sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O advogado das causas invisíveis, El Pais

João Tancredo cobra indenizações por crimes cometidos pela polícia contra cidadãos pobres, como o pedreiro Amarildo

O advogado João Tancredo, no seu escritório, no Rio. M. Martín
As mortes dos clientes deste advogado são quase todas invisíveis. Acontecem no silêncio da noite, no beco de alguma favela, e a agonia das vítimas, a maioria sem um real no bolso, só é vista por seus algozes, policiais. Às vezes, a brutalidade de alguns desses assassinatos, um familiar revoltado, uma pista ou uma gravação com um celular tornam subitamente esses invisíveis em crimes famosos e atrás deles, na grande maioria dos casos, está ele: João Tancredo. O advogado, de 59 anos, orquestra há 30 os pedidos de indenização que o Estado deve pagar às famílias, impotentes e sem recursos para contratar um advogado. “São casos que não têm visibilidade nenhuma, e a exposição é fundamental, porque a vítima passa a ser um defunto caro para o Estado”, explica o letrado.
Nas pastas de Tancredo estão a tortura, morte e desaparecimento do pedreiro Amarildo por policiais da unidade pacificadora da Rocinha; o brutal trajeto de Cláudia, mãe de quatro filhos, arrastada como um saco por uma viatura policial no Rio; a execução de quatro das 19 vítimas da Chacina de Osasco, em São Paulo; o fuzilamento de Mateus, um rapaz negro de 14 anos pego por dois agentes no centro do Rio e assassinado no Morro do Sumaré, crime só conhecido pelo relato de outro jovem que se fingiu de morto para sobreviver; a chacina da Baixada que espantou o Rio com a morte de 29 inocentes dez anos atrás...
Um dos poucos clientes vivos de Tancredo, e que aguarda também indenização do Estado, é Rafael Braga, morador de rua e o único condenado pelos protestos de 2013 por portar uma garrafa de Pinho Sol. Rafael, “um absurdo da Justiça”, trabalha no escritório do advogado como auxiliar de serviços gerais desde que saiu da prisão.
Tancredo trabalha de graça nas mais de 130 ações para ressarcir famílias pobres que perderam parentes inocentes nas mãos de policiais, mas para isso não ser sinônimo de uma bancarrota incontornável, o escritório cuida de mais outros 900 casos de indenizações milionárias. Entre elas, acidentes de trabalho, como a explosão que deixou três mortos em uma plataforma de petróleo que prestava serviço à Petrobras no litoral capixaba em fevereiro deste ano, ou tragédias, como a do voo da Air France que, em 2009, caiu no Atlântico com 228 pessoas a bordo. Tancredo é também advogado de Chico Buarque, parceria revelada em muitos dos seus processos encaminhados aos juízes que começam ou terminam com versos do compositor: “Acorda, amor/ Eu tive um pesadelo agora/ Sonhei que tinha gente lá fora /Batendo no portão, que aflição/ Era a dura, numa muito escura viatura/ Minha nossa santa criatura/ Chame, chame, chame lá/ Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”
A alternativa gratuita a Tancredo é a Defensoria Pública, acionada sempre que revelada a responsabilidade do Estado nos crimes. Os processos costumam ser mais rápidos, Tancredo demora anos, mas o montante entregue aos familiares é muito menor. “O procurador geral é nomeado pelo Estado e a Defensoria entende que é melhor um mau acordo que uma boa ação”, diz o advogado que lembra que há casos como o de Amarildo, “o exemplo de que a UPP não deu certo”, em que o Estado nem ofereceu acordo de indenização.
O advogado mostra seus casos noticiados na imprensa. / 
Tancredo, que orgulha-se de ter criado o precedente para incluir outros familiares como irmãos e sobrinhos das vítimas nos pedidos indenizatórios, lamenta que depois desses acordos se imponha o silêncio. “Tradicionalmente com a indenização assinam-se cláusulas de silêncio sobre o caso. Normalmente, os familiares recebem o dinheiro e somem, como aconteceu com a família da Claudia. Você não a encontra mais”. A exceção da regra está na luta de Terezinha de Jesus, a mãe do menino Eduardo, de dez anos, morto no complexo do Alemão por um tiro de fuzil em abril. Terezinha assinou um acordo com o Estado do Rio e recebeu uma indenização de cinco zeros, mas ela continua cobrando a condenação do policial que matou o pequeno. Aqui e, recentemente, em uma turnê na Europa, organizada pela Anistia Internacional. “O governador Garotinho [1999-2002] era esperto, mas era mais correto. Eles fixavam uma pensão para as famílias enquanto se discutia o valor da indenização. O governo Cabral tabelou por baixo e hoje fazem um acordo mais pelo silêncio do que pelo ressarcimento”, lamenta.
As façanhas de Tancredo já incomodaram o suficiente como para ser alvo de um atentado. Em 2008, o advogado voltava de um encontro com moradores em um subúrbio do Rio onde denunciaram as práticas de um policial militar que estaria semeando o terror na região, quando uma moto se aproximou e os ocupantes dispararam quatro tiros contra ele. O carro blindado o salvou, mas o advogado pagou por dois anos uma escolta 24 horas por dia. “Foi algo horrível, você perde completamente sua intimidade. Hoje vou de táxi que é o melhor jeito de passar despercebido”.
Um ano antes, Tancredo já havia sido exonerado do cargo de presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem de Advogados do Brasil, no Rio, por se envolver demais na investigação de uma chacina no complexo do Alemão que deixou 19 mortos. A Comissão colheu depoimentos e analisou laudos das mortes para rebater a versão oficial do “confronto” o que incomodou seus superiores. “A polícia entrou com 1.300 agentes. Eu fui lá e encontrei tanta desgraça... Tinha gente com tiro na nuca, outros morreram de joelhos. Havia sinais claros de execuções”, lembra.
Revoltado e inconformado com a destituição, Tancredo contribuiu para criar, e hoje preside, o Instituto dos Defensores dos Direitos Humanos. A organização oferece, entre outros serviços, assistência jurídica gratuita a pessoas que ficam mais tempo presas aguardando seu julgamento do que se fossem condenadas. Depois de visitar a cena do crime, enxugar as lágrimas das famílias, cuidar do escritório e cultivar a militância, Tancredo aterrissa na consulta de um psicanalista. “É muito perverso o que se vive aqui. Mas um bom resultado, como ver uma mãe entrando na luta, dá uma levantada”.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Valeu ter nomeado Levy?, Por Emir Sader



REUTERS/Ueslei Marcelino: <p>Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, durante seminário em Brasília 3/11/ 2015. REUTERS/Ueslei Marcelino</p>
Agora, quando parece que, depois de tantas ameaças, o Levy sai do governo, resta a pergunta: valeu a pena tê-lo nomeado?
Sua nomeação foi resultado de uma determinada leitura da situação em que se encontrava o país há um ano. O resultado eleitoral apertado deveria ter levado à preocupação central o resgate de milhões de brasileiros que, ainda que beneficiários das políticas sociais do governo, tinham votado na oposição, levados pelas brutais campanhas dos monopólios privados da mídia.
O governo escolheu outra prioridade: pela primeira vez um presidente tinha sido eleito com a oposição da maioria esmagadora do grande empresariado. Além de que se haviam acumulado desajustes nas contas públicas. O governo optou por um ajuste fiscal, para cuja implementação foi chamado o Levy. Faria o ajuste e recuperaria a confiança do mercado.
Nem um nem outro. O pacote de ajuste, penalizando os trabalhadores, fez o governo rapidamente perder bases de apoio, raiz da crise política que se estende até hoje, se nenhuma acusação fundamentada, mas baseada no isolamento social do governo, conforme apontas pesquisas.
Alem de socialmente injusto, o pacote foi economicamente ineficiente. De cortes nunca se sai para retomada da expansão econômica. Ao contrário, se aprofunda a recessão, com aumento do desemprego, menos arrecadação e necessidade de maiores cortes. E politicamente, como já se disse, foi desastroso: em pouco tempo o governo passou de uma vitória – apertada mas vitória – a um isolamento popular muito grande.
Essa é a raiz da crise que se prolonga até hoje. A crise tem seu fundamento na recessão econômica, aprofundada pelo ajuste, tornando-se crise política pela fraqueza do governo.
Sem força política, o governo sequer conseguiu implementar o ajuste na sua totalidade. Vivemos no pior dos mundos: pautados há um ano pela agenda negativa do ajuste, sem nem conseguir realizá-lo e tirá-lo da pauta.
Não bastasse isso, a taxa de juros, em plena recessão, foi sendo elevada a patamares altíssimos, inviabilizadores de qualquer retomada do crescimento e incentivadora dos investimentos especulativos e não dos produtivos. Se faz tudo na contramão da forma como o governo enfrentou vitoriosamente o início da crise internacional, em 2008, com medidas anticíclicas.
Com o Levy como ministro da economia e com um pacote recessivo, que penaliza os trabalhadores, ainda assim o governo tem a Fiesp aprovando o impeachment, isto é, pelo menos uma parte significativa do empresariado pela queda do governo. E ainda tendo que sofrer desvalorizações das agências de risco na saída do Levy, cuja entrada não trouxe benéficos: perdeu a confiança dos trabalhadores e não ganhou a dos empresários.
O governo é mais fraco ou mais forte do que no momento em que entrou o Levy? Muito mais fraco. Isso se deve só a ele? Não, houve também erros de direção política. Mas as raízes da crise atual vêm do ajuste.
Que se tirem lições. Tirar o Levy para manter a política não vale a pena. Ele foi nomeado para implementá-la e os resultados, um ano depois, estão à vista. Mudar de ministro para mudar de política. Para continuar o mesmo, ficaria o Levy, sem o desgaste para o governo da sua saída. Mudar de ministro para mudar de política. Virar o ano e virar a página das agendas negativas.

As lições de Juscelino Kubitschek em 1964, DCM




JK e seu vice João Goulart
JK e seu vice João Goulart
Publicado no Carta Capital. Por Fernando Santomauro

No dia 1o de abril de 1964, Lincoln Gordon relatava ao Departamento de Estado: “Encontrei Kubitschek às 21:15 e mandei uma mensagem que aparentemente não foi enviada no meio da confusão de ontem à noite. (…) Kubitschek disse que a movimentação de São Paulo seria crítica para o sucesso, e se a rebelião fosse branda, Goulart abriria seu caminho para a ditadura. (…) Nós conversamos sobre o problema da legitimidade, que ele pensou que seria facilmente cuidado pelo Congresso, se o aspecto militar fosse resolvido. Ele tinha visto Goulart no meio da tarde e suplicou que salvasse seu mandato fazendo uma ruptura clara com a CGT e os comunistas, mas Goulart disse que isso seria sinal de uma fraqueza que ele não poderia mostrar. (…) A hora teria claramente chegado e nessas horas não seria necessário nenhum apoio especial dos EUA.”
O informe do embaixador dos EUA no Brasil deixava claro o rompimento do ex-presidente, e então senador Juscelino Kubitschek, com o presidente João Goulart (seu ex-vice), e expunha a sua aberta colaboração com o Departamento de Estado norte-americano, monitorado naqueles dias diretamente pelo presidente Lyndon Johnson, por telefone, de seu rancho no Texas.
Na tarde do dia 1o de abril de 1964, o subsecretário de Estado norte-americano, George Ball, atualizava-se com Gordon sobre a situação no Brasil e traçava as variáveis para o sucesso dos “revoltosos / golpistas”. Segundo essas conversas, um apoio declarado dos EUA fortaleceria o movimento pró-Goulart.
Entre as possibilidades aventadas para retaguarda militar estadunidense estavam acionar porta-aviões, navios e se preciso, aviões, cheios de armamentos (com registro raspado), além de deslocar três destroieres e um submarino para a Baía de Guanabara.
A participação de JK nas movimentações norte-americanas do dia 31 de março não se limitou à conversa com Gordon. Ele também reafirmou a James Minotto, assessor americano para as relações com o Senado, suas posições: “Em uma conversa com James Minotto…, Kubitschek disse que, para razões práticas, a situação já estava definida. Aconteceria um golpe bem-sucedido contra Goulart, e que a resistência a isso se resumiria a uma greve geral de dois ou três dias. [Segundo ele] os trabalhadores … iriam voltar ao trabalho assim que começassem a ficar com fome”. Nessa conversa, JK reconfirmava que “estava rompendo com ele [Goulart] já que o presidente estava seguindo um caminho que acabaria por entregar o país aos comunistas”.
As próximas relações de Kubitschek com os governantes estadunidenses, de ambos partidos, vinham desde antes de seu mandato como presidente. Um relatório “pessoal e confidencial” do então assessor especial da Casa Branca, o magnata do petróleo Nelson A. Rockefeller, ao presidente Eisenhower, após a eleição de JKem dezembro de 1955, mostrava isso.
Para Rockefeller, JK era visto como um aliado importante: “O presidente eleito do Brasil, Juscelino Kubitschek, passou a ser o meu amigo. … Sob sua liderança, parece-me que há uma grande oportunidade para que as relações entre Brasil e EUA sejam muito mais próximas como há muito tempo não são”.
No mesmo relato, Rockefeller indicava que o contato pessoal seria fundamental, para que se desenvolvesse uma boa relação entre os países: “(…) Como muito brasileiros, ele é altamente personalista em seus sentimentos e por causa disso, estou tomando a liberdade de escrever esta nota para fazer uma sugestão relacionada à sua posse, que está próxima…. Eu tenho a sensação que, com base no grande sucesso de suas turnês de boa ‘vizinhança’ anteriores, seria possível que o vice-Presidente Nixon chefiasse a delegação da posse de Kubitschek no próximo mês, onde ele seria muito bem recebido no Brasil e ajudaria enormemente a começar de maneira forte o seu mandato”.
Desde sua campanha, JK era visto pela Casa Branca como garantia de bons negócios e de luta contra o comunismo no País. No mesmo relatório, ainda em 1955, Rockefeller descrevia com bons olhos o Plano de Metas, a aproximação com os EUA e o seu anticomunismo: “Kubitschek mencionou seus planos de promover um grande desenvolvimento da economia brasileira… ele disse que os EUA eram o único país que poderia auxiliá-lo a aprofundar seus planos econômicos… Kubitschek relatou que ele não era comunista e que não permitiria que comunistas fossem ativos no seu governo”.
As escolhas de JK ao longo de sua carreira política, por um desenvolvimento econômico associado (fortemente financiado por bancos internacionais e impulsionado por empresas estrangeiras), pela infraestrutura com base no transporte rodoviário e no petróleo, pelo incentivo às grandes indústrias automobilísticas, e o seu anticomunismo, aproximavam ainda mais Juscelino, eventual candidato à presidência em 1965 (possivelmente contra João Goulart) e os Estados Unidos.
As revelações dos documentos norte-americanos explicitando a colaboração de JKcom o embaixador Gordon na véspera do golpe também trazem elementos e lições aos políticos brasileiros de hoje. Muitas vezes o rompimento com a normalidade democrática, motivado por vantagens pessoais imediatas, pode desencadear, a médio e longo prazo, prejuízos incalculáveis ao país e, muitas vezes, a esses próprios políticos. A conjuntura de momento pode ser favorável, mas a História não perdoa.
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