... Ah, vá para o inferno. Não preciso ser coagido moralmente por ninguém. Não estou vendendo a alma ao diabo.
A esquerda diz que o Bolsonaro representa o fascismo.
O autoritarismo, concordo, o fascismo, não, porque é um movimento específico de apoio popular e com ideias específicas de Estado corporativo, tinha uma filosofia por trás. Não sei se ele (Bolsonaro) tem alguma filosofia por trás. Ele tem uma vontade de mandar. Não sei o que ele é. O que propôs como parlamentar foi corporativismo. Agora vai ser liberal? Pode ser. As pessoas mudam. Mas não mostrou nada.
O PSDB amargou o pior desempenho eleitoral de sua história. O que houve com o partido?
Houve um terremoto. Nele, há escombros de muitos partidos. O que ganhou na Câmaraem maior número é o PSL. As pessoas não sabem o que significa PSL. Elegeram 52 deputados, 11% da Câmara. É a fragmentação, um problema estrutural. Como levar adiante isso? Querendo ou não, vai ser preciso agrupar forças. Mas ao redor do quê? Qual a proposta para o Brasil? Os candidatos não falam.
O senador Tasso Jereissati criticou a decisão do PSDB de contestar o resultado da eleição de 2014 e de entrar no governo Temer. O que o sr. acha?
Em geral, concordo. Mas o caso da entrada no governo Temer é uma questão mais complicada. Fomos a favor do impeachment. Fui dos mais reticentes – e a todos os impeachments, mesmo do Collor. É traumático. É um processo que abala. Mas não acho que o PSDB tenha sido incoerente nisso. Quanto ao resto, ele tem razão.
João Doria e Alckmin tiveram um momento tenso. Alckmin disse não ser traidor, em referência a Doria. Como o sr. avalia?
Tenho certeza que Geraldo não é traidor. Não é do estilo dele. A eleição não está resolvida. O Doria ainda tem de disputar para saber qual será o grau de projeção dele. Não estou de acordo em apoiar o Bolsonaro. Não corresponde à minha história e ao meu sentimento. Não são os militares voltando ao poder, mas o povo abrindo espaço para a possibilidade de uma presença militar mais ativa. Os militares entenderam a função deles na Constituição. Neste momento é muito importante defender o que está na Constituição. Não estamos mais na guerra fria. As pessoas olham para o que está acontecendo no Brasil como se fosse 1964 e 1968. Havia guerra fria e capitalismo contra comunismo. Não é essa a situação que vivemos. Temos de resistir a qualquer tentativa de ferir os direitos fundamentais assegurados na Constituição. O PSDB não deve abrir mão da defesa da democracia.
E sobre a guinada liberal no PSDB que Doria defende?
Essa é uma questão do século 18. Estamos no século 21. Hoje você não tem mais a possibilidade de imaginar mercado sem regulamentação. Fake news? Tem que regulamentar. Você não pode pensar que o Estado vai substituir a iniciativa privada. Ninguém propõe controle social dos meios de produção. No passado, era isso que definia esquerda e direita. Liberal quer dizer o quê? É um falso problema.
O sr. disse, quando era senador, que a extinção do PSDB podia ser parte da solução para mudar o sistema partidário. 
O sistema partidário e eleitoral que montamos a partir da Constituição de 1988 se exauriu. A prova é a fragmentação partidária. Nós temos mais de 20 partidos no Congresso, mas não há 20 posições ideológicas. Os partidos viraram quase corporações. São grupos de parlamentares que se organizam e obtêm o Fundo Partidário e tempo de TV. Estamos assistindo à explosão desse sistema. Portanto, acredito que sim, será preciso repensar essa estrutura.
Pode-se deduzir que do PSDB poderá nascer um novo partido?
Eu não diria o PSDB, mas é preciso mudar as regras partidárias. Você não faz partido porque gosta. Quais serão as ideia-força capazes de reagrupar partidos? Não é questão puramente legal, mas de existirem ideias e líderes que debatam essas ideias. Os partidos perderam o sentido originário.

Decisão na infraestrutura é uma coisa técnica e sem paixões, diz general, FSP, RF

O general da reserva Oswaldo Ferreira, 64, se define como um guerreiro de selva.
Um dos coordenadores do plano de governo de Jair Bolsonaro (PSL), Ferreira fala do presidenciável como se ele estivesse comandando uma tropa.
No entanto, rechaça qualquer autoritarismo do candidato. “Se ele for eleito, será um governo estritamente legal.”
Ferreira defende a disciplina —“uma coisa boa para a democracia”— e a hierarquia, regras básicas nas Forças Armadas.
O general, que chegou ao posto máximo da carreira como chefe do Departamento de Engenharia e Construção, é cotado para ser ministro da área de infraestrutura.
Uma das metas, segundo ele, será a retomada de obras paradas, principalmente a BR 163, que ele construiu os primeiros 13 quilômetros há 37 anos.
O plano de concessões deve prosseguir porque, segundo ele, “com R$ 30 bilhões [de Orçamento para investimentos] por ano não vai dar”.
Apaixonado pela Amazônia, Ferreira quer rapidez no licenciamento ambiental, mas defende a floresta e o ambiente. “Há outras áreas do Brasil que podem nos proporcionar o crescimento.”

O governo Bolsonaro será autoritário?
Uma coisa que eu posso deixar claro é que nós [militares] somos democratas. E disso não abro mão.
O Exército é uma instituição democrática. A nós é dada a faculdade de, pelo mérito, atingir o mais alto posto da carreira.
Agora, temos regras marcantes: além da disciplina, uma coisa boa para a democracia, existe a hierarquia, que também faz muito bem. A tropa é uma representação da sociedade.
Bolsonaro é um capitão, e o bom chefe, o bom líder é o que dá o exemplo, e ele é justo. É assim que funcionamos.
Não quero um chefe bonzinho, quero um chefe justo. Veja que já é assim nas empresas. Aquelas que perduram mantêm a disciplina e a hierarquia.

Bonzinho a gente sabe que Bolsonaro não é. Ele será justo? Fará algo que não seja democrático?
Será um governo estritamente legal.
Se existe essa dúvida, não deveria. Não existe a hipótese de [Bolsonaro] querer coisas que não estejam previstas na Constituição.

O país está polarizado entre esquerda e direita. Bolsonaro vai conseguir apaziguar os ânimos exaltados? 
A democracia pressupõe que as pessoas tenham suas convicções e que aceitem as regras do jogo no ato da eleição.
O Rio Grande do Sul já foi governado pela esquerda e pela direita. Nem por isso o estado entrou em convulsão.
Bolsonaro, vou falar palavras dele, disse que quer ser o presidente de todos os brasileiros. Então, que reine a paz para que todos nós possamos remar o mesmo barco para frente.

Teria sido melhor vencer no primeiro turno?
Do ponto de vista da transição, sim. Teríamos mais tempo. Mas não foi possível e temos de trabalhar para poder cumprir a tarefa de conquistar mais votos.
Se ele for eleito, garanto que vai ter muita gente sem Natal e Ano-Novo [risos].

Bolsonaro propõe governar com 15 ministérios, juntar Agricultura e Meio Ambiente, e criar uma pasta de infraestrutura. Não é muito conflito de interesse para administrar?
A questão de ter rapidez no licenciamento ambiental perpassa também os Transportes, Minas e Energia, outros ramos que influenciam na infraestrutura.
Eu tenho pena do ministro [risos]. Acho que tudo isso será revisto durante a transição.

O conflito entre desenvolvimento e ambiente é histórico. Marina Silva já deixou o governo Lula por embates nessa área. Qual o plano, afinal?
No Exército, não fazemos nada sem estudos de viabilidade técnica, econômica, ambiental e social. Nenhum tijolo pode ser colocado sem estudo. Não posso construir nada sem uma licença ambiental.

O linhão de energia de Roraima será feito, por exemplo?
Qualquer contorno para não passar pela reserva [indígena] é enorme. Será viável? O que aconteceria se passássemos [o linhão] por cima da BR 174? Não estudei ainda.
O que posso dizer é que, há bem pouco tempo, eu era comandante militar do Norte e, em 2015, os índios krikati, no Maranhão, derrubaram cinco torres de transmissão de energia. Dialogamos e entramos em um acordo para reconstruir.

Que outras obras sensíveis como essa estão no seu plano?
A transposição do rio São Francisco, porque o Nordeste precisa de água. E minha obra predileta, a BR 163. Eu fiz os primeiros 13 km de asfalto, em 1980.
Em 2017, tive o prazer de acompanhar o ministro dos Transportes para fechar a cooperação para construir os últimos 65 km. É uma obra que, como outras, quero ver pronta porque interfere no custo Brasil.
A mobilidade urbana também é importante. Cuiabá tem uma questão que veio da Copa [obras paradas por irregularidades]. Em Fortaleza, tem o metrô. São mais de 2.000 obras paradas. Temos de acabar o que começamos.
Teve muita gente com iniciativa [de começar obra] e nem tanta com acabativa [sic].
De maneira geral, a prioridade será tudo o que afeta a população. Mas temos de olhar o tabuleiro sem paixões, sem partidos, é uma coisa técnica.

Não há dinheiro para tudo. O sr. sugere manter o plano de concessões de Michel Temer?
Não tem outra solução para o que não for estratégico. Isso é uma posição do Bolsonaro e do Paulo Guedes [principal assessor econômico do candidato]. Precisamos de solução já para a infraestrutura e com R$ 30 bilhões de Orçamento por ano não vai dar.
Em 2001, viajei de carro de Brasília para Belo Horizonte. Era um jogo de videogame, desviando de buraco. Hoje, tem zero buraco. A rodovia foi concedida à iniciativa privada. E tem pedágio. Mas uma roda quebrada paga várias viagens.
Em Mato Grosso, por exemplo, é preciso uma solução de rodovia para o escoamento da safra. E, como ela vai dobrar, será preciso ferrovia, outros modos de transporte.
Há vários projetos, a Ferrogrão, a Fico, a Fiol, a Ferrovia Norte-Sul. O projeto da Ferrogrão, por exemplo, cruza a floresta amazônica. Eu defendo o aumento da produtividade [agrícola], mas sem precisar tocar na selva.

Então a Ferrogrão está fora?
Precisamos estudar. No momento, precisa de solução para a BR 163. Depois, ferrovia.

Existem obras paralisadas em decorrência da Lava Jato. O que fazer com Angra 3 e o Comperj, por exemplo?
O que posso dizer é que, se for para encerrar Angra 3, teremos de pagar R$ 12 bilhões em rescisões contratuais. Para concluir, serão R$ 17 bilhões.
No Comperj, já foram investidos R$ 12,5 bilhões. Faltam R$ 8 bilhões. Essa é a matemática que precisa ser colocada.

O que pode ser privatizado?
Considero que o refino e a distribuição de petróleo possam ficar com a iniciativa privada. O caso da Eletrobras precisa ser conversado.

Oswaldo Ferreira, 64
General da reserva do Exército. É engenheiro pela Academia Militar das Agulhas Negras, escola de ensino superior do Exército. Foi comandante do Comando Militar do Norte, de fevereiro de 2013 a dezembro de 2015. Chefiou o Departamento de Engenharia e Construção, entre 2013 e abril de 2017.

A agricultura paulista nas mãos da Justiça, Evaristo de Miranda, OESP


15 Outubro 2018 | 03h00  (pode virar pauta https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2015/lei-15684-14.01.2015.html

Os agricultores paulistas dedicam à preservação da vegetação nativa mais de 4,1 milhões de hectares. Reservas legais, áreas de preservação permanente e remanescentes, mapeadas e registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), representam 22% da área total dos imóveis. E a exigência legal é de 20% de preservação.
Esses dados mostram que a longa história agrícola de São Paulo não produziu passivo ambiental significativo. E os imóveis que, por diversas razões, ainda não atendem às exigências legais poderiam recorrer ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Porém, ao contrário do restante do Brasil, os agricultores paulistas não têm como se ajustar: o Programa de Regularização Ambiental está suspenso por ação de inconstitucionalidade. O impasse prejudica a agricultura e o meio ambiente.
Até o advento do Cadastro Ambiental Rural, a contribuição dos agricultores paulistas à preservação ambiental era subestimada. Criado pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012), esse registro eletrônico obrigatório se tornou um relevante instrumento de planejamento agrícola e socioambiental. Em São Paulo, até o final de agosto mais de 338 mil imóveis rurais (quase 19 milhões de hectares) detalharam a sua situação no CAR sobre fotos aéreas, com um metro de detalhe.
A Embrapa Territorial analisou o bigdata de dados geocodificados dos produtores. Mais de 290 mil pequenos agricultores (com áreas até quatro módulos fiscais) preservam 17% de suas terras, apesar das exigências menores da legislação ambiental nesse caso. Os quase 36 mil agricultores médios (quatro a 15 módulos fiscais) preservam 20%. E os 12 mil grandes produtores (mais de 15 módulos fiscais) preservam, em média, 26%. Quanto maior o imóvel, mais preserva, em termos absolutos e relativos. Agricultores que ainda não atendem a alguma exigência do Código Florestal são poucos. E com o CAR eles se declaram interessados em regularizar a sua situação.
Vale notar que ter menos de 20% da vegetação nativa não significa irregularidade ambiental! O artigo 68 do Código Florestal dispensa de recompor ou compensar a reserva legal quem desmatou em conformidade com a legislação do tempo. Áreas desmatadas desde Martim Afonso de Souza até a epopeia do café (século 19) e a ocupação dos cerrados (século 20) estão dispensadas de tal obrigação. Essa lei do tempo alcança boa parte dos agricultores paulistas. Existem imóveis com 5% ou 10% de vegetação nativa e em situação regular. Eles foram desmatados quando não havia essa exigência de preservação. E podem demonstrar tal condição no Programa de Regularização Ambiental. Mas sem o programa imperam a insegurança e as arbitrariedades no mundo rural.
A lei paulista do PRA (15.684/2015) impugnada na Justiça não contém nenhum elemento de retrocesso ambiental. Ela não modificou nenhuma situação jurídica. Apenas confirmou e regulamentou questões hoje já decididas favoravelmente ao Código Florestal de 2012, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937. O julgamento assentou inexistir qualquer retrocesso na codificação florestal em vigor. A decisão de constitucionalidade reconhecida pelo STF deve vincular o julgamento final do PRA paulista. E, por subordinação lógica, esvaziar a discussão dos artigos questionados na lei paulista.
O artigo 68 da lei federal, por exemplo, foi declarado constitucional por todos os ministros do STF, em obediência aos princípios de legalidade, irretroatividade e direito adquirido para quem respeitou a cronologia da legislação vigente, anterior ao Código Florestal de 2012. As leis estabeleceram, ao longo dos tempos, uma proteção gradativa e crescente para distintas modalidades de vegetação nativa no País. Como um agricultor preservaria com base em leis futuras? Em termos jurídicos é o que propõe a ADI contra o artigo 27 da lei paulista, ao retomar argumento surrado já utilizado nas ADIs no STF e negado por decisão da Corte Suprema.
Nos Estados da Federação, os Programas de Regularização Ambiental foram disciplinados da maneira mais ampla possível. Em muitos a implementação se deu por decretos. Em alguns, por resoluções, portarias e instruções normativas, para as quais não houve necessidade de participação popular. Ora, o Projeto de Lei paulista 219/2014 contou com a devida participação pública em sua tramitação e, apesar disso, produziu tal impasse.
Segundo cálculos da Embrapa, se, hipoteticamente, os 4,1 milhões de hectares dedicados à preservação nos imóveis rurais paulistas fossem vendidos pelo preço de mercado em cada município, o total desse valor fundiário imobilizado seria de R$ 170 bilhões. Que categoria profissional imobiliza tal valor de seu patrimônio pessoal e privado em prol do meio ambiente em São Paulo? Apenas e tão somente os agricultores!
É tempo de reconhecer o papel relevante da agricultura paulista na preservação da vegetação nativa, em índices superiores aos exigidos pela legislação ambiental, mesmo sem se considerar o desmatamento que respeitou a lei do tempo. Dentro das fazendas estão preservados 15% dos cerrados, mais de 1,2 milhão de hectares. É 25 vezes mais do que as unidades de conservação e terras indígenas (0,6% dos cerrados). A agricultura paulista preserva 17% da Mata Atlântica, ante 6% nas áreas protegidas. É bem mais que o dobro!
O julgamento do STF das ADIs 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937 pacificou os últimos questionamentos do Código Florestal. É tempo de tirar a agricultura paulista das mãos da Justiça, onde nunca deveria ter entrado. E declarar a constitucionalidade da sua lei do PRA. Não é a lei, mas, sim, sua impugnação na Justiça que há três anos provoca um efetivo retrocesso ambiental e impede a participação popular.
DOUTOR EM ECOLOGIA, É CHEFE-GERAL DA EMBRAPA TERRITORIAL