segunda-feira, 15 de outubro de 2018

País perde com 2º turno sem debate entre candidatos nem discussão profunda de propostas, FSP

Instituído pela Constituição de 1988, o sistema de votação em dois turnos faz com que o vencedor assuma o poder legitimado por mais de 50% dos votos válidos.
Assim fosse lá atrás, teríamos em 1955 um segundo turno entre Juscelino Kubitschek e Juarez Távora. 
Na ocasião, JK foi eleito com 35,68% dos válidos, cinco pontos a mais que o segundo colocado e dez à frente do terceiro lugar, Adhemar de Barros. 
Cinco anos depois, Jânio Quadros chegou à Presidência com 48%, uma vitória de 16 pontos sobre o marechal Lott, o candidato do governo JK.
E se houvesse segundo turno naquele período? JK poderia ter sido derrotado e Brasília nem existido (para alegria de muitos). O Rio seria a capital até hoje. Talvez o país não tivesse vivido a tempestade dos sete meses de Jânio e quem sabe os anos seguintes, que levaram à derrubada de João Goulart e ao golpe militar de 1964, teriam sido diferentes.
Em meados dos anos 90, setores do Congresso flertaram com a revogação do modelo então recém-criado.
Passados 30 anos da Constituição, parece não haver dúvidas de que o sistema é justo. Não só porque evita a eleição de um presidente sem a maioria. A regra permite ao eleitor comparar dois projetos de poder e mergulhar com profundidade em questões tantas vezes desprezadas em uma disputa muito pulverizada.
O segundo turno oferece a oportunidade de debate entre os finalistas —seja para analisar melhor o que pensam, seja para verificar o comportamento diante de um adversário.
As eleições de 2018 caminham para um desfecho com pouca discussão sobre propostas e chances enormes de não haver encontro entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT). Perde o país, perde o eleitor.
O segundo turno já está arranhado pela neutralidade de partidos do porte de MDB, PSDB e DEM, como se não fossem responsáveis pelo Brasil recente. Só não foram piores que o PDT, que inventou um“apoio crítico” a Haddad, tendo seu candidato e terceiro colocado, Ciro Gomes, rumado para a Europa logo depois.

O perigo de governar no varejo, FSP

Bruno Carazza
Bolsonaro tem sinalizado que vai privilegiar negociações individuais e com bancadas
O Partido Social Liberal (PSL), de Jair Bolsonaro, surpreendeu e ampliou o número de membros na Câmara dos atuais 8 para 52 deputados federais. Apesar de se cacifar como a segunda maior bancada na próxima legislatura —logo atrás do PT, que alcançou 56 cadeiras—, os correligionários de Bolsonaro representarão pouco mais de 10% dos votos disponíveis.
Caso seja eleito, Bolsonaro terá diante de si o mesmo desafio de seus antecessores desde a redemocratização brasileira: já que seus partidos isoladamente são minoritários, precisam construir uma coalizão suficiente para garantir a aprovação de suas propostas legislativas. Para agravar sua situação, esse Congresso será o mais fragmentado dos últimos tempos. Além de contar com 30 partidos com representantes na Câmara, as maiores siglas (MDB, PT, PSDB) perderam peso, e os partidos do chamado Centrão aumentaram sua importância.
Àqueles que questionam a sua capacidade de lidar com esse problema de governabilidade, Bolsonaro tem dito que não pretende se aliar a determinados partidos por fisiologismo, e acena com negociações individuais de acordo com os temas em debate. Além disso, pretende contar com as bancadas temáticas para superar a lógica partidária. Aliás, duas das principais frentes parlamentares —as bancadas ruralista e evangélica— já fecharam questão com o líder das pesquisas.
A ideia de Bolsonaro faz sentido no seu discurso antissistema. A amplitude da base governista durante os mandatos de Lula e Dilma (mas também no de FHC) levou a denúncias de loteamento de cargos públicos, liberação enviesada do orçamento e corrupção em estatais. Abandonar a prática de conceder nacos do poder a determinados partidos, na base da “porteira fechada”, em troca de apoio em votações seria, na visão do capitão reformado, um novo modo de fazer política.
Com sete mandatos de experiência no Congresso, Bolsonaro sabe melhor do que ninguém que os partidos vêm perdendo seu poder no plenário diante da crescente influência das frentes parlamentares suprapartidárias. As bancadas ruralista, evangélica e da segurança pública (boi, Bíblia e bala) são a representação de um movimento que cresce a cada legislatura. No momento em que os grandes partidos perdem força diante do amorfo Centrão, Bolsonaro quer apostar nas negociações com os representantes desses grupos de interesses que controlam dezenas de deputados e senadores.
No entanto, deixar de governar no atacado — ou seja, compartilhando o poder com alguns partidos — para investir em negociações caso a caso, no varejo, com bancadas temáticas, tem riscos elevados.
Em primeiro lugar, essa estratégia exigirá grande habilidade e paciência de um eventual futuro presidente cujo histórico revela ser muito mais do confronto do que da conciliação. Passada a tradicional lua de mel dos primeiros cem dias de governo, cada movimento de peças no tabuleiro do Congresso será um teste para os supostos nervos de aço de Bolsonaro.
Negociar com as bancadas a cada votação também tem grandes problemas de coordenação. Ao contrário do que o senso comum supõe, os partidos no Brasil são disciplinados e fiéis ao posicionamento de seus líderes. As bancadas temáticas, contudo, só costumam fechar questão quando o assunto lhes traz benefícios concretos. Sendo assim, uma coisa é contar com os ruralistas para reformar o Código Florestal, por exemplo. Outra bem diferente é contar com sua unidade quando precisar aprovar a reforma da Previdência.
Por fim, há o custo fiscal e regulatório. Enquanto os partidos negociam para ter mais cargos e fatias do orçamento, bancadas que representam interesses cobram um preço diferente. Se são empresariais (como a ruralista), querem subsídios, renegociação de dívidas, crédito barato, regulação ambiental mais frouxa. Já as temáticas (religiosas ou da segurança) jogam visando a aprovação de suas pautas no campo dos costumes. E temos também as corporativas (como as de categorias do serviço público), sempre em busca de reserva de mercado e a manutenção de privilégios.
O Brasil precisa de um novo jeito de fazer política. Mas é preciso ter cuidado, pois sempre é possível piorar o que já não funciona bem.

Bruno Carazza, doutor em Direito e mestre em Economia, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras) e do blog “O E$pírito das Leis”.

domingo, 14 de outubro de 2018

Compromisso com o defeito, FSP

Bolsonaro é parlamentar há quase três décadas, o que não faz dele um democrata

Os dois assumem o “compromisso com a democracia” cobrado de ambos por editoriais escritos e falados. O inverso cairia melhor, com os cobradores cobrados por um compromisso com a democracia, sobretudo na TV. Mas vá lá.
A cobrança a Haddad não tem sentido, inexistindo atitudes ou palavras suas de conotação antidemocrática. Nem as tiveram as presidências petistas.
A cobrança a Bolsonaro deu ao bolsonarismo, inclusive o disfarçado, a resposta contra os que apontam o seu autoritarismo: “ele assumiu o compromisso”. Mais do que duvidoso.
Sem ter escritos, Bolsonaro adaptou o lema de Fernando Henrique: “esqueçam o que eu disse”. A Petrobras já entrou e saiu da lista de privatizações várias vezes. Paulo Guedes já foi “o posto Ipiranga” que acumularia diversos ministérios, caiu a conselheiro sem poder de decisão, e ainda não parou de subir e descer, repetido e contestado.
O mesmo com o general Mourão. Estaríamos todos armados, sendo este o plano contra a criminalidade, e logo uma parte foi desarmada, voltou à condição policial, e não se sabe mais.
Assim ocorre com todas as afirmações de Bolsonaro, remotas ou recentes. Um traço pessoal que desacredita todo compromisso seu.
O “compromisso com a democracia” tem, no entanto, uma causa mais expansiva de invalidade. No laboratório do candidato, o que está em elaboração pode-se chamar de nada menos do que um governo dos generais.
Em presença numérica, sim, como já informado por Bolsonaro: “o governo vai ter militares em muitos postos”, “vão ser só 15 ministérios, uns cinco vão ter ministros militares”. Mas, além do número, há a índole que conduz esses militares.
Os generais hoje na reserva são os capitães, majores, coronéis do suporte à ditadura. Foram formados no autoritarismo e para o autoritarismo.
É nisso que faz a identificação mútua entre o grupo de generais e Bolsonaro, entre a corporação militar e Bolsonaro. 
É a concepção de militar sem contribuição intelectual, desde que a escola francesa foi aqui substituída, com a chegada da Segunda Guerra Mundial, pela instrução americana, mecanicista e sem cultura.
Por oito anos, iniciados no governo Lula e terminados ao começar o segundo mandato de Dilma, o general Enzo Peri conseguiu a façanha, como comandante do Exército, de manter sua oficialidade em estrito profissionalismo, respeito à Constituição e à margem da política.
Aeronáutica e Marinha já seguiam essa linha, e continuaram. O sucessor de Enzo Peri, general Villas Boas, não teve a mesma firmeza, à falta da mesma convicção. O escorpião da anedota outra vez provou sua advertência psicológica e sociológica.
Ser parlamentar não é sinônimo de democrata. Bolsonaro é parlamentar há quase três décadas, mas não é democrata. Já disse e fez muito mais do que o necessário para demonstrá-lo.
O divulgado como seu programa não contém nenhuma proposta, por mínima que seja, destinada a fortalecer o incipiente regime democrático.
Dos generais que compartilham esse programa, nada se ouviu naquele sentido, hoje ou no passado. Bem ao contrário.
A verdade é que compromisso constitucional configura um desafio histórico e moral para as Forças Armadas da América Latina. É por defeito de fabricação. E não tem recall.
Janio de Freitas
Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha.