No país da meia-entrada, não surpreende que prosperem também os meio-liberais, a turma que aceita os postulados do liberalismo na economia, mas os rejeita nas outras esferas da vida. Esse pessoal está em vias de chegar ao poder, com a provável vitória de Jair Bolsonaro.
Como liberal pleno, acredito que cada um deve ser tão livre quanto possível para fazer o que quiser, o que inclui misturar manga com leite, marxismo com teologia cristã e liberalismo com autoritarismo. Julgo, porém, que, em situações assim, é nosso dever apontar as contradições que tornam essas combinações incongruentes. Analisemos o caso de nossos meio-liberais.
O liberalismo aparece em diversos tamanhos e sabores. Inclui desde Kant até Stuart Mill, passando por Rawls e Keynes. De comum, todos eles fazem uma aposta metafísica na liberdade do indivíduo, seja como valor intrínseco, seja como ferramenta para resolver problemas.
Um aparente estremecimento na relações entre Bolsonaro e seu assessor ocorreu na corrida presidencial após a revelação de que a dupla cogitava criar um imposto nos moldes da extinta CPMF -Facebook /Repdoução
No caso da economia, temos evidências de que a aposta instrumental é correta. Sistemas de mercado, em que cada agente atua de forma mais ou menos livre, funcionam melhor do que as economias organizadas por um planejador central.
E não temos nenhuma razão física ou metafísica para restringir ao campo da economia a aposta na liberdade. É no mínimo exótico achar que o indivíduo é o melhor juiz para escolher qual carreira ele deve seguir e onde vai vender seus produtos, mas não para decidir como e com quem vai fazer sexo consensual, que substâncias ingerirá e que livros poderá ler.
O meio-liberal que defende ou tolera restrições à liberdade sexual, intromissões do Estado na privacidade e censura precisa no mínimo explicar por que a aposta que ele exalta na economia não valeria para as outras dimensões da vida. Em outras palavras, precisa explicar como concilia seu liberalismo econômico com o iliberalismo comportamental tão escancarado na agenda de seu candidato.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
Eleito o novo Congresso e definidos os dois finalistas na disputa pela Presidência da República, o país ainda se vê diante de grandes incógnitas quanto à agenda dos próximos anos e sua viabilidade.
Estão longe de claros os planos de Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) para lidar com questões cruciais da crise econômica. Além do mais, mostra-se incerta a conformação política do novo Parlamento no que diz respeito a lideranças que possam organizar a base de apoio ao futuro presidente.
Houve grande mudança na Câmara dos Deputados. Embora tenha causado espécie a taxa de renovação, com presença maior de novos deputados, não é essa a novidade mais relevante.
Os recém-chegados são cerca de 52% da Câmara, taxa maior que as registradas de 1998 a 2014 —quando, no entanto, jamais caíram abaixo da casa dos 44%. Mais significativa tende a ser a nova correlação de forças entre os partidos.
As legendas que desde os anos 1990 costumavam disputar o comando da Casa e organizar coalizões de governo encolheram. As bancadas de MDB, PSDB e DEM somavam em torno de 240 deputados (perto da metade do total de 513) até 2006. Já haviam caído para 141 cadeiras na eleição de 2014; neste ano, somente 92.
Tal queda reflete em parte o aumento da fragmentação partidária, que voltou a bater recorde neste pleito, e também o desprestígio de partidos de centro mais claramente identificados ao establishment.
A segunda maior bancada foi formada pelo PSL de Bolsonaro, que passou de 1 eleito em 2014 para 52 deputados. Não se conhece nem a disposição do partido nem de seu líder de formar coalizões. O candidato reafirma a cada momento que não fará composições de poder com outras siglas.
A esquerda praticamente manteve seu tamanho, com 136 deputados. Os partidos do chamado centrão —ao menos os sete que permaneceram unidos em torno da candidatura de Geraldo Alckmin(PSDB)— também conservaram seu peso, com 186 parlamentares.
Uma vitória de Haddad obrigaria o PT a se coligar com mais de uma ou duas dezenas de partidos conservadores ou fisiológicos, tarefa das mais difíceis no ambiente de polarização política no país.
Já Bolsonaro teria de contar com grande fidelidade de quase todas as legendas, excluídas as de esquerda, a fim de formar maioria confortável para aprovar reformas.
A fragmentação partidária, de resto, torna ainda mais incerta uma disputa que costuma ter consequências importantes para a estabilidade do Parlamento e de suas relações com o Executivo —aquela pela presidência da Câmara.
Somem-se a tais incertezas as dúvidas sobre programas e comportamento do presidente. As condições de governo no novo cenário congressual estão por ser conhecidas.
A indignação das classes médias brasileiras escrachada agora pelas urnas vem sendo vista como parte do mesmo fenômeno manifestado em outros países. Mas tem lá suas peculiaridades.
Nos Estados Unidos, as classes médias indignadas elegeram Donald Trump e aparentemente gostam do que ele faz na Casa Branca. Na Itália, apareceram antes, com Silvio Berlusconi, e agora atuam sob outro comando do ministro do Interior, Matteo Salvini. Na Alemanha, puxam nova oposição de radicais de direita contra a chanceler Angela Merkel. Na França, apoiam a ultradireitista Marine Le Pen. Mas também vicejam na Áustria, na Hungria, na Polônia e na Turquia.
Bolsonaro e Haddad na disputa Foto: Wilton Júnior e Tiago Queiroz / Estadão
Quatro movimentos históricos alimentaram e parecem unificar essa indignação. O primeiro deles é a enxurrada de produtos industrializados baratos da China e do resto da Ásia que esvaziaram a indústria e o emprego no Ocidente, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. O segundo é a cada vez mais intensa utilização de tecnologia da informação no setor produtivo, que dispensa cada vez mais mão de obra, destrói empregos e semeia insegurança. O terceiro fator que tira o chão das classes médias e espalha ressentimento é a crescente incapacidade dos Estados de garantir o mínimo de benefícios sociais (aposentadoria, seguro-desemprego, saúde fundamental, educação para todos e segurança). E, quarto fator, em parte impulsionado pelos anteriores, é o aumento da migração de pobres e refugiados para os países mais ricos, o que aumenta a sensação de que mais gente está inviabilizando a vida de quem tanto luta para mantê-la.
A insatisfação dos remediados não é novidade. Sempre esteve aí, às vezes mais explícita e outras, latente, porque essa gente sempre teve tolhida sua aspiração de ascensão social e de acesso à renda. A sociedade alimenta sonhos cuja realização não consegue entregar e isso frustra e revolta. No passado, muito dessa revolta foi resolvida por meio de guerras ou, simplesmente, por alguma distribuição de pão e de jogos de circo, recursos que perderam eficácia.
Essa percepção de fracasso e de prostração teve até recentemente poder limitado de produzir mudanças políticas. O que mudou foi o alcance da comunicação instantânea, graças à internet, às redes sociais, ao celular e ao WhatsApp, que produziram enorme capacidade de mobilização.
Os próprios intelectuais não davam importância aos movimentos das classes médias. Os marxistas, por exemplo, viam a chamada pequena burguesia como mero instrumento das classes dominantes e seus movimentos (ou a falta deles), como manobras de dominação exercida na luta de classes. Não viam as classes médias como categoria social relevante. São conceitos que agora estão à espera de revisão, até mesmo no que tinham de correto.
A indignação das classes médias brasileiras apareceu mais intensamente nas manifestações de 2013, até agora não atendidas. Também tiveram como fatores detonadores a recessão, o desemprego crescente, a falta de perspectivas profissionais, a insegurança provocada pelas políticas econômicas desastradas do período Dilma. Mas, diferentemente do que aconteceu com outros movimentos de indignação ao redor do mundo, também se avolumaram em consequência do brutal e instantâneo conhecimento da existência de uma vasta rede de corrupção, revelada sucessivamente pelas denúncias dos anões do Congresso, do mensalão, do petrolão e das atividades ilícitas ligadas a grandes empreiteiras.
Como lidar e, sobretudo, como consertar tudo isso é que são elas. As esquerdas do PT estão perplexas e desesperadas. Não sabem nem o que fazer com seu discurso. Bradaram que o impeachment foi golpe, mas atiraram-se aos conchavos com os golpistas.
Pretenderam ser “uma ideia”, mas não conseguem sequer reconhecer que pilharam o patrimônio público e afundaram a economia. Basearam sua estratégia na palavra de ordem “Lula livre”, mas agora o escondem e o tiram até mesmo do material de propaganda. Sugerem nos acréscimos do tempo de jogo a concertação para uma união nacional, mas parecem não perceber que foram eles que produziram o Bolsonaro e toda a rejeição a eles.
Bolsonaro, por sua vez, apresenta pouquíssimas credenciais. Nunca chegou a administrar nem sequer um condomínio residencial. Ele se confessa ignorante em matéria de política econômica, saúde pública, em educação. Quando avisa que vai enfrentar tudo a bala e quando humilha as minorias, tende a provocar ainda mais violência e mais desconsideração.
Dizer que no fim vai dar tudo certo é pretender saídas mágicas do buraco em que se meteu o Brasil.