sábado, 29 de setembro de 2018

O Trump deles e o nosso, Demétrio Magnoli, FSP

Bolsonaro provoca amores fulgurantes e ódios incontidos em núcleos minoritários

Jair Bolsonaro imita Donald Trump. Bolsonaro sonha ser Trump. Não poucos creem que Bolsonaro é, realmente, o “nosso” Trump —e profetizam ou temem uma surpresa eleitoral semelhante à dos EUA. Contudo, ao menos do ponto de vista eleitoral, o nosso Trump ocupa lugar bem diferente do que ocupou o Trump deles.

Num nível bem simples, a distinção crucial é que o Trump original candidatou-se pelo Partido Republicano, cuja influência estende-se a quase metade do eleitorado, enquanto o Trump tropical representa uma sigla marginal. Num nível mais profundo, a diferença é que eles apelam a eleitorados opostos. O magnata emergiu como representante do “homem sem rosto”, dos órfãos da globalização —os “deploráveis”, no desastroso, preconceituoso termo cunhado por Hillary Clinton. No Brasil, os “deploráveis” rejeitam Bolsonaro e votam em Lula (ôoops, em Haddad). 

Uma lenda urbana diz que o Trump original venceu graças às suas declarações machistas, homofóbicas e xenófobas. De fato, elas serviram para aquecer o núcleo minoritário de seus seguidores incondicionais. Mas o triunfo eleitoral deu-se apesar delas. O segredo da vitória trumpiana encontra-se na plataforma do nacionalismo econômico, desdobrada nas vertentes do protecionismo comercial (China) e da 
proteção do emprego americano (imigrantes hispânicos). O discurso antiglobalização (America First) ofereceu uma falsa resposta a dilemas verdadeiros, seduzindo os eleitores de classe média-baixa concentrados em estados decisivos do Meio-Oeste. Os brancos pobres votaram no Trump deles.

O Trump deles prometeu parar o declínio econômico por meio de uma restauração nacionalista. O nosso Trump promete parar o declínio moral por meio de um governo autoritário, ancorado no conservadorismo de costumes, ignorando as angústias materiais dos “deploráveis”, que ficam com o lulismo. Segundo as pesquisas, Lula (ôoops, Haddad) bate Bolsonaro por 57% a 22% entre eleitores na faixa de até um salário mínimo. 

A seita ultraliberal brasileira que aderiu ao nosso Trump evidencia abismal ignorância histórica quando tenta mimetizar o “liberalismo” de seu ídolo americano. O Trump original combina ultraliberalismo “para dentro” (desregulamentação, corte radical de impostos) com nacionalismo econômico “para fora” (protecionismo, restrição à imigração). No Brasil, não há como replicar a duplicidade trumpiana, pois a China e os imigrantes, espantalhos do Trump deles, nada significam para a nossa massa de pobres. 

Por aqui, os “deploráveis” anseiam pelo amparo estatal direto, nas formas de salário mínimo, aposentadorias e bolsas. O Estado paternalista desenhado pelo lulismo responde a tais expectativas. Já o Estado mínimo esboçado pelas sandices de Paulo Guedes interessa apenas a especuladores agnósticos e crentes fanáticos da religião secular do Deus-mercado.
 
O Trump original passou a campanha falando essencialmente sobre economia e emprego, enquanto Hillary desfiava o interminável novelo do multiculturalismo. O Trump tropical fala sobre homossexuais, mulheres, moral e cívica, Deus e armas, relegando o discurso econômico a um “embaixador para o mercado”. 

De certo modo, o nosso Trump é Hillary, mas com sinal invertido. Precisamente por isso, provoca amores fulgurantes e ódios incontidos em núcleos minoritários de eleitores imersos numa crônica “guerra cultural”, mas apenas um circunstancial engajamento antipetista ou o solene desprezo entre os demais. Sua chance de alcançar o segundo turno deriva, exclusivamente, da extensiva rejeição ao PT e da monumental falência do PSDB. 

O nosso Trump é o sonho de consumo de Haddad. No turno final, o avatar de Lula teria o duplo privilégio de falar como representante dos pobres, contra os ricos, e como campeão das liberdades e da democracia, contra o autoritarismo. É vitória certa.
 
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

    Oposição a Bolsonaro repete erros dos EUA , por Brian Winter, FSP


    Brian Winter
    Nos dias finais da campanha eleitoral de 2016 nos EUA, a sociedade polida enfim se uniu contra Donald Trump.
    Celebridades e políticos assinaram manifestos que o denunciavam como misógino e racista e argumentaram sobre a importância da democracia como questão de princípio.
    As hashtags #NeverTrump e #NastyWomen (Trump Nunca e Mulheres Desagradáveis) tomaram o Facebook e o Twitter. Os eventos finais de campanha de Hillary Clinton incluíram expressões de apoio irrestrito por Beyoncé, Bruce Springsteen e Lady Gaga.
    Para alguém que vivia em lugares como Los Angeles, Chicago e Nova York (era o meu caso), parecia não haver maneira de Trump vencer.
    Estávamos errados, é claro.
    Tudo isso me veio à memória nos últimos dias, em que #EleNão e #EleNunca vieram a dominar a mídia social no Brasil, e celebridadescomo Gilberto Gil, Mano Brown e o Black Eyed Peas vieram a público para se opor a Jair Bolsonaro.
    Os países e candidatos são diferentes, eu sei, mas os argumentos são bizarramente parecidos. E pode-se perceber que um determinado segmento da sociedade brasileira —a centro-esquerda pró-democracia, o tipo de gente que lê (e escreve) colunas em jornais como a Folha— está começando a relaxar, um pouquinho. "Viu só? As pessoas civilizadas estão se unindo. Tudo vai ficar bem."
     
    O que aconteceu nos Estados Unidos, então? Basicamente, Hillary e seus partidários se concentraram tanto na oposição a Trump que se esqueceram de falar sobre as questões que importavam para a maioria dos eleitores: desemprego, imigração e assim por diante.
    Jamais esquecerei de uma mulher que estava assistindo a um comício de Trump: questionada por um repórter de TV como ela justificava votar em um homem como ele, ela respondeu: "Trump pode dizer o que quiser, desde que ajude meu marido a arrumar emprego", foi a resposta.
    No Brasil, as pesquisas de opinião pública indicam que as questões mais importantes para os eleitores incluem a economia, a corrupção e o crime. A verdade é que Fernando Haddad e o Partido dos Trabalhadores têm enorme dificuldade para lidar com as três.
    O PT causou a pior recessão do Brasil em um século, seu principal líder está na cadeia, e o crime disparou nos 13 anos em que o partido esteve no poder.
    Portanto, a tentação de transformar o segundo turno em referendo sobre Bolsonaro —e a democracia— será ainda mais forte para o PT.
    As declarações mais incendiárias de Bolsonaro serão repetidas incessantemente na propaganda eleitoral e no Facebook, e intelectuais e celebridades falarão sobre a importância da democracia e os direitos das minorias.
    Isso ecoará de modo positivo em alguns círculos, que incluem a elite —Fernando Henrique Cardoso pode apoiar Haddad, por exemplo, da mesma forma que John McCain e George W. Bush romperam com Trump.
    Mas, no geral, acredito que essa estratégia se provará ainda menos efetiva do que foi o caso nos Estados Unidos.
    Tragicamente, depois de quatro longos anos de escândalo e crise econômica, apenas 8% dos brasileiros dizem que a democracia representativa é uma forma de governo "muito boa", o menor total entre os 38 países pesquisados pelo Pew Research Center. Os argumentos quanto à sua importância certamente serão recebidos com pouca simpatia.
    Como aqui, os eleitores em lugar disso se deixarão seduzir pela promessa de soluções simples —ainda que nada realistas— para problemas mais tangíveis.
    Suponho que a versão brasileira da mulher entrevistada no comício de Trump diria: "Bolsonaro pode dizer o que quiser, desde que seu governo não roube e eu possa caminhar pela rua em segurança".
    Para Haddad e o PT, isso significa que o caminho mais efetivo seria combinar ataques contra Bolsonaro a uma agenda clara quanto aos problemas mais urgentes do Brasil.
    Isso inclui uma estratégia nacional mais efetiva de combate ao crime, reconhecimento dos erros passados do partido quanto à corrupção e deixar claro que a política econômica será mais parecida com a do primeiro mandato de Lula do que com a do primeiro mandato de Dilma.
    Isso é pedir muito, dada a recente insistência do partido quanto a narrativas de perseguição e nostalgia. Talvez seja impossível. Mas o futuro da democracia brasileira pode depender disso.
    Brian Winter é editor chefe da revista Americas Quarterly